Nestes tempos de cacofonia provinda de tanta gente impreparada, de tanta democracia que é mais uma ruídocracia (como lhe chamava Afonso Cautela), manipulada de interesses e partidos espalhafatosos e conflituosos, há que tentar elevar-nos a níveis mais filosóficos ou doutrinários e apresentar e redescobrir análises, ideias valiosas e valores primordiais e perenes que tornam os seres humanos persona, isto é, por onde soa o espírito, e que ao longo dos séculos tantas vezes
brilharam, embora estejam hoje encobertos, esquecidos ou mesmo
perseguidos por um pragmatismo relativista e niilista que podemos
chamar infrahumanista, ao reduzir o homem ao animal consumidor e manipulado e automatizado, sem identidades ou referências tradicionais de género, família, nação, religião.
Se nos anos trinta a cinquenta se podia traçar um campo de batalha entre o Ocidente e o mundo soviético, ou mesmo entre o Cristianismo e o Materialismo ateísta, com o desabar da comunismo soviético, não vimos crescerem os valores cristãos nas sociedades ocidentais mas sim os económicos neo-liberais pragmáticos e em grande parte indiferentes à justiça social e internacional e à situação psíquica e espiritual das pessoas.

Quem reflectiu com grande acuidade e profetismo sobre tal confronto, pois conheceu-o in loco desde o seu início, foi Nicolas Berdiaeff (1874-1946, biografado sumariamente em https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2025/08/os-mestres-universais-russos-nicolas.html ), e que, depois de uma trajectória marxista evoluiu para o espiritualismo e anti-materialismo, foi convidado a sair da Rússia em 1922, com mais alguns intelectuais valiosos, tais Sergei Bulgakov e Ivan Ilyin, assim destinados a exportar a grande alma russa para o Ocidente. Passando pela Alemanha será em França onde estabilizará desde 1924 e se relacionará fecundamente com intelectuais, teólogos e editores tornando-se uma voz importantíssima da Rússia sagrada, um filósofo existencialista, esoterista e místico cristão ortodoxo e universal muito lido e discutido.
Até às praias lusitanas chegaram as suas mensagens e delas fizeram eco, entre outros Leonardo Coimbra e José Vitorino de Pina Martins, que traduziu mesmo o Marxismo e a Religião em 1948, ainda sob o pseudónimo de Duarte de Montalegre, para a colecção Mensagem, iniciada em 1941, com Pergunta de Pilatos, do mesmo Duarte Montalegre, isto é, José V. de Pina Martins. Sabe-se pouco desta aventura editorial, Mensagem. Pensamento e Doutrina, que assinalava na folha preliminar ter a direcção de José Charters e José Vitorino de Pina Martins, e o fino livrinho leva o prefácio da página 9 à 30, seguindo-se a obra de Berdiaeff, até à página 118. O exemplar consultado foi oferecido por Pina Martins numa dedicatória na sua letra espraiada, jovem de 28 anos, ao Dr. Pinheiro Torres, Ilustre Director da Ordem.
O prefácio, hoje em dia
em várias partes datado ou ultrapassado, pois, por exemplo o espectro do comunismo avassalante esfumou-se, ainda que alguns pobres diabos ocidentais mais gananciosos explorem a russofobia e o insuflem, ganhando algum dinheiro e apoio com isso, contém porém bastante idealismo cristão, sabedoria perene e crítica corajosa, que anunciavam o grande humanista português que ele viria ser, que vale a pena meditar.
José V. de Pina Martins, ao traduzir e prefaciar a obra de Berdiaeff clama sobretudo pela reabilitação do homem, denunciando a via perditionis, anti-humana e anti-divina do totalitarismo, então do comunismo e hoje o do imperialismo e globalismo ocidental do petrodolar e do sionismo, das indústrias farmacêuticas e dos armamentos, que acabaram por se tornar entidades opressivas, tirânicas, ou mesmo "diabólicas" ao serem adversárias, ou negarem o princípio da liberdade individual, forçando as pessoas a serem vacinadas, a alistarem-se para a guerra, a suportarem os gastos públicos extraordinários para armamentos, em detrimento da saúde física e psíquica e a prosperidade equitativa.
As análises das causas, na linha do que Berdiaeff e de Jacques de Maritain teciamam, discenidas por Pina Martins no crescimento de aceitação do materialismo histórico no Ocidente nos anos quarenta, continuam hoje aplicáveis em grande medida ao neo-liberalismo, ao imperialismo norte-americano, ao sionismo. Transcrevamos então algumas delas da sua valiosa introdução:
«Fácil foi aos agitadores comunistas realizar este trabalho de propedêutica psicológica e demagógica, dado que o mundo capitalista oferecia e ainda oferece o desolador panorama de uma hierarquia injusta e ilógica, com nítido pendor oligárquico, que leva à plutocracia, por um lado, e à escravização daqueles que nada possuem. O facto dos representantes do poder espiritual se terem esquecido, tantas vezes, de cumprir a sua missão, pelo que diz respeito à assistência dos humildes, e ainda estoutro facto de, frequentemente, se aliarem com as forças do capitalismo e do poder temporal no desrespeito ou esquecimento dos mais sagrados imperativos divinos- e a religião resume-se na caridade – contribui muito para a condensação do clima revolucionário em que se geram ou podem gerar todos os atropelos e todas as inversões, ainda os mais monstruosos, quais sejam os do materialismo económico.
