terça-feira, 29 de março de 2022

Um dito de Jesus bem actual: - Vim trazer fogo, espada e divisão à Terra e quero que ela arda. O Evangelho de S. Tomé nos nossos dias.

Os ensinamentos e ditos do mestre Jesus são de  valor perene e em tempos algo turvados ou desassossegantes, de lutas locais e globais, por vezes necessárias e até para a separação do trigo do joio, será bom lembrar-nos de um ou outro mais actual e meditá-lo. Como se sabe o Evangelho de S. Tomé é  bastante considerado por ser, com algumas cartas de S. Paulo,  dos documentos mais antigos do Cristianismo, provavelmente redigidos entre 50 e 60, e é dele que extraímos o dito, ou logion 16, dos cento e quatorze que perfazem tal compilação de frases de Jesus, escrita em copta num mosteiro no Egipto e que foi descoberto só no séc. XX,  dito que é até corroborado pela sua existência em dois dos evangelhos canónicos. Oiçamo-lo então:

                                                            
16. «Disse Jesus: Sem dúvida pensam os homens que eu vim para deitar a paz ao mundo e não sabem que vim lançar divisões na Terra, o fogo, a espada, a guerra. Cinco, com efeito, serão numa casa, e três serão contra dois, e dois contra três, e o pai contra o filho e o filho contra o pai, e eles estarão de pé como solitários.»
 
