quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Miguel Trigueiros, e os seus poemas de "Deus", prefaciado por M.Trindade Salgueiro, Gilberto Kajawsky e Álvaro Ribeiro

                                  

 Miguel Trigueiros (10-V-1918 a 1999), formado e doutorado em Teologia, jornalista, poeta,  conselheiro cultural em três postos no Estrangeiro, quando publicou  o seu terceiro  livro de poesia Deus, em 1943, após o folheto prefaciado por Branca Gonta Colaço Palestra Rimada, 1933, e o Resgate,1939 (prémio Antero de Quental, do SNI, tal como Fernando Pessoa recebera com a Mensagem em 1934),  justificou o título «por ser Ele, na verdade, a aspiração constante, a Presença visível ou oculta e a soma de todos os caminhos poéticos percorridos, mesmo quando a comunicação das ideias e dos sentimentos se reveste de aspectos profanos», cobrindo assim com a diafinidade ou intensidade do seu Amor a Deus, os muitos belos poemas que ecoam ou transmitem o seu grande  amor pela mulher Maria Margarida (com quem virá a escrever, já em 1985, os Portugueses que somos). Não é pois um livro de poesia apenas religiosa, mas é também lírica, amorosa, social. 

Um dos mais belos poemas à sua mulher Maria Margarida.

Após inserir as palavras prefaciais e sábias do cardeal Trindade Salgueiro, que foi provavelmente seu professor, e de Gilberto Kujawsky, dedica a obra a sua mulher Maria Margarida e aos sete filhos  e apresenta o seu aforístico Manifesto, seguindo-se um texto, sob a forma de cruz latina, do filósofo Álvaro Ribeiro. E por fim os poemas, cuja Trajectória explicitou numa sucessão quádrupla: I - Entre o Vale e a Montanha (Resgate), II - Vozes da Escalada (Diálogo do Céu e da Terra), III - Primeiros Cimos (Sete Poemas do Natal) e IV - Cântico da Altura (Deus). Poemas cheios de aspiração e força. de compaixão e amor, mas que podem fazer perguntar a que nível de realização divina chegou? Apenas a fé ou há uma vivência, experiência, ou mesmo uma gnose mais íntima e espiritual? Veremos no fim... 

Transcrevamos do princípio do livro o início da carta do bispo Manuel Trindade Salgueiro (1898-1965): «Meu Amigo. Li com devoção o seu livro, que é largo bater de asas nos domínios luminosos da fé. Na sua carta a Frei Agostinho da Cruz escreve que:  "Só os versos feitos de alma/Trazem notícias de Deus." São feitos desse modo os seus versos e por isso as notícias que de Deus nos trazem, são harmoniosas, e límpidas e profundas, como vozes do Infinito.»

Valorizemos no valioso intelectual, teólogo e professor. natural de Ílhavo, que chegou a Arcebispo de Évora, a sua apreciação da poesia de Miguel Trigueiros como bater de asas, isto é, como raios em aspiração de amor, verdade, unidade, e que sondam e querem entrar nos domínios espirituais e divinos (e está no fundo a comentar o poema Mais Além).  E que a Fé, como aspiração e crença que Deus, o Bem, o Amor e a Ordem existem, nos fortalece para lutarmos por tais princípios e elevadas realidades. Finalmente, que só os versos  sentidos intimamente e de alma é que nos fazem vibrar nas escalas, frequências, vibrações, dimensões ou níveis  divinos, permitindo então captar-se ou intuir-se algo da voz, Palavra ou Logos do Infinito, transcendente e imanente.

Gilberto Melo Kujawsky (nascido em 1929 no Brasil, notável fílósofo anteriano e orteguiano) apresenta e contextualiza também muito bem Miguel Trigueiros, destacando o seu cristianismo e elevando-o até a um lídimo sucessor de Antero de Quental:  «(...) Líder de uma nova poesia cristã em Portugal, essencialmente caracterizada pelo teocentrismo e a re-aliança do sobrenatural na concepção e no conhecimento da realidade, a mensagem de Miguel Trigueiros é mensagem de revolução, de escândalo, na Babel dos nossos dias, porque sua poesia é antes de tudo a poesia da vontade, da vontade sobranceira a clamar bem alto pelos seus deveres, em vez de limitar-se à poesia de sentimentos implorando, apenas, pelos seus direitos.»  E depois de destacar a sua poesia como joanina (do evangelista João), como Palavra sagrada, como reveladora do Divino Verbo Criador em acção em tudo, mencionando mesmo Jakob Boehme, e dum modo excelente, "poesia de profunda comunhão interna a comunicar-nos a íntima voz das coisas, como esperava o místico Jakob Boehme ouvisse um dia toda a humanidade purificada", concluirá no último parágrafo, algo optimista ou generosamente: «Vemos em Miguel Trigueiros o primeiro grande poeta a cursar em Portugal (e talvez no Mundo) aquele sentido que Antero de Quental profetizava seria a orientação definitiva do pensamento europeu,  - "o sentimento do espírito como sendo o tipo, a forma da realidade; do bem, como sendo a essência do espírito; e da liberdade como a substância do bem". Anote-se que este resumo final entre ásperas não é transcrição exacta duma frase  de Antero, mas sim uma aproximação sintética ao essencial das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, como sabemos o testamento filosófico de Antero de Quental». 

