Erasmo (1466-1536) foi sem dúvida uma das grandes almas e vozes do Renascimento europeu, durante alguns anos, no começo do século XVI, mesmo o mais escutado e admirado dos humanistas pela sua grande sabedoria e mestria, amigo do nosso Damião de Goes que foi até Friburg para com ele aprender e confabular. As suas obras mais imortalizadas são certamente o Elogio da Loucura, os Colóquios e os Adágios, onde a sabedoria e erudição, e a crítica bem irónica dos costumes e crenças do seu tempo, brilham imorredoiramente, pesem as censuras, ataques e proibições que sofreram. Mas, claro, tendo sido obrigado pelos tutores, por morte do pai, a tornar-se um clérigo, muito do seu labor foi dedicado à religião cristã e a uma purificação e retorno às fontes autênticas, para isso contribuindo com uma nova versão do Novo Testamento, com o seu Manual do Cavaleiro cristão, o Modo de Orar a Deus (que traduzi com Álvaro Pereira Mendes, e comentei) e com as numerosas edições críticas pioneiras dos primeiras padres da Igreja, traduzindo do grego para latim, então a língua franca europeia, por exemplo, Orígenes e Clemente de Alexandria.
Frontispício da edição aldina de 1508, constitucional e evocadoramente um Graal.. |
A recolha comentada dos Adágios ou Provérbios, a que chamou um depósito de Minerva, a Deusa da Sabedoria, teve sucessivas impressões, tendo começado em Paris em 1500, a Collectanea Adagiorum, com 808, crescendo, após e graças à sua estadia em Itália de 1506 a 1508 na oficina e sodalidade do impressor e humanista Aldo Manuzio, para os 3.000, saindo então nos seus prelos venezianos a Adagiorum chiliades tres, reproduzida ao alto E por fim chega aos 4.151 adágios na edição final de 1533, de Basileia, no seu amigo Froben, Adagiorum chiliades quator cum..., Quatro Milhares de Adágios...
Entre eles, alguns foram crescendo na profundidade e tamanho do comentário ou glosa, que já não era só filológico e literário mas bastante moral, irónico, político e espiritual, e como nos tempos da sua vida alternaram ora dissensões e guerras ora concórdia e grandes esperanças de uma paz geral (sob a égide da República das Letras e dos soberanos abertos a ela), um adágio destacou-se: o famoso Dulce Bellum inexpertis, a guerra só é doce para quem a desconhece, que chegou mesmo a ser editado autonomamente com o título Bellum, Guerra. E como as lutas entre o papado, os reis, os estados cristãos e os turcos fendiam de tal modo tumultuosamente a sua época, sob a mesma temática dará a luz a sentida Lamentação da Paz, Querela Pacis, em 1517 (ano em que se escusou a acompanhar o imperador Carlos V a Espanha), a qual teve também grande sucesso, nomeadamente em Espanha, bastante erasmista na época, com duas edições logo em 1520 e 1529, como o historiou nos nossos dias magistralmente Marcel Bataillon, grande amigo do nosso notável erasmiano e moriano José V. de Pina Martins.
Resolvi então eu traduzir, bem laboriosamente, do latim de uma edição quinhentista, e cotejando com a tradução espanhola de Lorenzo Riber (na Aguilar, 1964) o começo do longo comentário do Adágio, pois vive-se hoje na Europa um conflito importante, que tem agitado e dividido bastante a opinião pública, pesem os mass media seguirem na sua generalidade uma narrativa oficial que sabemos nunca corresponder aos factos mas que influencia muito as populações e as suas almas e ânimos, levando-as frequentemente a comportamento e pensamentos pouco verdadeiros e nada adequados à serenidade e imparcialidade de observação e julgamento. Possam estas palavras e imagens, ideias e conhecimentos sábios e belos do perene Erasmo, desde o "beijo que une as almas" à "centalhazinha divina", tocarem algumas pessoas e contribuírem para o auto-conhecimento e o discernimento e para uma maior aplicação e vivência da verdade, da justiça e da paz...
Gravura dada por José V. Pina Martins. Erasmo abençoando-nos: Sancte Erasme, ora pro nobis. |
Começo do Quarto Milhar dos Adágios de Erasmo, o 4.001...
«Um adágio tão elegante quão celebrado pelos escritores é lcys apeiro polemos, isto é, dulce bellum inexperto, a guerra
é doce para quem não conhece. Isto diz-nos Vegecio no
livro III, cap. XIV, do seu Tratado de Arte Militar: «Não confies muito no noviço que cobiça o prélio, pois a luta só é doce para quem não a provou.»
De Píndaro cita-se: «a guerra é agradável ao que a desconhece, mas para a quem a
experimentou, ela é horrível no seu coração». Na vida dos mortais há coisas que antes de
experimentadas não se consegue discriminar quantos perigos e infortúnio trazem consigo.
