sexta-feira, 14 de março de 2025

Camões, Inês de Castro e Dom Pedro, fiéis do Amor. Breve hermenêutica da transmissão nos Lusíadas.

Quem relê a narrativa poética camoniana de Inês e Pedro admira-se certamente da classificação de "mísera e mesquinha" que surge no Canto III, estância CXVIII, sobretudo tendo em conta a simpatia que Camões exprime pelo desventurado casal, pelo que é levado a pensar se terá sido mesmo a redação original pois, como cavaleiro de Amor que era Camões, tal como Damião de Goes, Jorge Ferreira de Vasconcelos e outros, podiam sofrer os tratos de censura ou mesmo de polé da inquisição e dos seus esbirros, pelo  que o "mísera e mesquinha" poderia ser expressão derivada da visão de poder do Estado e da Igreja contra o amor natural não conveniente.

Será Manuel Faria e Sousa  (18.III.1590 a 3.VI.1649)  nos seus  comentários aos Lusíadas, eruditíssimos e por vezes mesmo esotérico, anagógicos, espirituais quem nos esclarece que a expressão mísera fora empregado em relação a Vénus por poetas greco-romanos e que fora mesmo usada em relação a Maria, mãe de Jesus, por Sannazaro (1458-1530), no De Partu Virginis, fazendo assim Camões uma comparação de sacralização, cripticamente, subterraneamente: Inês como uma ungida do alto.
Camões, apostrofa criticamente o Amor puro por ter causado tal encontro fatal ou desventurado, mas depois vai-nos apresentar Inês com tal doçura, amor e sabedoria, que nos empatiza com ela imediatamente, erguendo-a uma santa
mártir do Amor.
As estâncias 120 e 121 do Canto III dos Lusíadas são maravilhosas de ensinamentos e de evocação ou invocação de Inês:

"Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam.
E quanto, em fim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria."

A profunda osmose de Inês com a Natureza e com o seu amado é descrita com grande sensibilidade, e assim os seus olhos, pela doçura amorosa e a saudade, conservam a ligação à correnteza transparente do rio Mondego e extravasam-na no marejamento de felicidade que brota do olhar, enquanto o coração irradia orficamente, ou seja com o poder mágico da palavra, dando o nome, não das próprias ervas como os míticos Adão e Eva deram segundo o Genesis, mas do seu amado, do seu "deus", Pedro, compartilhando o seu mantra, a sua palavra passe para entrar no reino dos Céus na Terra, o do Amor, o que reintegra os dois na unidade. Tal pronúncia de um nome ou mantra com muito amor é beatífica não só para os dois, como benéfica para  todos os que a ouvem e que não são contra ele, que não estão amilhazados em ódios e fobias, que não são contra a verdade do amor...

Luís de Camões acrescenta ainda  que tal presença amorosa em som está escrito no peito, o que quer dizer que está viva no coração espiritual, no íntimo e cerne da alma, que está escrito nele pelo efeito do muito o sentir, ver, pensar, amar, pronunciar, meditar, invocar...

Da alma lhe brotam então constantes voos de pensamento para ele, memórias alegres do amor reciprocado, em graças de gestos e comunhão de sentimentos enraizados e que mesmo nos sonhos se concretizam ou então adivinham, traçam e projectam venturas.

Entra em seguida Camões na fase trágica do casal  criticando a  intenção indigna de assassinarem um fraca dama delicada, ou de matarem o fogo acesso do firme amor, esta uma bela descrição do amor firme em si: um fogo acesso que arde sempre...

Na descrição da hesitação do rei Afonso IV, encontramos uma nova analogia com Jesus e Maria,  pois atribui ao povo a vontade de que ela morra, persuadindo o rei com falsas razões para que ela morra. Como se Inês fosse outro Cristo, condenado à morte  pelos próprios judeus.

Ora sabemos e Camões sabia que não fora o povo mas sim os inimigos de D. Pedro, conselheiros do rei seu pai, e chamar-lhe-á mesmo  ministros rigorosos, perante os quais e o rei Afonso IV, Inês invoca a Divindade e o corpo místico dos santos e santas, ao levantar para o céu cristalino os seus olhos, e ao mostrar os três filhos e ao erguer a voz por ajuda e piedade, num discurso imaginal camoneano que tem ainda a peculiaridade de apresentar uma solução que satisfaria as pretensas ou invocadas razões de Estado sem a matar:  desterrem-me na Cítia fria ou na Líbia ardente e onde possa cuidar ou educar os rebentos ou relíquias de nosso amor flamejante.

Não movidos à piedade, o povo e os carniceiros feros que se consideram cavaleiros, e eis uma nova condenação de Luís de Camões ao acto, lançam mão às armas e matam-na, "brutos matadores", "fervidos e irosos", mais uma vez Camões posicionando-se como um cavaleiro do Amor e criticando o crime contra o Amor. 

Ao poder mantrico do nome pronunciado com amor, seja o da Divindade, ou uma das suas manifestações terrenas, o profeta, imam, guru, deus, seja o do Amado, Pedro nesta união, volta Luís de Camões com uma belíssima visão-criação-sugestão do seu poder órfico, ou melhor ainda psico-mórfico, o da psique modeladora das formas materiais: cultua o deus Eco, presente nos concavos vales, humildes e amorosos que acolhem os últimos sons  de Inês,  o nome do seu Pedro, repetindo-o pelas reentrâncias e diremos pela eternidade, "até ao fim do mundo", como o próprio D. Pedro escolheu para legenda da sua maravilhosa estátua jacente, no mosteiro de Alcobaça, junto a Inês.

A comunhão das almas amorosas com a Natureza é ainda testemunhada e realçada poetica e miticamente por Camões, pois depois de repetirem ou ecoarem o santo nome os côncavos vales e montes, também as ninfas e nereidas do Mondego e das fontes não deixam perder as vozes e lágrimas de Inês e  alquimizam o líquido sentimento e sangue amoroso de Inês fazendo-o correr pelo rio e brotar por uma fonte, na que se virá a denominar a Quinta das Lágrimas.

Perenizada Inês na Natureza sagrada a que ela pertencia, restará a Camões apenas nomear brevemente D. Pedro como um justiceiro, de certo modo apoiando o seu comportamento em relação aos assassinos de sua mulher e futura rainha. 


Não fala Camões dos monumentos imortalizadores de Alcobaça, e cremos que não terá conhecido os sublimes túmulos, senão mais beleza e transcendência conseguiria talvez cantar no amor até ao fim do Mundo de Inês e de Pedro; mesmo assim ergueu-o magnificamente como o episódio mais longo dos Lusíadas e contribuindo deste modo para a sua sacralização e imortalização  na grande alma portuguesa, e desafiando-nos a sermos cavaleiros do Amor. E contra os inimigos da alma, da justiça, da humanidade, do Amor, tão activos nestes tempos de manipulação e alienação nas narrativas e instâncias oficiais do globalismo infrahumanista dominante ocidental, sabermos lutar, iluminar, vencer e harmonizar, como fiéis do Amor!

Sejamos fiéis ao Amor de Pedro e Inês, cavaleiros como o de Antero Quental  no seu poema Amor-Mors, e arda invencível em nós o fogo cósmico e imanente do Amor Divino.

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