O culto religioso ou espiritual doméstico, baseado e com efeitos familiares, higiénicos e estéticos, tem uma antiguidade muito grande e foi vivido em vários povos com apurada sensibilidade e intensidade. Vamos apenas aproximar-nos brevemente de duas tradições, uma ocidental, a de Roma, e outra oriental, a do Japão e mais propriamente a do Shintoísmo, através da visão e ensinamentos de um dos seus pensadores, Hirata Atsatune, um filósofo importante do Fuko Shinto, a Renovação do Shinto, durante o período Edo (1603-1867), Shinto significando o caminho dos Espíritos (shin, ou ainda kami).
As fotografias
do Japão neste texto foram obtidas na minha peregrinação de quarenta dias, registada
em diário, em Julho, Agosto e Setembro de 2011.
Na verdade, alguns pensadores sábios do Japão nos séculos XVII, XVIII e XIX procuraram preservar e
fortalecer a tradição cultural e espiritual nipónica e shintoísta em tempos de fortes influências estrangeiras, seja chinesas e budistas seja ocidentais, e de crescente urbanização do país e, portanto, de perda dos modos de sensibilidade e vida naturais e antigos, nomeadamente os que os poetas, as mães e os educadores transmitiam às crianças e jovens. Algo disto entre nós mencionou Augusto de Santa Rita, na sua significativa Justificação inicial do número único da revista que publicou com Fernando Pessoa, em 1916, Exílio.
Nesses sentidos ou objectivos
estudaram as tradições poéticas, míticas, etnográficas e religiosas, através das etimologias, práticas e concepções de vida ou filosofias, e tentaram
apontar as que eram mais valiosas de ser preservadas e cultivadas porque representavam ou indicavam o caminho da harmonia natural, entre a terra e o céu, entre os humanos e os kami. Denominou-se tal o Kokugaku, Estudos Antigos, pois basearam-se muito na poesia (waka) mais antiga (tal a compilação datada de 759 Man’yoshu), na crónica Kojiki (escrita por O no Yasumaro, a mando da imperatriz Gemmei, em 711-712) e em menor grau de valorização na Nihonshoki, de 720, e ainda nas orações cantadas ou noritos (um exemplo: https://youtu.be/Ly-Y5LS39bA) e ritos primordiais (tais os contidos no Yengishiki, do séc. X), e nos sentimentos e consciência que elas testemunhavam, sintetizados no famoso traço de sensibilidade ou mentalidade, o mono no aware, a empatia com as coisas e seres, por exemplo por Wenceslau de Moraes tão sentido, observado e aprofundado, tornando-o único nos pioneiros ocidentais do conhecimento empático da alma japonesa, dentro da alma da criação, como ele também chamava.
Denominado o Fuko Shinto, o Shinto restaurado ou reformado, purificado dos estrangeirismos e ensinando a recuperar o coração puro e natural (magokoro), os seus principais expoentes foram numa linha sucessiva de mestre discípulo, Kada no Azumamaro (1669-1736), Kamo Mabuchi (1697-1769), o mais importante Motoori Norinaga (1730-1801) e Hirata
Atsatune (1776-1843), este clamando ter recebido a transmissão de Motoori Norinaga, que não conhecera fisicamente, por sonho, o que muito provavelmente não é uma legenda pois trata-se de fenómeno vivenciado, vivenciável pelos que estão no caminho espiritual.
Neste artigo vamos abordar apenas Hirata
Atsatune e alguns aspectos do seu ensinamento, tal com o de ter desenvolvido a ideia que todos os japoneses eram descendentes
dos deuses e não só a família do imperador, até por razões políticas, esta já tendo sido muito realçada por Motoori Norinaga, tal como ainda a preeminência do kami ou deusa do Sol, a bem amada ou adorada Amaterasu o mi kami.
Tinha a sua razão de
ser tal ideia e concepção, porque deste modo Hirata Atsatune investia as pessoas numa individualidade, sacralidade e poder mais
fortes, com capacidades portanto de também elas serem intermediárias entre a Terra e o Céu, entre o corpo e o espírito (shin). Mas já exagerava quando pensava que só o povo japonês era o escolhido dos Kami ou deuses, e só ele descendia directamente Deles, exageros nacionalista no seu afã de partilhar ao máximo os
ensinamentos salvíficos que estudava e desenvolvia da
tradição espiritual nipónica do Shinto.
Ora na função de pontífices, de sacerdotisas (mikos) e sacerdotes, os seres devem fazer os seus rituais,
orações, meditações para cultuar os espíritos celestiais, os Kami, e nomeadamente os da casa. Será esta actuação que nos interessará mais, pois tal sacralização da casa, à parte alguns amantes do Feng shui (e em geral numa forma algo geral e técnica) está muito perdida. E será bastante útil à nossa evolução espiritual...
