quarta-feira, 10 de junho de 2020

O trânsito extático de Maria Madalena, em 22.VII. Pintado em 1664 por Josefa de Óbidos.


                               
É ainda hoje uma história mal conhecida e contada a de Maria Madalena, discípula de Jesus, ou seja, sabe-se pouco e incertamente (embora nas últimas décadas uma imaginação frondosa tenha-se desenvolvido), e cedo foi sujeitada ou resumida, nas referências dos primeiros padres da Igreja, biografias, sermões e na arte, a duas caracterizações principais: Madalena, a Pecadora, e Madalena, a Penitente...
As fontes evangélicas eram escassas: Marcos, 16, 9-11,  Lucas 8, 2-3 e João 20, 1-2, 11-18. 
A caracterização rápida na descrição da ressurreição no evangelho segundo S. Marcos,  de Jesus ter expulso dela sete demónios deveria até corresponder mais a problemas psíquicos de que à má vida sexual da futura penitente, que depois de tal cura passou a fazer parte da comunidade de Jesus e estaria presente na crucificação e morte na Golgota, vindo ainda a  testemunhar a legendária ressurreição, quando se preparava para o ir ungir. 
A essa caracterização algo masculina ou brusca de S. Marcos, vem  depois a transmitida por S. João, o discípulo mais amado (sem falarmos talvez na discípula Madalene), que valoriza ser ela o 1º ser que o viu e que tentando-lhe tocar recebeu a tão citada resposta,  "não me toques", noli me tangere, pois Jesus dirigir-se-ia para o Pai em primeiro lugar, tema que aliás também veio a ser bastante cultivado artisticamente.
Houve outras Marias com quem foi confundida: a dita pecadora que vem beijar-lhe e lavar-lhe os pés no banquete dum fariseu, o qual queixando-se a Jesus da sua má vida, recebeu o poderoso ensinamento: «Perdoados lhe são os seus pecados, que são muitos, porque ela muito amou», tal como nos relata Lucas, VII,  e Maria de Betâmia, a mais amorosa e mística, que ungiu com o dispendioso nardo os pés de Jesus pouco antes da Paixão, em cena descrita por  João em XII, 1-8.
Será  um dos primeiros padres da Igreja, Tertuliano, que as confundirá numa, nisso seguindo-o o papa Gregório o Grande, e em seguida a generalidade da Igreja Católica.  
 Já outros padres da Igreja mais sábios como Orígenes e depois toda a Igreja Ortodoxa, distinguem-nas bem, sendo festejada a 22 de Julho e tendo sido ao longo dos séculos patrona de muitos ascetas e conventos, onde as suas representações em estátuas ou pinturas serviam de algum modo para que a sexualidade masculina tivesse alguma imagem da doçura do amor em que se sublimasse, tal como podemos ver no Convento da Arrábida.
Contudo, pesem as vicissitudes da sua vida misteriosa tanto nos seus possíveis prazeres como nos sofrimentos, chegaram-nos ecos de que ela seria a discípula preferida ou mais próxima de Jesus, invejada ou menosprezada por alguns. Estão neste caso dois dos evangelhos gnósticos encontrados em Nag Hammadi. Nas últimas décadas, contudo, ampliou-se e exagerou-se tal eco e, infundadamente, são às centenas os livros que fazem de Maria Madalena, a mulher de Jesus, gerando-se uma descendência feminina que teria vindo para a Europa. Sem entramos nestas mistificações, convenhamos  que era um ser de muito afecto e que terá sido orientada pelo mestre Jesus para realizações mais espirituais divinas de tal amor. 
Quanto à sombra dos pecados que a perseguiria e quanto às ásperas penitências a que se obrigaria ou se castigaria, há campo aberto para todos, desde os mais moralistas e ascetas aos mais místicos do amor ou mesmo libertinos... 
São milhares as imagens artísticas de Maria Madalena, desde a pintura e a gravura às esculturas nos mais diversos materiais, devendo-se relembrar a sua inclusão ou participação nas famosas esculturas do Menino Jesus Bom pastor, belas peças em marfim indo-portuguesas desde o séc. XVII.
Entre a nossa criatividade artística devocional a pintura de Maria Madalena, de 1664, pela Josefa de Óbidos (1630-1684), filha de um pintor português de Óbidos e que sabia do amor versus penitência pelas suas estadias em conventos e igrejas, tendo gerado cerca de 150 pinturas, dá-nos até uma possibilidade de leitura diferente da rotineira  caracterização dualista pecadora-penitente agarrada a uma caveira ou a uma cruz que contemplaria e à qual oraria, arrependendo-se do que fizera.
                            
Vemos então em vez disso Maria Madalena como sacerdotisa do Amor, paramentada ou vestida como tal, semi-desnuda e de cor de rosa, a cruz como eixo e coluna do mundo, coroada de flores e de longos cabelos soltos, em êxtase (pois trata-se do seu rapto final aos céus), com a auréola do espírito, ou de iluminada e santificada, no momento que foi chamado também o beijo da morte, ou da realização da imortalidade pelo Amor, rodeada só de Anjos, os mensageiros da Luz e do Amor Divinos...
Não há tristeza nem choro nos Anjos e vemo-los claramente como elos da Luz dourada que vem do mundo Divino e exercendo a sua missão de acompanhantes e transmutantes vibratórios do momento da morte.
O pulsar  do coração amoroso de Maria Madalena é ascultado muito subtilmente no pulso da mão direita por um Anjo, que parece estar realmente num esforço de sensibilidade para captar tal subtil sopro vital pulsante, enquanto que um outro grande Anjo, talvez o seu da Guarda, apoia o seu pescoço semi-tombado com uma mão, enquanto que com a outra  deposita ou segura uma vela que passa  pelos dedos de Maria Madalena que, já lassos ou abandonados, não mantêm a verticalidade da chama.
Será que o Anjo da Guarda está a pôr ou a fortalecer a vela, ou luz da fé e da esperança de Madalena nesse trânsito sempre difícil, ou significa que ele está a receber ou a orientar esse lume espiritual que se exala dela e que será atraído por um caminho aberto para o Céu, ou nível do mundo espiritual a que terá acesso, pelos cantos e movimentos coloridos e emotivos dos anjos e anjinhos?
Eis uma belíssima pintura propícia à contemplação harmonizadora e iluminante, ou mesmo à prática da arte de bem morrer, tão valorizada por místicos e humanistas (como Erasmo), ou não tivessem dito os antigos gregos na Antologia Palatina e depois entre nós, em poesias, Antero de Quental, Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa (este interrogando-se também em prosa), "Morrer é ser iniciado"?
Saibamos pois morrer em vida e iniciados no Amor renascer espiritualmente...
Anote-se, para concluirmos oiro sobre azul, que Josefa de Óbidos realizou, tal como Maria Madalena, o seu trânsito ou êxtase final no mesmo dia do ano,  22 de Julho, em que ambas se celebram, podendo-se assim imaginar que ela também se representou a si mesma, em alguma proporção sibílica ou clarividente, nesta pintura tão sagrada e comungante...

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