Segue-se, em três axiomas, o  Manifesto para uma Poesia Nova, e relembre-se que  ele pertenceu ao movimento Poesia Nova, com Sidónio Muralha, e de certo modo com Duarte de Montalegre ou José V. de Pina Martins, que estudara e convivera com ele em Coimbra: I - Nem arte pela arte, nem arte pelo homem, nem arte pela classe:arte pelo todo. II - Nem egocentrismo, nem antropocentrismo: teocentrismo. 3 - Nem arritmia, nem neo-formalismo: polirritimia.

  Por fim dá lugar ao seu mestre Álvaro Ribeiro que contribui com um belo texto em forma de Cruz, bem digno de se meditar mais atentamente, e  que como não está digitalizado, reproduzimos e transcrevemos:
«A poesia de Miguel Trigueiros, clara, harmoniosa, equilibrada, como todas as forças do Bem, representa um caso excepcional de directa superação do lirismo pelo exercício das virtudes teologais. A razão que vai sendo cada vez mais permeável à fé, e portanto cada vez mais animada de luz e calor, confere à poesia portuguesa uma inteligibilidade que a afasta, distingue e separa dos produtos modernistas de inspiração satânica. Miguel Trigueiros é fiel à tradição. Venccndo pela penitência o orgulhoso lirismo do homem natural, faz da oração a sua originalidade, e alegra-se pela graça de ser um cantor de Deus.»  Note-se um certo dualismo cxagerado, ao considerar a poesia modernista como satânica...
No ciclo dos poemas, e há vários de grande beleza e perfeição, em geral cheios de amor e admiração, aspiração e, vontade, e poderíamos pensar que seriam os últimos oferecerem as suas compreensões, experiências, ou mesmo visões de Deus. Não são eles porém poemas místicos de realização interior, mas sim os de alguém que aspira e ama a Deus, e que é sobretudo um amante da Humanidade, um ser animado de amor e compaixão pelo que o rodeia e que sente nessa fraternidade e simpatia a presença de Deus. Há contudo um mistico ou unitivo sentimento da Natureza, muito sentido e forte, bem patente no poema que o bispo Manuel Trindade Salgueiro destacara, dedicado a Frei Agostinho da Cruz, e intitulado Deus no Poeta, dos mais belos e elevados inegavelmente, mas também em outros, como no dedicado à ilha da Madeira e que é de antologia.
Após uma série de poemas sobre a mulher, as pessoas, os tipos profissionais ou socia
is, consagra alguns a Portugal, dando-nos no fundo a sua versão da Mensagem, de Fernando Pessoa,  e conclui com o seu Resumo da Escalada, belo, valioso, bem fundamentado até em termos de espiritualidade imanente mas que indiciará talvez uma certa carência de realização íntima de Deus, sem querermos estar a julgá-lo, tanto mais face à tão valiosa acção religiosa em Portugal e Brasil durante a sua vida, tal como Ferreira da Silva testemunha na breve notícia biográfica que lhe consagra na badana do livro: «O autor, ao percorrer como um cruzado os caminhos de Portugal, para levar a todo o lado na arte da sua poesia, a mensagem da sempre bela e imortal Verdade cristã, já mereceu com justiça a gratidão de todos os crentes da nossa terra». Oiçamo-lo, sob o título: 

     Deus em Tudo, em Todos e em cada Coisa (Resumo da Escalada) 

Deus é Presença e Luz. Para encontrá-lo,
E unir - à Sua voz - a nossa voz,
Não queiramos ir longe procurá-lO,
Pois Ele existe já dentro de nós.

Os caminhos são dois - Verdade e Amor.
O que espalha orações pelos escombros,
Do coração em festa e de alma em flor,
Sente as mãos do Senhor sobre os ombros.

Quem sabe o rumo do universo? Vede:
- Queima-se a Humanidade em chamas de ânsia...
Tanto espírito bom, morto de seda,
Com a Fonte a dois passos da distância!

Devemos, sob o signo da Humildade,
Se na Terra da vida cresce o vício,
Lavrá-la com o arado da vontade
E, depois semear-lhe o Sacrifício.

Onde há mundo de mais, há céu de menos.
Cansa o descrer... Acreditar não cansa.
Os píncaros mais altos são pequenos
Para quem leva as asas da esperança.

Deus redime e ilumina cada coisa
O seu olhar, feito de sonho e calma,
- Como poisa o luar na noite - poisa
Nas noites outonais da nossa alma.

