A vida depois da morte, seja das pessoas normais seja das santas e santos, que atingiram na Terra uma harmonia e ligação espiritual ou divina maior ou melhor, continua um mistério para a maioria das pessoas, embora ao longo dos séculos sempre houvesse quem tentasse investigar, meditar, ver ou conhecer tal estado de consciência, ou tais planos mais subtis da pluridimensional Vida.
Se no Ocidente o século XIX comummente se considera o mais intenso de tentativas de compreender o destino das almas no além e as suas capacidades de comunicação connosco, com o extraordinário desenvolvimento então do Espiritismo, sistematizado doutrinariamente por Alain Kardec e investigado cientificamente por dezenas de notáveis cientistas e pensadores, desde Lombroso, Crookes, Flammarion, Bozzano, que deixaram valiosos registos das suas experiências, ainda que por vezes tingidas pelas fraudes dos médiuns, o que passou para a consciência colectiva não se pode quantificar como bastante, tanto mais que a igreja Católica e vários grupos esotéricos e mestres espirituais se pronunciaram contra os perigos do contacto com os espíritos do além, frequentemente após experiências, como foi entre nós o caso de Fernando Pessoa, ainda que ao longo da vida volta e meia assinalasse tais inspirações.
Todavia, a especulação sobre a vida no além foi sendo sempre realizada e embora o catolicismo se tivesse estruturado em quatro planos: Céu, Purgatório e Inferno, e Limbo, hoje desvalorizado, alguns autores teólogos ou visionários discerniram que havia muitas gradações entre eles, e no fundo na constituição do Universo subtil e espiritual, e retrataram tal nas suas odisseias no além, tal Dante e a Divina Comédia.
Outros pensadores, questionando o estado das almas no além, nas suas especulações ou intuições atingiram alguma luz da verdade, que pode ser ainda hoje lida, caso tenhamos a sorte de a encontrar por entre as páginas dos livros antigos esquecidos em estantes poeirentas.
Por exemplo, entre nós, em 1754, o Padre Mateus Ribeiro, natural de Lisboa, e pároco da Azoeira, publicou um extensa obra escrita como romance dialogado sobre temas entre o sagrado e o histórico-profano e assim, por entre as profundidades meditadas por este teólogo - pregador no Arcebispado de Lisboa -, encontram-se pérolas . O nosso primeiro grande bibliógrafo dos escritores portugueses, no gigantesco III volume da sua Biblioteca Lusitana, em 1752, Barbosa de Machado, mostrou-se em relação ao padre Mateus Ribeiro injusto (e seria uma boa investigação saber quantas mais vezes foi, ao catalogar milhares de livros e fazendo juízes de valor sobre tantos autores, que por vezes não leu), pois diz-nos: «Presbítero, Teólogo e Pregador, e versado em vária erudição, que pudera utilmente empregar, compondo mais para divertimento de ociosos, que instrução de sábios.» Ora vamos ver, pelo contrário, quão altos níveis de doutrina e visão espiritual Mateus Ribeiro partilha, democratiza. Barbosa de Machado cita das suas obras o Alívio dos Tristes, e Consolação dos queixosos, com várias edições, a 1ª de 1672. O Retiro de Cuidados, e Vida de Carlos, e Rosaura, 1ª edição em 1681 e já então em 4ª ed. E a Roda da Fortuna e Vida de Alexandre e Jacinta, de 1691.
Sim, são obras romanceadas, com muitas aventuras mas também com sabedoria transmitida nos diálogos. E se tiveram tão grande sucesso significa que havia muita gente a ler obras volumosas e que a literatura de educação moral e espiritual atraía muitos.
Ora na III parte do Alívio dos Tristes, e Consolação dos Queixosos, sem dúvida um bom título e mantra para as nossas leituras ("aliviemo-nos das múltiplas cargas, lendo bons livros"), no Cap. XIX, o padre Mateus Ribeiro trata da mítica Cidade de Deus, e citando Aristóteles e S. Agostinho, extasia-se poética e astronomicamente perante a grandeza e infinidade do Céu, e afirma que no Centro Divino, de que o paraíso terrestre é apenas uma sombra, só habitam Deus, os Anjos e as almas Bem-aventuradas, e que nesse centro, cidade, dimensão ou nível do Cosmos se encontram «as Hierarquias dos Espíritos Angélicos em coros divididos, e as Almas Bem-aventuradas, todos unânimes no vínculo do amor, logram na Visão beatífica de Deus todas as alegrias, delícias e contentamentos juntos: pois nesta visão inefável da Divina essência tudo junto possuem e tudo junto logram.»
