domingo, 7 de junho de 2020

Bernardo Moreira de Sá, biografia por Higino da Costa Paulino e uma carta de Antero de Quental e uma dedicatória de António Arroyo..

                                 
Bernardo Moreira de Sá (1853-1924) foi um notável violinista, maestro, professor e conferencista, nascido em Guimarães e, destacando-se precocemente no meio artístico nacional, mereceu uma biografia de outro artista, Higino da Costa Paulino, meu bisavô materno, publicada na revista que dirigia com Josefine Amann, A Gazeta Musical, no nº 21, de 15.XII.1884. Com a ajuda da arquitecta Maria Antónia Bacelar Antunes, amiga portuense investigadora e que conhecendo a importância de Moreira de Sá na urbe invicta se prontificou a dactilografá-la, podemos hoje oferecê-la.

Acrescentámos, cruzando almas amigas, que certamente se conheceram, a carta enviada por Antero de Quental em 1888  a Bernardo Moreira de Sá, na qual testemunha o valor da sinceridade, espontaneidade e graça na obra verdadeiramente criativa de um artista, sendo uma  daquelas onde dedilha ou repete a constatação que a musa poética o deixou de inspirar, tendo parado de versejar, o que aconteceu na realidade a partir de 1886, pois nos últimos anos da sua vida dedicou-se  a publicar os seus Sonetos e a redigir o seu Testamento Filosófico, como bem lhe chamou Sant'Anna Dionísio, o fiel discípulo directo de Leonardo Coimbra e indirecto de Antero de Quental, que a ambos  dedicou vários estudos e com quem muito dialoguei na urbe duriense.

Enquanto Higino da Costa Paulino se fixaria e criaria família (na fotografia) em Goa, Moreira de Sá viajaria pelo mundo tocando com celebridades como Pablo Casals, Viana da Mota e Harold Bauer e escrevendo e leccionando no Porto, onde fundou várias instituições musicais, algumas ainda  não existentes e mencionadas nesta biografia de Costa Paulino, que vale contudo pela profundidade e beleza psicológica, musical e de estilo que revela e com que nos eleva. 

 Oiçamos então a magnífica pintura que Higino da Costa Paulino, também pintor, esboçou de Bernardo Moreira de Sá, com 31 anos, e no fim leiamos o verbo magistral de Antero de Quental, pois é nas suas cartas que se encontra melhor o seu génio humano e espiritual.

Sugestão musical: Beethoven, sonata à luz da Lua, por Anastasia Huppmann: https://youtu.be/-VmQNKaOeEw

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«Ami, cache ta vie et repands ton esprit, dizia Victor Hugo a um poeta. Tal conselho, porém, apenas encontra seguidores exactamente nesses que trabalham pelo amor do trabalho, que lutam por uma ideia pela própria ideia, sem ao seu esforço generoso misturarem um vislumbre sequer de interesse pessoal.
Bernardo Moreira de Sá é um desses raros trabalhadores. Vive um pouco ignorado, envolto na penumbra sem aspirações sociais que lhe roubariam o sossego; mas o seu espírito infatigável espalha-se no campo da arte e da literatura, concebe, empreende e realiza, sempre cheio de uma vitalidade, que raro se encontra naqueles que ostentam à luz das glórias mundanas o seu talento inútil.
As dificuldades de uma empresa qualquer não o desalentam; o ardor e convicção com que empreende a luta, mostram-no, como que animado, às vezes, do extraordinário vigor de um apostolado.
E verdadeiro apóstolo é ele, na verdade; apóstolo fervoroso do belo que cultiva numa das suas mais insinuantes manifestações: a arte musical.
O seu espírito eleva-se para o mundo da arte, como o poeta para o mundo risonho da fantasia; é como se ali nascesse, e ali encontrasse um ideal de venturas, ou o fim da própria existência. Hoje para ele a música não é um modus vivendi, que o seu espírito oscila e se reparte entre as lidas do professor e do literato, a música alimenta-lhe a força de uma paixão, duma atracção irresistível a denunciarem uma alma essencialmente artística, que não se satisfazendo com as desarmonias do mundo, busca no mundo das harmonias alguma coisa elevada e pura onde se ache bem e feliz.
Aquela organização privilegiada para a arte não é evidentemente um produto do meio em que viveu, nem representa nele a continuação das tradições artísticas de uma família; é uma natureza que nos aparece assim, formada, uma vocação decidida, patenteando-se logo no alvorecer da existência, como que a marcar a senda gloriosa por onde tem de decorrer. Em outro país, num outro meio, essa vocação teria sido cuidadosamente aproveitada e guiada nos seus primeiros passos; ter-se-ia robustecido e assinalado bem cedo no convívio dos grandes artistas, sob a direcção benéfica dos grandes mestres. Infelizmente para ele nasceu em Portugal, e, ainda para mais, sem uma dessas fortunas sólidas que suprem todas as deficiências de um país. A sua juventude foi, por isso, uma longa peregrinação, desde Guimarães, sua terra natal, até ao Algarve, através de um meio rude e incapaz de desenvolver aptidões artísticas, mas onde seu pai, magistrado distinto, era obrigado a estabelecer-se por algum tempo, sujeito como estava, ao esforçado cosmopolitismo da magistratura. 

