quinta-feira, 16 de outubro de 2025

O prefácio de Pina Martins ao "Marxismo e Religião", de Nicolas Berdiaeff. Ou como o Liberalismo globalista e ateísta é o adversário actual principal da religião e do cristianismo.

Nestes tempos de cacofonia provinda  de tanta gente impreparada, de tanta democracia que é mais uma ruídocracia (como lhe chamava Afonso Cautela), manipulada de interesses e partidos espalhafatosos e conflituosos, há que tentar elevar-nos a níveis mais filosóficos ou doutrinários e apresentar e redescobrir análises, ideias valiosas e  valores primordiais e perenes que tornam os seres humanos persona, isto é, por onde soa o espírito, e que ao longo dos séculos tantas vezes brilharam, embora estejam hoje encobertos, esquecidos ou mesmo perseguidos por um pragmatismo relativista e niilista que podemos chamar infrahumanista, ao reduzir o homem ao animal consumidor e manipulado e automatizado, sem identidades ou referências tradicionais de género, família, nação, religião.
Se nos anos trinta a cinquenta se podia traçar um campo de batalha entre o Ocidente e o mundo soviético, ou mesmo entre o Cristianismo e o Materialismo ateísta, com o desabar da comunismo soviético, não vimos crescerem os valores cristãos nas sociedades ocidentais mas sim os económicos neo-liberais pragmáticos e em grande parte indiferentes à justiça social e internacional e à situação psíquica e espiritual das pessoas.

                                       

Quem reflectiu com grande  acuidade e profetismo sobre tal confronto, pois conheceu-o in loco desde o seu início, foi Nicolas Berdiaeff (1874-1946, biografado sumariamente em https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2025/08/os-mestres-universais-russos-nicolas.html ), e que, depois de uma trajectória marxista evoluiu para o espiritualismo e anti-materialismo, foi convidado a sair da Rússia em 1922, com mais alguns intelectuais valiosos, tais Sergei Bulgakov e Ivan Ilyin,  assim destinados a exportar a grande alma russa para o Ocidente. Passando pela Alemanha será em França onde estabilizará desde 1924 e se relacionará fecundamente com intelectuais, teólogos e editores tornando-se uma voz importantíssima da Rússia sagrada, um filósofo existencialista, esoterista e místico cristão ortodoxo e universal muito lido e discutido.

                                  

Até às praias lusitanas chegaram as suas mensagens e delas fizeram eco, entre outros Leonardo Coimbra e José Vitorino de Pina Martins, que traduziu mesmo o Marxismo e a Religião em 1948, ainda sob o pseudónimo de Duarte de Montalegre, para a colecção Mensagem, iniciada em 1941, com Pergunta de Pilatos, do mesmo Duarte Montalegre, isto é, José V. de Pina Martins. Sabe-se pouco desta aventura editorial, Mensagem. Pensamento e Doutrina, que assinalava na folha preliminar ter a direcção de José Charters e José Vitorino de Pina Martins, e o fino livrinho  leva o prefácio da página 9 à 30, seguindo-se a obra de Berdiaeff, até à página 118. O exemplar consultado foi oferecido por Pina Martins numa dedicatória na sua letra espraiada, jovem de 28 anos, ao Dr. Pinheiro Torres, Ilustre Director da Ordem.