Hirata Atsatune, que gerou bastante obras, infelizmente pouco traduzidas, algumas mesmo (sobretudo após a morte da sua amada mulher) acerca dos mundos subtis e espirituais, valorizou alguns kamis do lar, conhecidos tradicionalmente embora com variações de nomes dependentes das zonas das casas que lhes são consagradas.
Ei-los: Ie no kami Yabune no kami, o kami da casa ou edifício, também chamado Toshigami,
o kami guardião, ou os kamis, plurais (sorei), da prosperidade da família, primitivamente ligado à colheita do arroz, festejado anualmente e aupiciosamente no começo de cada ano (tal como em Agosto, quando se comemora o Bon Odori, o festival dos mortos, e que Wenceslau de Moraes tão magistralmente descreveu, vivendo-o em Tokushima e aonde eu estive em peregrinação na época certa), altura considerada de abertura maior da ligação com o mundo espiritual. São muito belas as decorações que se lhe oferecem no começo do ano, Shime kazari:
Depois menciona um kami já muito pouco cultuado mas na época muito importante, Ido
no kami, ou Idogami, o kami do poço e fonte de água, e seria interessante estudar algumas das suas histórias e compará-las com o nosso fabulário dos poços. E ainda o Kamado
no kami,
o kami do fogão e da cozinha, também conhecido por Sanbō Kōjin, no sincretismo do budismo e shintoísmo, nomeadamente no mais esotérico Shugendo.
E, por fim, o muito necessário na época, dadas as más condições higiénicas nas cidades e bairros pobres, Kawaya no kami,
o kami da casa de banho, por vezes visto como feminino, e para cujo culto Hirata Atsatune propôs várias medidas de higiene, de construção, de utilização como estrume, de harmonia, de culto. Acreditava-se por exemplo, com mais ou menos razão, que o estado dela influenciava quem nascia na casa, especificando-se que poderia mesmo influenciar o nariz do nascituro.
No
Ocidente e em Portugal perdemos esta consciência e visão da possibilidade de existência de deuses ou espíritos tutelares da casa e das suas divisões, embora nos
tempos mais antigos, nomeadamente dos Romanos houvesse os deuses domésticos denominados Penates, que as pessoas cultuavam nas suas casas, no tablinium, um espaço-divisão que sucedia ao atrium, e que eram os escolhidos por cada família, sendo representados em moedas, vasos de cerâmica ou esculturas como seres de idade, com um manto sobre si, algo que pode sugerir espíritos de antepassados que agiriam como intermediários com o mundo divino.
Estes seres humanos já só espíritos, seja antepassados seja amigos e guias, em geral eram até mais cultuados como os espíritos tutelares da família, os Lares familiares, nos pequenos altares ou aras onde se lhes queimavam diariamente ervas e incensos ou se derramavam as libações. Assim tanto se purificava a casa como se invocavam as bênçãos pelas fragrâncias e orações, simultaneamente proferidas. Eram assim não deuses mas génios, engenhos ou espíritos despertos no além e capazes já de inspirarem na Terra, e geralmente representados com coroa de louro e uma taça corno de libação. Não estavam limitados porém à casa e em qualquer local se podiam manifestar e logo cultuar. Assim havia os da ruas e campos, os viales e rurales...
Com o Catolicismo, a concepção feita de Deus e de Jesus Cristo seu filho eliminaram
todos os "concorrentes" e apenas se permitiu criar alguns cultos a
anjos (em especial ao Anjo da Guarda, este a partir do séculos XVIII e XIX, muito reproduzido em gravuras e estampas) e Santos, estes festejados com alguns traços do paganismo no início de Novembro, nos dias de todos os Santos e de todos os Defuntos. Algo do Kami tutelar da casa ficou assim nas gravuras que
entronizavam anjos, santos, Jesus, ou a partir do séc. XVIII, o sagrado coração de Jesus, como protector das casas, por vezes havendo até estampas ou azulejos de invocação de protecção ou de boas vindas para os que comungavam de tal crença, invocação e fraternidade.
Podemos
então admitir de certo modo que algumas imagens, gravuras, pinturas ou
esculturas que temos nos nossos quartos e salas podem ser vistos como
portas e janelas para os deuses, protectores, inspiradores, os Kamis tutelares. Estão neste nível mais particularmente e intimamente as fotografias de familiares ou amigos que já partiram para os mundos espirituais e que de certo modo se tornaram Kamis, espíritos divinos (ou mais próximos de tal nível primordial), ainda que certamente diversos níveis vibratórios no além, muitos seres estando ainda demasiado inconscientes, ou limitados ou baixos, antes precisando das nossas orações, pelo
pouco feito na Terra para despertar tal consciência.