Afinal acabou por se fixar no Porto, que em questão de arte, não sendo o mais esterilizador do país, não é dos mais avançados da Europa. A educação musical que recebeu na infância, boa ou má, serviu-lhe ainda assim para se infundir mais tarde naquela região luminosa, embora para tantos ainda obscura, onde, desde Gluck a Wagner, se tem ido acumulando todas as sublimes belezas da arte de hoje.
As quatro cordas do seu violino, vibradas pela mão débil de criança, começaram por certo por lhe levar o espírito nas ondas sonoras, através da arte italiana, espécie de porta, cujos umbrais, caprichosamente rendilhados, todos os artistas meridionais têm de transpor nos êxtases dum cantabile, ou no entusiasmo frenético de um thema com variações; mas acabaram por levá-lo até ao mundo onde viveram os espíritos de Mozart, Mendelssohn e Beethoven, tríade sublime, no seio da qual o verdadeiro artista é tão feliz em viver um momento, como o piedoso hindu uma eternidade no seio do grande Brahma!
Foi assim que a vocação musical de Moreira de Sá se aperfeiçoou e se robusteceu, e que ele adquiriu esse gosto apurado, e finíssimo critério, que tanto o distinguem actualmente. Do estudo perseverante e da observação nasceu o artista correcto que Lisboa teve ocasião de apreciar no esplêndido concerto de Mendelssohn e em outras composições, e que o Porto constantemente admira. E um produto do seu trabalho; porque, se se deve aos mestres alguns daqueles velhos triunfos da criança que se apresenta em público, executando com perícia e um talento precoce, qualquer fantasia italiana, a si, exclusivamente a si, deve ele agora a justeza, valentia e primor com que ataca e interpreta as mais difíceis composições das músicas alemãs.
Muito novo ainda reuniu-se no Porto, a um grupo desses amadores de música clássica que cultivavam as composições de Haydn e Mozart muito às ocultas, como se fossem doutrinas revolucionárias e heterodoxas em país ultra-católico, celebrando as suas sessões, apenas para um pequeno número de correlegionários sinceros, talvez para não serem acoimados de ímpios pelo que então ainda choravam a dirotte lagrime nos arrancos do Trovador ou dos Due Foscari.
Daquele centro de conspiradores contra o domínio exclusivo da melodia sensual e lânguida das composições italianas, nasceu mais tarde a sociedade dos quartetos, uma verdadeira demolidora de crenças e opiniões, que nos metia no crisol de um andante de Mozart, para depois entrarmos com a alma purificada num adagio de Beethoven, espécie de templo majestoso, onde o espírito se sente dominado por uma fascinação indizível, possuído pelo que quer que seja de sobrenatural ou divino!