O prefácio, hoje em dia em várias partes datado ou ultrapassado, pois, por exemplo o espectro do comunismo avassalante esfumou-se, ainda que alguns pobres diabos ocidentais mais gananciosos explorem a russofobia e o insuflem, ganhando algum dinheiro e apoio com isso,  contém porém bastante idealismo cristão, sabedoria perene e crítica corajosa, que anunciavam o grande humanista português que ele viria ser,  que vale a pena meditar.
José V. de Pina Martins, ao traduzir e prefaciar a obra de Berdiaeff clama sobretudo pela reabilitação do homem, denunciando a via perditionis, anti-humana e anti-divina do totalitarismo, então do comunismo e hoje  o do imperialismo e globalismo ocidental do petrodolar e do sionismo, das indústrias farmacêuticas e dos armamentos, que acabaram por se tornar entidades opressivas,  tirânicas, ou mesmo "diabólicas" ao serem adversárias, ou negarem o princípio da liberdade individual, forçando as pessoas a serem vacinadas, a alistarem-se para a guerra, a suportarem os gastos públicos extraordinários para armamentos, em detrimento da saúde física e psíquica e a prosperidade equitativa.
As análises das causas, na linha do que  Berdiaeff e de Jacques de Maritain teciamam, discenidas por Pina Martins no crescimento de aceitação do materialismo histórico no Ocidente nos anos quarenta, continuam hoje aplicáveis em grande medida ao neo-liberalismo, ao imperialismo norte-americano, ao sionismo. Transcrevamos então algumas delas da sua valiosa introdução:
«Fácil foi aos agitadores comunistas realizar este trabalho de propedêutica psicológica e demagógica, dado que o mundo capitalista oferecia e ainda oferece o desolador panorama de uma hierarquia injusta e ilógica, com nítido pendor oligárquico, que leva à plutocracia, por um lado, e à escravização daqueles que nada possuem. O facto dos representantes do poder espiritual se terem esquecido, tantas vezes, de cumprir a sua missão, pelo que diz respeito à assistência dos humildes, e ainda estoutro facto de, frequentemente, se aliarem com as forças do capitalismo e do poder temporal no desrespeito ou esquecimento dos mais sagrados imperativos divinos- e a religião resume-se na caridade – contribui muito para a condensação do clima revolucionário em que se geram ou podem gerar todos os atropelos e todas as inversões, ainda os mais monstruosos, quais sejam os do materialismo económico.
Continuando a comentar a «demonstração brilhante e meridiana» do filósofo russo Berdiaeff, Pina Martins não se detém na crítica ao marxismo e materialismo e aponta certeiro, embora algo inflexível na sua ardência militante e de apostolado cristão juvenil ao Ocidente de então (e de hoje o liberalismo, a iniciativa liberal: «a perigosíssima heresia do individualismo liberal deixou, ao homem, a falsa liberdade de profissão religiosa, segundo o critério arbitrário de cada um, como se, perante a Verdade incriada e as inumeráveis mentiras fantasiadas pelo capricho humano, houvesse direito de opção. Isto estava na lógica rigorosa da essência agnóstica liberal e redundou, efectivamente, no sobredomínio do laicismo ante o magistério tradicional da doutrina cristã. Porquanto, partindo do pressuposto de que a religião é um problema de carácter apenas particular, fatalmente se há-de seguir e prosseguir no sentido de luta religiosa [ou talvez apenas menosprezo ou desprezo dela], pois a concepção cristã é absorvente e não admite, de modo algum, transigência, vacilações ou quebras morais.»