Detenhamo-nos neste estágio elevado: visão beatífica e inefável da essência de Deus, na unidade do amor, permite aos que participam em tal grau de amor unitivo obterem juntos tudo, ou a fonte de tudo, que plenamente satisfaz ou beatifica.
Passa em seguida Mateus Ribeiro a considerar a qualidade das almas, tema sempre muito valioso, pois a maioria das pessoas está tão identificada ao seu corpo físico, que não só faz pouca ideia ou pouco vivencia mais conscientemente da sua alma espiritual independente do corpo físico, como morrendo fica semi-inconsciente, e sem saber ou poder mover-se.
Todavia, quem meditar nas qualidades de alma espiritual desenvolvida ou bem-aventurada terá certamente a vida facilitada, e talvez por essa razão o P. Mateus Ribeiro há 300 anos pregou a sua boa nova e até nós chegou...
«Três dotes tem na glória as Almas Bem-aventuradas que são, perfeitíssima sabedoria, perfeitíssimo amor, e perfeitíssimo gosto, ou fruição, em que se encerra, e cifra todo o gosto cabal, e alegria. Assim vendo a Divina Essência elevadas pelo lume da Glória, tudo e todas as ciências perfeitamente alcançam, quanto aos merecimentos de cada um pertence. Ali vêm os tesouros do Amor Divino em cujo Infinito Oceano engolfada a vontade humana com todas as potências da alma a Deus seu amante sobre tudo ama. Ali desposada a Alma venturosa com seu Divino Esposo inefavelmente o goza, tendo neste logro juntos todos os bens, as delícias, as alegrias, e recreios, em que o desejo pára, e o coração só cabalmente descansa.
Aqui diz o Melifulo Padre S. Bernardo, nem admite o entendimento engano, nem a vontade dor, nem a memória recreio. Aqui nem há noite que moleste, nem pena que aflija, nem temor que inquieta, nem inveja que ofenda, nem desvelo que oprima, nem paixão que atormente, nem ambição que sobressalte, nem finalmente penalidade ou sentimento algum, que sirva, ou de eclipse às alegrias, ou de desaire aos receios.
Tudo neste venturoso estado é perpétuo, e sereno dia, eternizada Primavera, flores, que não se murcham, verduras, que não se secam, fontes de eterna vida, rio perene de delicia de delicias, que alegra com sua vida em cristalina, e luzida corrente a Cidade da Glória, tudo músicas suavíssimas em alternados coros, em que elevados os sentidos mais no Divino Amor, se esforçam os afectos em amar aquele sumo bem, que de todos os cânticos, Hinos e louvores é sumamente digno. Ali cada um dos bem-aventurados dá glória, que os outros logram, novo gosto, e acidental glória recebe, sendo sem número de seus contentamentos os gostos acidentais, que logram. Porque o perfeito vínculo de amor, com que em Deus estão unidos, faz festejar como próprios todos os bens e gostos alheios [na busca deste estado, e valorizando-o muito, andou Antero de Quental]. E com serem os Bem-aventurados tão diferentes nos estados, nos merecimentos, nos prémios, como ensina o padre Santo Agostinho, não pode dar-se inveja, senão amor grande: assim porque da Visão beatífica, que é a Glória essencial [frase fulcral, a meditar-se] participam todos, cada um conforme a capacidade do seu merecimento... (...)
Depois da Ressurreição [que talvez possa ser quase imediata...] os corpos [subtis e não físicos]dos Bem-aventurados unidos as duas Almas se revestirão daqueles quatro dotes soberanos que são, Claridade, com que serão mais resplandecentes que o Sol [ou quase..], Impassibilidade com que não poderão padecer moléstia alguma, Subtileza, com que poderão penetrar por todos os corpos sólidos, como o Sol com seus raios penetra o vidro e o cristal, sem ofendê-los, e o dote da Agilidade, com que poderão assistir nas maiores dificuldades sem dispêndio de tempo.»
Fiquemo-nos por estes dotes dos nossos corpos de glória e trabalhemos por os merecer sentir e vivenciar, na unidade do amor e do corpo místico, e na adoração e amor a Deus.


Sem comentários:
Enviar um comentário