Esta frase, de uma actualidade cadente, vem lembrar-nos como a demanda da verdade e da justiça pode ter que esfriar ou diminuir certos laços de amizade ou mesmo de família e aumentar as divisões entre as pessoas, isolando-as até. Frase que surge também no evangelho de S. Mateus, ainda que de outro modo, em 10, 34: «Não pensais que eu vim anunciar a paz na Terra; não vim para trazer a paz, mas a espada. Vim portanto para causar dissensões e para fazer o homem contra o pai, a filha contra a mãe, a mulher contra o marido. Quem amar o seu pai e a sua mãe mais do que a mim não é digno de me seguir.»
As diferenças entre elas são pequenas, a versão de Tomé não inclui porém a relação discipular, pela qual a ligação ao mestre, ou ao que ele vive, incarna ou intermediariza, é mais forte que qualquer outro vínculo, provavelmente porque noutros ditos do evangelho de S. Tomé tal é de facto transmitido.
Em S. Lucas, XII, 50-53, encontramos as mesmas ideias e imagens, embora antecedidas duma bela afirmação: «Eu vim trazer o fogo à Terra e quero que ele arda», realçando depois que não é a paz mas a divisão que traz. E assim aconteceu ao longo dos séculos, e até aos nossos dias a espada, seja da polémica seja da guerra, não deixou de estar em acção. O nosso Erasmo, que esteve no cerne da união da sabedoria greco-latina e cristã, e das polémicas do séc. XVI e da Reforma, escreveu nesse sentido uma obra intitulada Enchiridion Militis Christiani, que significa tanto um manual como um punhal, do cavaleiro ou militar cristão, onde ensinava a ganhar a batalha pela iluminação ou salvação da alma, sendo um sucesso grande na época. Algo desse saber publiquei na tradução comentada da sua obra Modo de Orar a Deus.
Já quanto à natureza desse fogo, e se ele sendo o do Amor será também guerreiro, é uma questão profunda e cada ser,  caso a caso, deverá discernir a justificação de actos que aparentemente e na realidade são violentos, mas que podem ser necessários, de acordo até com o dito popular "grandes males grandes remédios", ou mesmo de Jesus, "os que fizerem mal às crianças", algo ainda hoje ocorrendo, "deviam ser lançados com uma pedra de moinho ao pescoço no mar", a que podemos acrescentar na vida de Jesus os episódios da expulsão dos vendilhões do templo e as críticas fortíssimas, maldições mesmo, contra os hipócritas sacerdotes e fariseus...
Na versão do Evangelho de Tomé, mais do que "o seguir o mestre", que será adoptado pelo catolicismo, e algo explorado até por vezes, surge antes o estar isolado, solitário, livre dos laços e manipulações familiares e sociais, e é bem compreensível no ensinamento de Jesus Cristo, se pensarmos que ele, como mestre, veio para erguer os seres verticalmente, isolá-los ou libertá-los das relações horizontais que os alienam e devolvê-los à sua consciência autónoma, ética, dinâmica e espiritual de filhos ou filhas emanados de Deus, e não só os discípulos de então, mas todos os que o acolherão, ou o seu amor libertador, num devir histórico no qual, como ele terá previsto, muitos contudo se oporão a muitos...
É um revolucionário, um despertador espiritual, quem fala e age. A História da Humanidade não será mais a mesma, tal como se passara com a vinda de Zaratustra, Krishna e Buda no Oriente, ou Maomé nos países árabes. A sua impulsão foi poderosa e ainda o é e, embora exteriormente os grandes feitos arrefecessem no Cristianismo, aqui e acolá há ainda construções e clarões na noite, tais os actos ou vidas de certos místicos, sacerdotes, santos, freiras ou fiéis, ou as manifestações mais humildes sacrificiais de tanta gente simples em vidas duras e abnegações grandes...
Mas a mensagem fermenta eternamente, porque dentro de nós se pronuncia a todo o momento, enquanto tónica ou essência do ser e do mundo espiritual e divino em cada um e na humanidade terrena, mesmo vibrando em consciências ateias ou agnósticas, apelando à justiça, à verdade e ao amor libertador.
Podemos perguntar, quem está de pé, verticalizado?
Serão os bons e dos maus, os do amor e os do ódio, ou, se quisermos, os que aspiram seja a Deus e à sua ordem e solidariedade, seja a uma humanidade natural e livre,  e os que se opõem à manifestação de tal e querem uma nova ordem artificial desumana? 
Deveremos limitar-nos ou envolver-nis muito em dualismos exteriores? Deveremos antes lutar contra as nossas tendências  ou de outros próximos, que ferem e desequilibram, e que nos rebaixam, sub-animalizam e intensificam o egoísmo, a crueldade, o ódio e logo o mal? Ou deveremos dar ao mundo e a nós tanto o amor como a justiça?
Talvez no fundo a mensagem do mestre Jesus tenha sido mais simples do que pensamos: descobre o teu ser espiritual e de amor e vive libertadoramente, só que a sociedade moderna consumista, mediática e tão manipulada tem-se tornado de tal forma gigantesca e absorvente, e é tal a carga que recebemos e a luta pela sobrevivência que enfrentamos, que poucos conseguem recolher-se dentro de si mesmos, ou seja, poucos conseguem esvaziar-se, desprender-se e sentirem-se a si próprios, veramente Espíritos individualizados e alinhados com a sabedoria e amor que constituem a nossa essência, potencial e meta, e assim fortificarem-se para resistir aos cinzentismos opressivos de governos, grupos e novas ordens artificiais...
Quanto ao reino do Céu na Terra (e que aliás era interior e "já estava no meio de vós", no dizer de Jesus), se o equacionamos a uma paz geral planetária isso vai demorar certamente muito a estabelecer-se, pois demasiados líderes e políticos, e os que os apoiam e manipulam, ainda estão no egoísmo, falta de visão e violência,  e até com grande inconsciência e irresponsabilidade nos seus intuitos de manipularem e oprimirem a Humanidade. Tal contudo não deve impedir a nossa postura e modo de vida verticalizante, alinhado ou orientado por princípios e fins éticos e espirituais e no qual, de quando em quando, nos erguemos mais intensamente unindo Céu e a Terra, o supra-consciente e o consciente, comungando com o fogo divino do Amor que Jesus lançou ou manifestou mais na Terra, comungando-o com outro ser ou outros seres, e partilhando-o em discernimento clarificador, tão necessário face ao ocultamente ou distorcimento das causalidades dos acontecimentos e conflitos que nos rodeiam ou pesam.
Saibamos pois não desanimar perante os ataques e oposições mais violentas e, com a espada da palavra justa e o fogo do amor, possamos dissipar ou dissolver a ignorância e a manipulação, a mentira e o ódio, e contribuir para  que a verdade e a justiça, a fraternidade e a paz se estabeleçam mais nas almas humanas e na Terra, com o Amor a arder iluminadora e divinamente.
Santa Sophia protegendo cidades e pessoas, pelo pintor russo Nicholai Roerich.

3 comentários:

Ana Cristina Figueiredo disse...

Inspirador e apaziguador nestes tempos conturbados que vivemos. Bem-haja

Ana Cristina Figueiredo disse...

Inspirador e apaziguador em tempos tão conturbados. ..

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas, Ana Cristina. Tentemos manter-nos na sabedoria e no amor e contribuamos para a lucidez, a justiça e a paz nos subcampos unificados de energia e consciência, algo perturbados, sim... Abraço luminoso.