Pina Martins, jovem 
Nestas considerações vemos ecos do jovem militante da juventude católica e animando os seus companheiros a lutarem contra todas formas de niilismos, ateísmos, materialismos, liberalismos, sem quebras ou condescendências, algo que porém nos nossos dias não teria de ser criticado em muito cristão verdadeiro, que pode ser mais tolerante com a diferença materialista ou apenas indiferença dos que o rodeiam, sem com isso se deva considerar que vacilou ou transigiu na sua fé...
Considera pois Pina Martins o liber
alismo (expressão que usa sempre em vez de social-democracia, a qual Berdiaeff, mais crítico e até profético, utilizava bastante) um "escalracho daninho da heresia", e cita a condenação que o papa Pio IX lhe fez ou ainda o que Giovanni Gentile confessou na Mia religione: «O erro da Reforma, como viram bem os nossos pensadores do Renascimento, foi aquele de terem querido fazer da religião um assunto privado daquele indivíduo fantástico [ou fantasmático], que não é homem, espírito, mas um simples fantoche do homem colocado na espacialidade e temporalidade da natureza.»
E continuando na s
ua crítica forte e profética do liberalismo: «Eis o motivo por que, no nosso tempo, e mais perigosa do que a própria propaganda comunista, a doutrinações de certos católicos responsáveis, alguns com a cotação de pensadores e até filósofos, os quais não hesitam fazer a profissão de fé do seu cristianismo liberal, esquecidos, pelo menos, de dois factos: 1º que é em nome do liberalismo ideológico que a Igreja tem sido perseguida tantas vezes através da história e que o liberalismo é de natureza herética, perante o lídimo sentido da ortodoxia católica; 2º que pregar o liberalismo como adjuctório ou panaceia da cristianização é cair no paradoxo sacrílego de querer aliar Deus com o diabo, a Verdade com a mentira e preparar destarte, sob o pretexto de espalhar a fé e a caridade, o advento do anti-cristianismo que, na hora presente, se confunde com a ideia marxista-leninista»
Substitua-se ho
je a ideia marxista-leninista pela do neo-liberalismo ou mesmo a social-democracia, na sua dimensão  oligárquico globalista, e compreenderemos como o Ocidente se deixou infiltrar e tomar por tal ideologia relativista que na sua última versão foi denominada woke e que até há dois anos, comandada pelo presidente dos USA e a sua agência USAID corrompia e degenerava tantos grupos e nações, e ainda hoje se mantendo forte nas agendas da União Europeia.
Após citar algu
mas linhas do fantasmático e zelota Apocalipse, que não foi escrito pelo apóstolo João,  valorizado como profético, aceitando a errada identificação de passagens do (Mosch) e Tobol (Tobolsk, na Sibéria), com a pretensão invasão da Europa pelos príncipes de Moscovo, algo que os que odeiam mais a Rússia invocam com regularidade (por vezes mesmo sacerdotes), José V. de Pina Martins aproxima-se do filósofo russo na contemporaneidade,  citando Michel F. Sciacca que «chama a Nicholas  Berdiaeff o pensador da transfiguração e divinização do homem", mas esclarece que é necessário «confessar, todavia, que essa transfiguração e essa divinização só podem efectivizar-se mediante Cristo, cabeça do corpo místico de que o homem é uma participação limitada", travando ou recusando assim excessivas ou exageradas divinizações do homem, ou melhor, realizações espirituais. 
Realçará porém antes dessa linha transfigurante da mística ortodoxa  russa que  «encontra-se Berdiaeff no seguimento tradicional do magistério paulino, agustiniano e pascaliano, sem que, por outro lado, prescinda do muito que recebeu de Dostoievsky, Kierkegaard e Soloviev. Analizada com certa profundeza a essência da sua filosofia, ter-se-á de reconhecer que ela se ressente, inegavelmente, de um conceito existencial do homem – existencialismo cristão, pela concorrência de influxos ideológicos afastados [do Oeste e do Este europeu], mas que, no sentido místico do pensamento de Berdiaeff, encontram a adequação necessária» e concluirá:«que continua a ser o filósofo do movimento doutrinário anti-comunista da Europa, e portanto do Cristianismo militante desta hora, [e nele] está contudo, porventura, o mais belo exemplo de espiritualidade europeia, dado por um russo medularmente anti-marxista». Nas linhas finais expressando a mesma sensibilidade de jovem católico militante inquieto com os espectros imaginativos do marxismo, Pina Martins ergue a voz em oração: «Salvai-nos, Senhor, que perecemos».

Do livrinho de Nicolas Berdiaeff, dividido em O Marxismo (A Origem filosófica do marxismo, A Ideia fundamental do marxismo, A Religião, ópio do povo, As Contradições do marxismo) e a A Religião do Marxismo (A Ideia do messianismo proletário, A Religião não é um assunto particular), transcrevamos dois dos passos mais ardentes ou significativos, e meditemos para os assimilar ou realizar intimamente melhor: «A personalidade humana tem, para o cristianismo, um significado absoluto: a alma humana tem mais valor que todos os reinos do mundo. A vida espiritual do ser humanos não pertence já, no seu todo, à sociedade; qualquer que seja a sua forma, está ligada à Igreja e não Estado, pertence ao Reino de Deus e não ao Reino deste mundo. Na base do cristianismo há o amor ao próximo, o amor do homem», e o parágrafo final: «Novos métodos são necessários para proteger o cristianismo, porque os antigos o comprometem. Só um cristianismo purificado, espiritualizado, aprofundado, que tome consciência dos seus deveres criadores tanto na cultura como na vida social, poderá vencer o espírito anti-cristão». Assim seja...

                                                

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