O livro O Profeta, do libanês Kahlil Gibran (6-I-1883 a 10-IV-1935), publicado em 1923, após longo trabalho de destilação, e logo com grande sucesso, dada a sua grande beleza e sabedoria, devido à grande abrangência temática, ao carácter místico, ao estilo das parábolas orientais e à necessária brevidade dos ensinamentos transmitidos na forma de vinte e seis discursos poéticos deu origem a que alguns dos poemas fossem muito apreciados e até sabidos de cor, e outros menos, pois cada leitor com a sua própria experiência e visão de vida sentia que responderia de outro modo e não se identificava ou aderia tanto a alguns.
Mesmo assim certos poemas são praticamente unanimemente apreciados e elogiados, e seria até instrutivo tentar discernir-se seja o que qualitativamente é o melhor ou mais rico de compreensões e intuições originais, e quais foram ou são os mais apreciados quantitativamente, nomeadamente nos muitos que ainda hoje leem Kahlil Gibran ou têm O Profeta como livro de cabeceira, ou como vademecum, como se dizia dos livros de Erasmo na época áurea da sua irradiação na Europa humanista e cristã do séc. XVI, como Marcel Bataillon tão bem realçou e entre nós José V. de Pina Martins ecoou.
Sendo o poema Amizade um dos mais conseguidos e profundos, pois alguma frases-versos são valiosas ideias-forças, verdadeiras e logo operativas na transformação dos interiores dos leitores graças à expansão cognitiva e gnóstica da alma que geram, iremos traduzi-lo e destacar brevemente alguns dos ensinamentos, tal como o de que a Amizade é como um campo que se trabalha, semeia e colhe. E que com o amigo ou amiga há plena comunhão dos conteúdos psíquicos, mesmo no silêncio, mesmo na ausência física, pois a presença ou comunhão interna continua, por vezes até com uma claridade insuspeitada.
Bem desafiantes ensinamentos, poderemos dizer nestes tempos de amizades mais digitais, virtuais, superficiais, pois com quantas pessoas conseguimos sentir e realizar tal, mesmo que seja só nos sonhos? Mas oiçamos o nosso inspirado Kahlil Gibran, a que se seguirá a minha tradução comentada:
«And a youth said, Speak to us of Friendship.
And he answered, saying:
Your friend is your needs answered.
He is your field which you sow with
love and reap with thanksgiving.
And he is your board and your fireside.
For you come to him with your hunger,
and you seek him for peace.
And he answered, saying:
Your friend is your needs answered.
He is your field which you sow with
love and reap with thanksgiving.
And he is your board and your fireside.
For you come to him with your hunger,
and you seek him for peace.
When your friend speaks his mind you
fear not the "nay" in your own mind, nor
do you withhold the "ay."
And when he is silent your heart ceases
not to listen to his heart;
For without words, in friendship, all
thoughts, all desires, all expectations are
born and shared, with joy that is unacclaimed.
When you part from your friend, you
grieve not;
For that which you love most in him
as the mountain to the climber is clearer from the plain.
And let there be no purpose in friendship
And let there be no purpose in friendship
save the deepening of the spirit.
For love that seeks aught but the disclosure of its own mystery
For love that seeks aught but the disclosure of its own mystery
is not love but a net cast forth:
and only the unprofitable is caught.
And let your best be for your friend.
If he must know the ebb of your tide,
let him know its flood also.
For what is your friend that you should
seek him with hours to kill?
Seek him always with hours to live.
For it is his to fill your need, but not
your emptiness.
And in the sweetness of friendship let
there be laughter, and sharing of pleasures.
For in the dew of little things
the heart finds its morning and is refreshed.»
Tradução...
«E um jovem disse: Fala-nos da Amizade.
E ele respondeu, dizendo:
O vosso amigo são as vossas necessidades atendidas.
Ele é o vosso campo que semeais com amor
E ele respondeu, dizendo:
O vosso amigo são as vossas necessidades atendidas.
Ele é o vosso campo que semeais com amor
e colheis com gratidão.
E ele é vossa mesa e a vossa lareira.
Pois aproximam-se dele com a vossa fome,
e procuram-no pela paz.
E ele é vossa mesa e a vossa lareira.
Pois aproximam-se dele com a vossa fome,
e procuram-no pela paz.
Quando o vosso amigo fala da sua mente,
vós não temei o "não" na vossa mente, nem reteis o "sim."