Moreira de Sá era então o segundo violino da benemérita sociedade, mas indubitavelmente naquela plêiade de artistas ilustres, o mais entusiasta, o mais cheio de abnegação e de um espírito de proselitismo, que procura conquistar pela revelação completa de todas as belezas contidas numa criação genial, e por tal forma que é considerado, como um dos mais resolutos e inteligentes propagadores da música clássica entre nós. O arco manejado magistralmente, e a pena habilíssima do escritor vão realizando a árdua tarefa de devastar os entranhados preconceitos contra a música alemã; a execução conscienciosa do trecho e a sua critica apurada, unem-se para lhe porem em relevo toda a formosura. Nisto é Moreira de Sá auxiliado por uma verdadeira intuição musical. As suas faculdades estéticas adquiriram tal delicadeza e perfeição, que ele adivinha por assim dizer, toda a beleza e sublimidade duma dessas concepções que a muitos parecem vazias de sentimento, faltas de inspiração, de verdade ou de plano. Foi o que sucedeu com a música de Wagner.
Quando em Portugal apenas havia, talvez, notícia da existência daquele ousado inovador, como lhe chama Lavoix, daquele imortal criador do drama lírico moderno, já ele era um wagneriano enrajé, pronto a lutar pela música do futuro, e cheio de sincero entusiasmo pelo seu desenvolvimento.
Hoje, porém, graças à dedicação das sociedades de quartetos e de música de câmara, e à poderosa iniciativa de Moreira de Sá, as composições clássicas são justas e devidamente apreciadas. Os modernos trabalhos dos compositores alemães, russos, suecos, e de todos que seguem as belas tradições de Beethoven, Mendelsson, Chopin e outros, não existem já para nós apenas na noticia de algum jornal estrangeiro; têm sido auxiliados e saudados com entusiasmo nas obras mais notáveis de Brahms, Rubinstein, Grieg e tantos outros, que vão enriquecendo a arte moderna com verdadeiros primores.
Um outro modo de iniciação da boa música, e ao mesmo tempo um valente impulso na generalização e levantamento do gosto pela arte, empreendeu-o Moreira de Sá heroicamente, organizando o Orfeão Portuense, o único que existe em Portugal. É triste chamar-lhe o único, mas é verdade, porque outro não existe no nosso país! Contra as dificuldades que sempre surgem em instituições desta ordem, contra o indiferentismo, que passado o primeiro momento de entusiasmo, vem sempre matar os mais alevantados empreendimentos, aí está bem patente a vontade inquebrantável dum homem decidido, lutando porfiadamente por uma ideia nobilíssima, procurando mostrar às outras nações, que não nos conservamos de todo estranhos ao movimento artístico nelas realizado.
Moreira de Sá não é apenas um espírito de artista, animado pelo santo entusiasmo de propagar a sua arte predilecta, teve a par da educação musical uma educação literária e científica, amplamente demonstrada em vários trabalhos apreciáveis.
Trabalhador tão modesto como incansável, dotado de um carácter honestíssimo, de uma alma verdadeiramente pura, que converte em amigos sinceros todos os que o rodeiam, não consome a sua vida de constante labutação mirando a honrarias, a distinções oficiais, ao reconhecimento sequer dos seus concidadãos. Nada disso se dá com o seu génio despretensioso, trabalha pelas almas… de Beethoven e Mozart, talvez, e parece perfeitamente recompensado dos seus esforços, mandando-lhes para lá alguns centenares de admiradores genuínos.»