E deixa de ser mudo o corpo mudo:
Um novo pensamento ascende em grito:
Traz do fundo de tudo, para tudo
As palavras do Livro do Infinito

São palavras de luz e de promessa;
Procuremos senti-las e entendê-las.
Penetremos além, onde começa
O sorriso profundo das estrelas.

E troquemos o instante pelo eterno.
Sigamos o caminho de Jesus.
- A Primavera vem depois do Inverno;
A alegria virá depois da cruz!

Passa o tempo velhinho; passam vidas;
Tal como passa o bem, passa a desgraça;
Passam todas as coisas conhecidas.
Só nome de Deus é que não passa.»
 
O poema, bem valioso, transparece um dos métodos da sua poesia, a inserção de frases ou ditos marcantes, poderosos, no meio das ideias ou doutrinas, em geral  bem sentidas e acreditadas, e com imagens activas que partilham o seu dinamismo anímico, nutrido no cristianismo, mas sem que citações dos Evangelhos surjam, com Jesus mesmo muito desaparecido face à sua aspiração a Deus, que começa neste poema por ser apresentado como Presença e Luz. Viu ele a Luz interior? Sentiu a sua presença? Como Amor, certamente, ou como destinatário da sua gratidão e adoração, certamente. Quanto ao ouvir a Sua voz e a unirmos a nossa à Dele, sabemos quão dificil é, ou mesmo do perigo da vozes ilusas. De qualquer modo,  poderemos discernir a sua voz ao trilhamos criativamente os dois caminhos, Verdade e Amor, dando-nos ele uma boa imagem sensação de algo da Presença ou influxo da Deus sentir as mãos divinas sobre os ombros, curiosamente algo que Fernando Pessoa também escreveu num belo poema inédito até 1989, quando  o publiquei.
De qualquer modo, Miguel Trigueiros adverte que Deus existe já dentro de nós e no ciclo do devir de constantes metamorfoses, e em que temos de lutar contra vícios e defeitos, com a força da vontade e o sacrifício. E se desabrocharmos as asas e olhos de esperança, conseguiremos tanto ouvir as palavras ou gritos que brotam do fundo  e que se sentidos e entendidos poderão elevar-nos ao sorriso profundo das estrelas, e poderia ter acrescentado à música das esferas, das harmonias planetárias e dos espíritos celestiais.
Os seus últimos conselhos aforísticos são bem valiosos: Troquemos o instante pelo eterno. Sigamos o caminho de Jesus. Tudo passa, só o nome de Deus é que não passa.
O "nome de Deus"?  Porque é só tal o que teremos sempre à nossa disposição anímica para as nossas orações e cantos, meditações e contemplações, e por isso Miguel Trigueiros intitulou e bem o seu livro Deus?
Esta palavra Deus, Deos, Dios, será então para um poeta, autor radiofónico, conferencista, a mais indicada para invocar, avatarizar, coalescer, sentir Deus, restando apenas, depois dos nossos esforços e amor com Ela e por Ela, recebermos (como médiuns prismáticos, dirá na entrevista de 1956) a graça Divina, seja como inspiração, Amor,  Presença ou Luz, o mais normal...
Demos graças pelos caminhos de Verdade, Luz e Amor  que conseguirmos trilhar, e saudemos neles Miguel Trigueiros e sua família e amigos mais chegados! 
Anote-se que este artigo e leitura mais detalhada e atenta do Deus, foi motivado por a excelente e bem cristã livreira alfarrabista Lurdes Paiva, da Ler com Gosto, no Porto, sabendo que eu possuía a obra me confessou que tinha uma  amiga muito interessada, pois alguns dos poemas são cantados em missas, tendo chegado à conclusão que ofereceríamos os dois (mais o Miguel Trigueiros) à senhora amiga o exemplar, que manuseei e aprofundei nestes dias 9 e 10 de Outubro no ano da graça de 2025.
Uma última questão, sobre o nome de Deus. Será que Miguel Trigueiros conhecia as tradições hesicastas ortodoxas e as dos mantras indianos, e terá usado algum tipo de oração repetição dum nome especifico de Deus, para além do nome "Deus"? Tal Jesus, ou Jesus e Maria? Claro, os nomes de Deus indianos e islâmicos, ou os seus mantras ou sons sagrados, como o nosso Amen, não terá utilizado.... 
Na valiosa entrevista, e bem psicológica, de Igrejas Caeiro, na RTP, realizada em 1956, audível hoje em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-miguel-trigueiros/, Miguel (Forjaz) Trigueiros (irmão de Luís Forjaz Trigueiros, com quem ainda dialoguei), na sua grande sensibilidade, delicadeza, jovialidade e musical voz, exclama algumas vezes "meu Deus", o que pode indiciar o uso de alguns dos mantras ou jaculatórias da tradição espiritual portuguesa, que o empregam, tal como o "Meu Deus, eu amo-vos de todo o meu coração" ou ainda o simples "meu Deus, meu Deus"...

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