E quando ele está silencioso,
E quando ele está silencioso,
o vosso coração não deixa de ouvir o seu coração;
Pois sem palavras, na amizade,
Pois sem palavras, na amizade,
todos os pensamentos, todos os desejos, todas as expectativas nascem e compartilham-se,
com a alegria que não é proclamada.
Quando deixais o vosso amigo, não vos lamentais;
Pois o que mais amais nele
Quando deixais o vosso amigo, não vos lamentais;
Pois o que mais amais nele
pode ficar mais nítido na sua ausência,
assim como a montanha para o alpinista
é mais nítida a partir da planície.
E que não haja propósito na amizade,
E que não haja propósito na amizade,
senão o aprofundamento do espírito.
Pois o amor que busca algo
Pois o amor que busca algo
que não a revelação de seu próprio mistério
não é amor, mas uma rede lançada:
e só o inútil é apanhado.
E que o melhor de vós seja para o vosso amigo.
Se ele tem de conhecer a vossa maré baixa,
deixai-o conhecer também a cheia.
Para que é o vosso amigo que
tens de o procurar com horas para matar?
Procurai-o sempre com horas para viver.
Pois ele deve encher a vossa necessidade,
mas não o vosso vazio.
E na doçura da amizade
E na doçura da amizade
que haja risos e partilha de prazeres.
Pois na orvalho das pequenas coisas
Pois na orvalho das pequenas coisas
o coração encontra a sua manhã e renova-se.»
Eis um poema simples sobre uma das modulações psíquicas mais importantes e comuns do Amor, a Amizade, e que nos é apresentada com analogias e parábolas da natureza que todos conhecemos, de modo a podermos estender a mais a nossa alma para o ambiente, a Natureza, a Terra, a Vida, o Infinito, pois somos partes desse todo Divino e em tantos aspectos reflectindo-se intimamente. O que é muito importante e salvífico para a gens citadina, de modo a não esquecer e deixar secar as raízes naturais que subtilmente a podem alimentar.
O que nos ensina ou aconselha mais então: valorizar as pessoas amigas pois são as que melhor dialogarão, compreenderão, ajudarão. Mas que não aproximemos delas apenas quando estamos em baixo, antes partilhemos as nossas elevações ou marés cheias da Fortuna.
Com a pessoa verdadeiramente amiga nada há a esconder, e no diálogo o que se pensa pode-se dizer. E quando estamos distantes ou afastados, mesmo assim continua o entrelaçamento das almas e mentes e a comunicação, podendo nós até senti-la ou intui-la melhor nessa visão-osmose interna.
O que nos ensina ou aconselha mais então: valorizar as pessoas amigas pois são as que melhor dialogarão, compreenderão, ajudarão. Mas que não aproximemos delas apenas quando estamos em baixo, antes partilhemos as nossas elevações ou marés cheias da Fortuna.
Com a pessoa verdadeiramente amiga nada há a esconder, e no diálogo o que se pensa pode-se dizer. E quando estamos distantes ou afastados, mesmo assim continua o entrelaçamento das almas e mentes e a comunicação, podendo nós até senti-la ou intui-la melhor nessa visão-osmose interna.
![]() |
| A mãe de Khalil, filha de um sacerdote maronita e que o guiou na sensibilidade profunda |
Talvez um dos ensinamentos mais importantes até do tão maravilhoso quão instrutivo livro seja o que ele dá em seguida, face a tanta futilidade das amizades, ou como ele diz, face a tantas pessoas que precisam de matar o seu tempo:
«Que não haja propósito na amizade,
senão o aprofundamento do espírito»
senão o aprofundamento do espírito»
logo acrescentando que "o amor deve demandar essencialmente a revelação de seu próprio mistério", equiparando ou identificando assim Amizade, Amor e gnose do Espírito.
Saibamos pois elevar mais o nível e fim ou razão de ser da amizade: que haja mais consciência da beleza, profundidade e perenidade da Vida, e como as amizades são meios e oportunidades de criativa e amorosamente purificar-nos e aprender, aperfeiçoar e apoiar, elevar e clarificar-nos, e que elas proporcionam, nas suas pequenas trocas e comunhões, refrescar-nos ou renovar-nos, do coração ao cérebro, tal como à relva e as plantas causa o orvalho, que os alquimistas recolhiam e aproveitavam para a grande obra da harmonia da Terra e do Céu, o nascimento da pedra filosofal ou do Amor e Espírito divino em nós, como Kahlil Gibran tanto desejou e trabalhou. E que continua a inspirar-nos, se o lermos ou contemplarmos sentidamente..








1 comentário:
Muito bonito.
Enviar um comentário