quinta-feira, 24 de março de 2022

Swami Premamanda Tirtha. Sri Krishna, Avatar, o amor de Deus. Uma carta de Hardwar, 13.7.1903, levemente comentada por Pedro Teixeira da Mota

As aproximações de Swami Premananda Tirtha (1871-1959) à religião e espiritualidade indiana, e em especial a Krishna, Radha, Rama, etc., são bastantes e valiosas, e merecem ser traduzidas e meditadas. Vamos traduzir uma carta escrita em Hardwar, em 1903, com certa originalidade, sobre o conceito hindu de avatara, algo não dos tempos dos Vedas mas já das Purana, e que significa descida ou manifestação divina, e que swami Premananda amplia e estende aos princípios e ideias que passam ou descem dos mundos subtis e se concretizam nos actos e vidas:

Dois avatares de Vishnu: Krishna e Radha. Amor Divino neles, em nós e na polaridade...

«No Universo encontramos duas linhas de força ou estados: Abstracto ou espiritual, e concreto ou físico. Na criação ou emanação Divina, no código da Natureza, há uma perfeita congruência ou harmonia entre estas duas correntes. O que originalmente estava no pensamento, manifesta-se correspondentemente na forma e na acção. Os princípios abstractos mencionados nos Vedas concretizaram-se nas vidas concordantes dos Rishis. Aquele ser, através do qual um conceito particular ou princípio desenvolvia-se plenamente, era considerado como um avatar, a personificação de tal princípio. "É melhor sacrificar a sua vida por causa da verdade, de que difamá-la ou ignorá-la" - este princípio espiritual concretizou-se na vida de Sócrates. [Noutras cartas swami Premananda também designa Sócrates como um avatar, uma manifestação divina. Também eu nos meus estudos da Grécia, do Pitagorismo, do Platonismo e do Humanismo cheguei a uma conclusão próxima: Sócrates foi um Cristo, um ungido pelo Alto, e viveu e morreu pelo amor e a verdade lúcida e abnegadamente. Neste sentido iam até os humanistas da Academia Platónica de Florença, que oravam mesmo a Sócrates, sob estas palavras que Marsilio Ficino e Erasmo nos transmitiram: Sancte Socrate, ora pro nobis!]
Os princípios espirituais mencionados na literatura Vaishnava foram personificados plenamente na vida de Krishna. A palavra Krishna significa aqui o estado mais elevado da Divindade concebido e não uma pessoa particular.
Krishna [Aquele que atrai] significa o Espírito supremo (Paramatman), e Radha [a Amada-Adorada] o espírito individual (Jivataman); as Gopi [ou pastoras], as correntes de pensamento. Manjari [a devota principal ou o estado mais devoto] as vibrações da respiração [e nisto valoriza bem a respiração psico-espiritual consciente]. Asuras [os demónios], as más tendências, Devatas [os anjos ou deidades], as tendências correctas, Vrindavan [a cidade onde nasceu Krishna], o estado de identidade máxima com a Divindade. [Anote-se que noutras cartas deu mais interpretações valiosas sobre Krishna, nomeadamente significando, pela raiz krish, atrair, aquele supremo Ser que está constantemente atraindo a Si e aos seus planos espirituais maravilhosos todos os seres vivos, nomeadamente pelos cinco sentidos e, claro, a meditação e a devoção amoro
sa.]
                                           
Os
rishis [sábios videntes] captaram na realidade estes segredos antes do advento de Krishna e ficaram felicíssimos de verem a manifestação concreta das verdades abstractas, que já tinham antes realizado, na vida de Krishna.

[Eis uma afirmação bastante curiosa de Swami Premananda Tirtha, obtida ainda jovem de 30 anos. Pode parecer algo optimista, mas será mais compreensível se virmos que os rishis intuíram as formas subtis possíveis da sabedoria e amor Divino e depois as observaram em alguns seres, e no caso em especial em Krishna, quando viveu como ser humano na Terra.]

O Deus dos hindus é omnipresente. Um verdadeiro hindu está como que obrigado a aceitar Cristo, Maomé, Buda, e todas as almas libertas ou emancipadas de todos os países, como incarnações de Deus. Um devoto de Deus, sem se ter em conta as castas ou as religiões, é merecedor da veneração dos hindus. O mais alto objectivo da vida humana é dar o máximo de possibilidade a Deus de se manifestar através de si. O próprio Deus é dinâmico em manifestar-se a Si próprio; o dever do ser humano é remover, através de esforços-sacrifícios e propiciações os obstáculos à sua Manifestação. Se Deus não quisesse manifestar-se, quem ousaria manifestá-lo? Os rishis, os sábios videntes antigos, disseram-nos que Deus está um milhão de vezes mais desejoso que nos aproximemos dele, de que o ser humano deseja aproximar-se dele.
[Mais uma afirmação bastante original ou pelo menos pouco conhecida, e que swami Premamananda fundamenta nos rishis, provavelmente já da época das Puranas, mas que nos abre a uma visão-dimensão mais intensa de como deveremos querer manifestar mais Deus e amá-lo
...]
                                         
Resumindo, por de
trás de cada fenómeno físico há uma subtil emoção mental que se configura no momento oportuno. A acção começa primeiro no plano mental e subsequentemente atinge a forma física exterior. O princípio subtil espiritual é tão verdadeiro como a sua manifestação física exterior. A composição da epopeia do Ramayana pelo sábio Valmiki, antes mesmo do advento terrestre de Rama Chandra, revela esta verdade. Aos rishis videntes da essência, o conceito espiritual era revelado primeiro e, subsequentemente, vendo o aspecto físico deste princípio na vida dos avatares, eles exprimiram-no com força na linguagem. Não é difícil a um sábio discernir a vida futura de uma criança pela observação das suas acções em criança.
É extremamente difícil captar uma ideia apenas pela leitura de livros, a não ser que isso se tenha desenvolvido previamente, de algum modo, dentro de si mesmo. Por esta razão os que procuram a verdade tentam primeiro desenvolver os princípios espirituais nas suas vidas.
A manifestação exterior da Deus é o universo e o espírito ou a alma íntima do universo é Deus. Assim, o que existe no estado causal ou subtil é espiritual, e o seu estado concretizado na forma da criação ou da acção é físico. A mente estando entre Deus e o universo, entre o espírito e a matéria, estabelece uma relação entre os dois. A actuação interior da mente é espiritual e a exterior é material ou física.»  Hardwar, nas margens do Ganges, 13 de Julho de 1903.

Hardwar, uma cidade santa para os peregrinos do rio Ganges, quando ele entra nas planícies, logo após Rishikesh, locais por onde também peregrinei na sadhana ou via yogi.

Neste último parágrafo Swamiji realça a necessidade de cuidarmos e controlarmos bem a mente, já que é ela que estabelece e concretiza as pontes entre o mundo espiritual e o físico. Neste sentido Patanjali, no seus clássicos Yoga Sutras, definiu mesmo Yoga como  citta vritti nirodha,  controlar, dominar, ou mesmo extinguir as vagas de pensamento, pois então a natureza essencial ou íntima nossa pode despontar luminosamente. 

Perseveremos nas nossas orações e meditações para conseguirmos manifestar ou avatarizar os princípios e valores espirituais e divinos!

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