Continuando a comentar a «demonstração brilhante e meridiana» do filósofo russo Berdiaeff, Pina Martins não se detém na crítica ao marxismo e materialismo e aponta certeiro, embora algo inflexível na sua ardência militante e de apostolado cristão juvenil ao Ocidente de então (e de hoje o liberalismo, a iniciativa liberal: «a perigosíssima heresia do individualismo liberal deixou, ao homem, a falsa liberdade de profissão religiosa, segundo o critério arbitrário de cada um, como se, perante a Verdade incriada e as inumeráveis mentiras fantasiadas pelo capricho humano, houvesse direito de opção. Isto estava na lógica rigorosa da essência agnóstica liberal e redundou, efectivamente, no sobredomínio do laicismo ante o magistério tradicional da doutrina cristã. Porquanto, partindo do pressuposto de que a religião é um problema de carácter apenas particular, fatalmente se há-de seguir e prosseguir no sentido de luta religiosa [ou talvez apenas menosprezo ou desprezo dela], pois a concepção cristã é absorvente e não admite, de modo algum, transigência, vacilações ou quebras morais.»
| Pina Martins, jovem |
Considera pois Pina Martins o liberalismo (expressão que usa sempre em vez de social-democracia, a qual Berdiaeff, mais crítico e até profético, utilizava bastante) um "escalracho daninho da heresia", e cita a condenação que o papa Pio IX lhe fez ou ainda o que Giovanni Gentile confessou na Mia religione: «O erro da Reforma, como viram bem os nossos pensadores do Renascimento, foi aquele de terem querido fazer da religião um assunto privado daquele indivíduo fantástico [ou fantasmático], que não é homem, espírito, mas um simples fantoche do homem colocado na espacialidade e temporalidade da natureza.»
E continuando na sua crítica forte e profética do liberalismo: «Eis o motivo por que, no nosso tempo, e mais perigosa do que a própria propaganda comunista, a doutrinações de certos católicos responsáveis, alguns com a cotação de pensadores e até filósofos, os quais não hesitam fazer a profissão de fé do seu cristianismo liberal, esquecidos, pelo menos, de dois factos: 1º que é em nome do liberalismo ideológico que a Igreja tem sido perseguida tantas vezes através da história e que o liberalismo é de natureza herética, perante o lídimo sentido da ortodoxia católica; 2º que pregar o liberalismo como adjuctório ou panaceia da cristianização é cair no paradoxo sacrílego de querer aliar Deus com o diabo, a Verdade com a mentira e preparar destarte, sob o pretexto de espalhar a fé e a caridade, o advento do anti-cristianismo que, na hora presente, se confunde com a ideia marxista-leninista»
Substitua-se hoje a ideia marxista-leninista pela do neo-liberalismo ou mesmo a social-democracia, na sua dimensão oligárquico globalista, e compreenderemos como o Ocidente se deixou infiltrar e tomar por tal ideologia relativista que na sua última versão foi denominada woke e que até há dois anos, comandada pelo presidente dos USA e a sua agência USAID corrompia e degenerava tantos grupos e nações, e ainda hoje se mantendo forte nas agendas da União Europeia.
Após citar algumas linhas do fantasmático e zelota Apocalipse, que não foi escrito pelo apóstolo João, valorizado como profético, aceitando a errada identificação de passagens do (Mosch) e Tobol (Tobolsk, na Sibéria), com a pretensão invasão da Europa pelos príncipes de Moscovo, algo que os que odeiam mais a Rússia invocam com regularidade (por vezes mesmo sacerdotes), José V. de Pina Martins aproxima-se do filósofo russo na contemporaneidade, citando Michel F. Sciacca que «chama a Nicholas Berdiaeff o pensador da transfiguração e divinização do homem", mas esclarece que é necessário «confessar, todavia, que essa transfiguração e essa divinização só podem efectivizar-se mediante Cristo, cabeça do corpo místico de que o homem é uma participação limitada", travando ou recusando assim excessivas ou exageradas divinizações do homem, ou melhor, realizações espirituais.
Do livrinho de Nicolas Berdiaeff, dividido em O Marxismo (A Origem filosófica do marxismo, A Ideia fundamental do marxismo, A Religião, ópio do povo, As Contradições do marxismo) e a A Religião do Marxismo (A Ideia do messianismo proletário, A Religião não é um assunto particular), transcrevamos dois dos passos mais ardentes ou significativos, e meditemos para os assimilar ou realizar intimamente melhor: «A personalidade humana tem, para o cristianismo, um significado absoluto: a alma humana tem mais valor que todos os reinos do mundo. A vida espiritual do ser humanos não pertence já, no seu todo, à sociedade; qualquer que seja a sua forma, está ligada à Igreja e não Estado, pertence ao Reino de Deus e não ao Reino deste mundo. Na base do cristianismo há o amor ao próximo, o amor do homem», e o parágrafo final: «Novos métodos são necessários para proteger o cristianismo, porque os antigos o comprometem. Só um cristianismo purificado, espiritualizado, aprofundado, que tome consciência dos seus deveres criadores tanto na cultura como na vida social, poderá vencer o espírito anti-cristão». Assim seja...

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