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Depois deste magnífico parágrafo final, no qual Higino da Costa Paulino, refere o corpo místico da humanidade, ou a comunhão dos santos, sábios, artistas e heróis, dum modo muito peculiar: Moreira de Sá trabalhando pelas almas de Beethoven e de Mozart, ao dar a conhecer e ouvir as suas obras e portanto remetendo energias e almas admiradoras para eles, vejamos, através de uma fotografia de uma página do número de 15.XI.1905 do mensário A Revista, de Joaquim de Araújo, grande amigo de Antero, a carta que este, onze anos mais velho que Moreira de Sá, lhe dirige com tanta humildade e sinceridade acerca da sua musa e graça criadora, bem como do engenho, saudando "um homem tão inteligente e tão consciencioso artista", a quem "beij0 as mãos", pelas palavras que lhe dirigiu e por "tudo", um tudo de infinita gratidão artística à Divindade...

   Transcrevamo-la para facilitar a leitura:

«A carta de V. Ex.ª, deixa-me penhoradíssimo, e preciso de uma certa força para resistir a um desejo expresso por maneira tão honrosa para mim.

Mas vai em três anos que deixei de fazer versos.

 A um homem tão inteligente e tão consciencioso artista, como V. Ex.ª, posso dar a verdadeira razão deste facto, porque sei que a compreenderá, aprovando o meu modo de proceder. Eu entendo que o artista e o poeta devem cessar de produzir desde o momento em que sintam enfraquecida ou perturbada na sua harmonia íntima e espontânea a faculdade criadora. É um sacrifício que lhes impõe a probidade estética, se assim posso dizer. Ora vai em 3 anos que este é o meu caso. Possuindo um processo e conhecendo os segredos da arte poética, podia, como tantos outros, continuar a fazer versos mecanicamente. Achei mais honrosa a solução contrária. Achei-a até mais prudente, porque a vontade e o processo não podem suprir a graça, quero dizer, a espontaneidade criadora, sem a qual as obras mais bem feitas não passam de sepulcros caiados.

Deixei-me pois de versejar, e cuido ter feito bem.

Entrei nestas explicações, até certo ponto íntimas, porque às expressões de V. Exc.ª, tão honrosas para mim, pensei não poder responder dignamente senão com a mais completa franqueza. Por elas e por tudo beijo as mãos a V. Ex.ª, de quem sou, com a maior consideração, 

Criado muito obrigado,

                          Anthero de Quental».

Acrescente-se entretanto agora em 30-VIII-2021, o início da sentida e valiosa dedicatória que António Arroyo fez a Bernardo Moreira de Sá e à sua acção em Portugal, no seu livrinho Parisina, Poema symphonico (segundo Byron) de Leopoldo Miguéz. Esboço crítico. Porto, 1896: «Meu caro Bernardo. Deixa-me pôr o teu nome no topo deste curto estudo de crítica; ele provém do movimento musical devido à tua vigorosa iniciativa, movimento que tem tornado conhecidas do público portuense as obras orquestrais de Mozart, de Beethoven, de Wagner, de Saint-Saëns, de Grieg, de todos os grandes compositores enfim. Eu desejara vê-lo fecundado pelo auxílio de todos os que pensam e sentem nesta malfadada terra; desejara ver nascer um dele um instituto que tu dirigisses com as tuas formosas qualidades de artista, de sábio e de professor, aliadas à maior tenacidade e a um ideal de vida que há muitos anos vejo sempre o mesmo no fundo e maior, cada vez mais completo e mais largo em dimensões. Venho por isso pôr  minha pedra nos fundamentos do edifício, embora tosca de forma, cheia de lezins e mal argumentada. Mas o filosófico pilriteiro já legislou para estes casos: "Cada qual dá o que tem, Consoante a sua pessoa". A obra de Miguéz, que tu acabas de nos revelar e tantas noites dum trabalho cruel te custou, foi executada de um modo notável, mercê dos teus esforços e do entusiasmo que soubeste inspirar aos artistas da orquestra, aos amadores como aos profissionais; eles sentem por ti a veneração e o carinhoso afecto que a bondade inteligente acaba por sempre por impor aos mais difíceis de convencer. (...)» 

«On se lasse de tout, excepté de comprendre...»

Porto, 17 d'Abril de 1896.     

A. Arroyo.»

Anote-se que António Arroio (1856-1934; e a vinheta final deste artigo é do seu livro) publicou em 1901 a narrativa algo fantasiosa da Viagem de Antero de Quental à América de Norte, onde a desilusão lúcida dele com a civilização capitalista norte-americana é evidente e profética, e que Joaquim de Negrão, o dono da embarcação e organizador da atribulada viagem e em que Antero calhou entrar, narrara a Bulhão Pato, e este publicara no I volume das suas Memórias...

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