As aproximações de Swami Premananda Tirtha (1871-1959) à religião e espiritualidade indiana, e em especial a Krishna, Radha, Rama, etc., são bastantes e valiosas, e merecem ser traduzidas e meditadas. Vamos traduzir uma carta escrita em Hardwar, em 1903, com certa originalidade, sobre o conceito hindu de avatara, algo não dos tempos dos Vedas mas já das Purana, e que significa descida ou manifestação divina, e que swami Premananda amplia e estende aos princípios e ideias que passam ou descem dos mundos subtis e se concretizam nos actos e vidas:
| Dois avatares de Vishnu: Krishna e Radha. Amor Divino neles, em nós e na polaridade... |
«No Universo encontramos duas linhas de força ou estados: Abstracto ou espiritual, e concreto ou físico. Na criação ou emanação Divina, no código da Natureza, há uma perfeita congruência ou harmonia entre estas duas correntes. O que originalmente estava no pensamento, manifesta-se correspondentemente na forma e na acção. Os princípios abstractos mencionados nos Vedas concretizaram-se nas vidas concordantes dos Rishis. Aquele ser, através do qual um conceito particular ou princípio desenvolvia-se plenamente, era considerado como um avatar, a personificação de tal princípio. "É melhor sacrificar a sua vida por causa da verdade, de que difamá-la ou ignorá-la" - este princípio espiritual concretizou-se na vida de Sócrates. [Noutras cartas swami Premananda também designa Sócrates como um avatar, uma manifestação divina. Também eu nos meus estudos da Grécia, do Pitagorismo, do Platonismo e do Humanismo cheguei a uma conclusão próxima: Sócrates foi um Cristo, um ungido pelo Alto, e viveu e morreu pelo amor e a verdade lúcida e abnegadamente. Neste sentido iam até os humanistas da Academia Platónica de Florença, que oravam mesmo a Sócrates, sob estas palavras que Marsilio Ficino e Erasmo nos transmitiram: Sancte Socrate, ora pro nobis!]
Os princípios espirituais mencionados na literatura Vaishnava foram personificados plenamente na vida de Krishna. A palavra Krishna significa aqui o estado mais elevado da Divindade concebido e não uma pessoa particular.
Krishna [Aquele que atrai] significa o Espírito supremo (Paramatman), e Radha [a Amada-Adorada] o espírito individual (Jivataman); as Gopi [ou pastoras], as correntes de pensamento. Manjari [a devota principal ou o estado mais devoto] as vibrações da respiração [e nisto valoriza bem a respiração psico-espiritual consciente]. Asuras [os demónios], as más tendências, Devatas [os anjos ou deidades], as tendências correctas, Vrindavan [a cidade onde nasceu Krishna], o estado de identidade máxima com a Divindade. [Anote-se que noutras cartas deu mais interpretações valiosas sobre Krishna, nomeadamente significando, pela raiz krish, atrair, aquele supremo Ser que está constantemente atraindo a Si e aos seus planos espirituais maravilhosos todos os seres vivos, nomeadamente pelos cinco sentidos e, claro, a meditação e a devoção amorosa.]
Os rishis [sábios videntes] captaram na realidade estes segredos antes do advento de Krishna e ficaram felicíssimos de verem a manifestação concreta das verdades abstractas, que já tinham antes realizado, na vida de Krishna.
O Deus dos hindus é omnipresente. Um verdadeiro hindu está como que obrigado a aceitar Cristo, Maomé, Buda, e todas as almas libertas ou emancipadas de todos os países, como incarnações de Deus. Um devoto de Deus, sem se ter em conta as castas ou as religiões, é merecedor da veneração dos hindus. O mais alto objectivo da vida humana é dar o máximo de possibilidade a Deus de se manifestar através de si. O próprio Deus é dinâmico em manifestar-se a Si próprio; o dever do ser humano é remover, através de esforços-sacrifícios e propiciações os obstáculos à sua Manifestação. Se Deus não quisesse manifestar-se, quem ousaria manifestá-lo? Os rishis, os sábios videntes antigos, disseram-nos que Deus está um milhão de vezes mais desejoso que nos aproximemos dele, de que o ser humano deseja aproximar-se dele.
[Mais uma afirmação bastante original ou pelo menos pouco conhecida, e que swami Premamananda fundamenta nos rishis, provavelmente já da época das Puranas, mas que nos abre a uma visão-dimensão mais intensa de como deveremos querer manifestar mais Deus e amá-lo...]
Resumindo, por detrás de cada fenómeno físico há uma subtil emoção mental que se configura no momento oportuno. A acção começa primeiro no plano mental e subsequentemente atinge a forma física exterior. O princípio subtil espiritual é tão verdadeiro como a sua manifestação física exterior. A composição da epopeia do Ramayana pelo sábio Valmiki, antes mesmo do advento terrestre de Rama Chandra, revela esta verdade. Aos rishis videntes da essência, o conceito espiritual era revelado primeiro e, subsequentemente, vendo o aspecto físico deste princípio na vida dos avatares, eles exprimiram-no com força na linguagem. Não é difícil a um sábio discernir a vida futura de uma criança pela observação das suas acções em criança.
É extremamente difícil captar uma ideia apenas pela leitura de livros, a não ser que isso se tenha desenvolvido previamente, de algum modo, dentro de si mesmo. Por esta razão os que procuram a verdade tentam primeiro desenvolver os princípios espirituais nas suas vidas.
A manifestação exterior da Deus é o universo e o espírito ou a alma íntima do universo é Deus. Assim, o que existe no estado causal ou subtil é espiritual, e o seu estado concretizado na forma da criação ou da acção é físico. A mente estando entre Deus e o universo, entre o espírito e a matéria, estabelece uma relação entre os dois. A actuação interior da mente é espiritual e a exterior é material ou física.» Hardwar, nas margens do Ganges, 13 de Julho de 1903.
| Hardwar,
uma cidade santa para os peregrinos do rio Ganges, quando ele entra nas
planícies, logo após Rishikesh, locais por onde também peregrinei na sadhana ou via yogi. |
Neste último parágrafo Swamiji realça a necessidade de cuidarmos e controlarmos bem a mente, já que é ela que estabelece e concretiza as pontes entre o mundo espiritual e o físico. Neste sentido Patanjali, no seus clássicos Yoga Sutras, definiu mesmo Yoga como citta vritti nirodha, controlar, dominar, ou mesmo extinguir as vagas de pensamento, pois então a natureza essencial ou íntima nossa pode despontar luminosamente.
Perseveremos nas nossas orações e meditações para conseguirmos manifestar ou avatarizar os princípios e valores espirituais e divinos!

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