"Apetecível para quem não a conhece é o cultivar da amizade com um poderoso; mas quem a experimentou, teme-a".
É vista como bela e esplêndida a possibilidade de se andar entre pessoas importantes e
discorrer-se sobre os assuntos dos governantes; mas os que conhecem penosamente tal, abstêm-se de beber de tal felicidade. Parece suave amar jovens mulheres, mas só aos que ainda não sentiram quanto de amargo traz [ou pode trazer] o amor consigo.
Por esta norma general poderá medir-se qualquer assunto que ande misturado com muitos perigos e junto a muitos males, já que ninguém o quererá tomar sobre si, a não ser que seja jovem e inexperiente.
A propósito de isto, Aristóteles, na sua Retórica, adverte quanto à razão da juventude ser mais audaz e a velhice mais tímida: porque naqueles a inexperiência gera confiança e nestes o
conhecimento pessoal de muitos males causa timidez e inações. Pelo que se há algo nas coisas mortais que importa fugir por todos os modos, evitar pela oração e afastá-lo é sem dúvida a guerra, que é a coisa mais ímpia, a mais largamente perniciosa, mais pegajosamente tenaz, mais
tétrica, e mais indigna do ser humano, para não dizer cristão.
E contudo é incrível como hoje até que ponto e com que temeridade e quanto por qualquer causa fútil se declara a guerra e com
quão feroz bestialidade e barbárie se a leva para a frente, não tanto
pelos não cristãos como pelos cristãos; e algo não só pela gente profana, mas por
sacerdotes e bispos; e já não só por jovens e inexperientes, mas verdadeiramente até por
anciões plenamente experientes; e não exclusivamente por
plebeus e de natureza vulgar mas por príncipes ou governantes cujo ofício era compor com a
prudência e a razão os os costumes temerários e estultos das massas. E
não faltam jurisconsultos [ou homens públicos] e teólogos [ou pensadores] que a esta actividade tão nefasta ainda juntam lume e pingos de água fria.
Resulta de todos estes antecedentes que nos nossos dias a guerra é algo tão
aceite e corrente que as pessoas admiram-se que haja quem não a
aprecie; é em geral tão aprovada, que se tem por impiedade e, estou
pronto a dizer, por heresia, reprovar-se uma coisa, a mais celerada e miserável de todas.
Quão mais justo fora interrogar-nos que mau génio, que peste, que intempérie, que fúria
foi a primeira a pôr na mente dos homens uma animosidade tão selvagem,
que impulsionará a uma criatura tão plácida, gerada para a paz e a
benevolência, a única dada à luz para a salvação, a precipitar-se com feroz
vesânia, com tão insanos tumultos, à destruição mútua!
Início do adágio numa edição antiga. |
E tanto maior
será o assombro de quem, afastando a sua atenção das opiniões aceites
pelas pessoas normalizadas, e a dirige para apreciar a força e
natureza das coisas, e contempla, por um momento separadamente, a imagem do ser humano por um lado, e por outro o
simulacro da guerra, com olhos de verdadeiro filósofo.
Ora ao considerar-se em primeiro lugar a figura e o corpo humano, por acaso não se compreenderá logo que
a Natureza, ou antes Deus, gerou este
ser animado não para a guerra mas para amizade; não para a destruição mas salvação, não para a injúria mas a beneficiência? Enquanto que cada um dos outros seres animados está provido de armas, tal o ímpeto do touro armado de cornos, a raiva do leão com unhas-garras...»
[Seguem-se uma série linhas de exemplos de como os animais tem consigo as suas próprias armas, tais como cornos, unhas, venenos, etc...]
Nosso querido amigo na sodalidade da cavalaria do Amor |
«Só ao ser humano produziu-o nu, frágil, terno, sem defesas, de carne flexível e pele delicada. Não se pode ver nos seus membros algo que tenha sido dado para a luta ou violência, para não mencionar entretanto que, na generalidade, os outros desde que nascem, bastam-se a si mesmos para cuidarem da vida, só o ser humano sendo produzido de modo a que por muito tempo dependa do subsídio ou apoio alheio. Não sabe falar nem andar nem captar alimento; implora auxílio apenas com vagidos. De tudo isto pode-se facilmente deduzir que é o único ser animado nascido plenamente para a amizade e que, por serviços mútuos, se une e adquire coerência social. Por onde, a Natureza quis que fosse aceite o dom da vida, não tanto para o seu próprio bem como para o dos outros e que estivesse bem ciente de que fora dedicado as graças [ou musas], à compreensão de si e às relações necessárias.