Orar diante de tais pequenos santuários foi valioso para os romanos e foi também muito desenvolvido no Japão com os Kamidanas, pequenos santuários caseiros, e mesmo portáteis, onde kamis familiares e os celestiais e primordiais são cultuados, ou então Butsudana, com os Budhas. (Na imagem, o butsudana da família em cuja casa em que fiquei em Tokushima, em Agosto de 2011, na celebração do Bon Odori, graças a Takako Karaoke, a quem muito agradeço).
Os Gregos e Romanos tinham uma classificação valiosa que incluía este nível intermediário: os
semi-Deuses. Aqueles que pelos seus feitos se tinham erguido a um
grau de imortalidade e de consciência dos deuses ou mesmo da Divindade. Entre as referências a tal culto estão os famosos Versos de Ouro de Pitágoras, que deverão até ser mais chamados versos pitagóricos, pois retratam antes um catecismo pitagórico de discípulos do insigne mestre.
Não houve nos pitagóricos certamente influências das ideias nipónicas que proclamam
a passagem dos seres humanos a kamis seja pela suas vidas bem
luminosas ou excepcionais, ou apenas pelo passar de certo tempo uma vez
morto o corpo físico e entrados nos planos subtis e espirituais.
Mas dado que a Grécia religiosa têm raízes shamanicas e que estas
tiveram curso forte no Japão, na Coreia, na Rússia, sendo a fonte primordial do Shinto, até
podemos considerar as duas tradições como veios do mesmo rio, e em
que os Kamis e semi-deuses tanto podem ser espíritos angélicos celestiais ou apenas espíritos que já foram humanos terrenos e que agora vivem em corpos espirituais.
Certamente podemos ainda referir o contributo da Grécia, da Deusa Hygia donde nos veio a palavra Higiene, a deusa da Medicina, cura dos simples e da higiene pública e que Hirata Atsatune tanto cultuou e procurou desenvolver, no seu afã de melhoria das condições de vida físicas e psíquicas dos seus compatriotas. Esta linha prosélita foi bem ampliada pelo seu filho adoptivo Kanetane (1799-1880) que de certo modo fundou a Escola de Hirata divulgando muito os seus livros. Um dos seus discípulos mais importantes foi Katagiri Harukazu que criou o Mameo no tsudoi, o Círculo de Homens Sinceros, para o estudo da obra de Hirata, com grande devoção ou culto ao seu espírito, invocado em longos noritos. Conseguiu erguer em 1867 um santuário, o Hongaku reisha, fortalecido por objectos icónicos pertencentes aos antigos mestres, que influenciou muita gente e compôs ainda belos poemas de partilha do valor da vida agrícola e da comunhão simples com os Kamis.
Em verdade admitida a realidade dos Kamis estarem ou poderem estar em toda a
parte e manifestar-se em qualquer objecto, em especial no que se destaca pela sua qualidade, caso de certas pedras, árvores, locais da natureza, esta concepção e crença típica do Shinto impulsiona-nos a admitirmos que será importante propiciá-los não só na natureza e nos santuários mas mesmo nas
casas de banho, tanto mais que se não as mantivermos limpas geram-se energias negativas que, acumuladas, obstruem a fluída ou livre circulação, e logo afectam a saúde, e atraindo
até eventuais entidades negativas. Já quanto a como são estas energias e também que
entidades são essas, embora haja bastantes lendas e algumas visões clarividentes
subjectivas, só quem investiga e vivencia lucidamente é que poderá sentir e logo ganhar, mais ou menos temporariamente, alguma relativa compreensão segura. Vale mais porém sintonizarmos com os
seres subtis ou kamis de luz...
Fiquemos então com a ideia-força da importância de todas as divisões da
casa que habitamos estarem belas e harmoniosas e poderem assim ser
percorridas livremente pelas energias vitais ou mesmo por mais
elevadas e abençoantes, ou até merecer a estadia de espíritos
subtis luminosos e inspiradores. Esta concepção, aceite e cultivada, gera comprovadamente uma purificação da casa e uma entrada de energias mais puras ou elevadas na nossa alma, nomeadamente nas nossas meditações.
Cultivemos então a beleza e a limpeza em todos os locais onde estivermos, tanto exteriormente como sobretudo interiormente ( pela pureza e o não egoísmo) e, como as mikos ou os pontífices desejados social e espiritualmente por Hirata Atsatune, tanto nos curvemos diante do Divino como ergamos com assiduidade nas nossas aras e lares o cálice do Graal ou do Coração flamejante e aberto ao alto em gratidão, aspiração, receptividade e irradiação das tão necessárias qualidades divinas de Justiça e Fraternidade, Sabedoria e Amor...