As três Graças, numa sanguínea de Rafael. |
Deu-lhe uma aparência não tétrica nem horrenda, como aos outros, mas suave e plácida, para manifestar sinais de amor e de benevolência. Deu-lhe olhos amigáveis, e nestes sinais da alma. Deu-lhe braços generosos para abraçar. Deu-lhe o sentido do beijo, para que deste modo se juntem e se relacionem sexualmente as almas.
Abraço de todo o ser, beijo de união. Em Hypnerotomachia Polifilo, de Colona. |
Só a ele atribui o riso, indício
de alegria; e a ele só deu as lágrimas, símbolo da misericórdia e da
clemência. E deu-lhe a voz, nem ameaçadora nem horrenda, como às feras, mas sim amiga e branda.
E não contentando-se com isso a Natureza só a ele atribui uso da palavra e razão, ambas as coisas muito importantes para se ganhar e alimentar a benevolência, para que nada se faça à força entre os homens. Inseriu a repulsão da solidão e o amor da sodalidade [ou companhia amiga], e introduziu interiormente a semente da benevolência. Fez com que o mais salutar fosse também suavíssimo. Que coisa mais agradável que um amigo, e igualmente mais necessária? Portanto se fosse possível viver comodamente a vida sem comércio mutuo, nada pareceria agradável sem companhia, a não ser que alguém abandonasse completamente a sua humanidade e degenerasse em fera.
Juntou ainda mais o estudo das disciplinas liberais e a aspiração ardente ao conhecimento; algo que assim como afasta poderosamente o engenho humano de toda a ferocidade assim também tem força especial para conciliar as necessidades. Pelo que nem afinidade nem o parentesco carnal une os ânimos com vínculos de amizade mais apertados e firmes como a sociedade [sodalidade, grupo, fraternidade] de estudos honrados. E acima disto distribui uma admirável variedade de dotes entre os mortais, assim das almas como dos corpos, de tal modo que cada um deles encontra as qualidades que amassem ou admirassem por sua excelência ou que por sua utilidade e necessidade ambicionassem e abraçassem.
A centelhazinha divina em nós, em Bô Yin Râ. |
Finalmente deu uma centelhazinha [ou estrelinha] do espírito [mens] divino para que sem a ostentação de prémio, mas por si mesmo ajudassem ao bem de todos. Na verdade isto é sumamente natural de Deus, no seu olhar pelo bem do universo.
Por outra parte, que volúpia é aquela que o nosso ânimo sente de modo algum vulgar quando percebemos que alguém foi salvo por nós? E por isso mesmo um ser é caro ou querido por outro ser, por estar-lhe obrigado por algum insigne benefício.
Pelo que Deus neste mundo constitui o ser humano como uma certa imagem [ou simulacro] de Si mesmo, para que, tal como uma divindade [numem] terrena, propiciasse a salvação de todos.
Sentem isto também até os animais, tal como vemos que não só os mansos mas também os leopardos e os leões e outras ainda mais ferozes, nos grandes perigos refugiam-se sob poder [opem] do ser humano. Este é o santuário extremo de todos; este altar é santíssimo
no universo, esta âncora para ninguém não é sagrada.
Pintamos em certa grau a efígie do ser humano. Agora, o simulacro adverso da guerra, tal como é visto, componhamo-lo...»
E continuava... Ficará talvez para outro tradutor, mais conhecedor e familiar do latim, e logo com necessidade de menos utilização do nosso tão limitado e precioso tempo na Terra...
Tradução feita em algumas horas dos dias 16, 17 e 18 de Março, quando além das guerras surdas que os Ocidentais sustentavam no Oriente, uma mais intensa ou cirúrgica se realiza no coração da Europa e para a qual desejamos sincera e ardentemente que rapidamente se chegue ao consenso que evitará mais mortos, destruições e sofrimentos. Para tal oro ou rezo que contribuam estas palavras sábias, por vezes tão elucidativas e frescas, contendo as forças anímicas de Erasmo e da sabedoria Divina que ele realizou, sem dúvida um dos mestres da Europa humanista, hoje em grande parte subsistindo no intelecto, ou vá lá nas almas, de apenas alguns milhares de seres, nesta União Europeia dirigida de modos demasiados cinzenta, ineptos, conflituosos e pouco humanistas, mas que ainda assim se encontra sob a égide subtil da República das Letras, Corpo místico da Humanidade ou Satsanga, onde Erasmo, com outros grandes seres, mestres e espíritos celestiais, continuam a inspirar-nos, se a tal aspirarmos e querermos...
1 comentário:
Anote-se que um dia depois de ter publicado este texto de Erasmo veio parar-me às mãos a tradução de A. Guimarães Pinto deste adágio, impressa nas Edições 70, em 1999, numa colectânea intitulada "A Guerra, e Queixa da Paz", com valiosa introdução e notas, e tradução esta que espero brevemente cotejar com a minha.
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