terça-feira, 9 de junho de 2020

O espírito no oceano do Amor: Antero de Quental, o Infante Santo, D. Sebastião, Camilo, F. Pessoa e nós.

«O Amor é um oceano de luz, ou a sua Luz. 

Antero de Quental matou-se na terra em que nascera, Ponte Delgada, S. Miguel, "a ilha" como ele lhe chamava, encostado ou junto a um muro, num banco do  largo de S. Francisco, ao anoitecer, sozinho. Sentir-se-ia o seu ego fechado ao imenso oceano e quis entrar nele à força? E porquê?
Por desespero da doença, por erros cometidos, por impaciência, por destemor guerreiro de quem sempre vira na morte uma libertadora, para apor o selo de mártir no final da sua vida?
Poderemos admitir que tal acto serviu bastante para ele se tornar conhecido como o Santo Antero ou já o demonstrara em muitas circunstâncias da sua vida genial mas atribulada?
 Serão essas provações de seres excepcionais o leitmotive do Infante Santo D. Fernando, do rei D. Sebastião, de Camilo Castelo Branco, de Fernando Pessoa, uns mais outros menos conhecedores do Espírito mas todos sacrificadores ou sacrificados ao espírito da época?
É se é só no Espírito que Deus pode ser conhecido, aproximaram-se eles nas suas mortes da Fonte Primordial, ou o descanso e bom porto a que pensavam chegar não se lhes desvendaria assim tão facilmente?»
Tendo escrito isto (agora transcrito com acrescentos) há bastante tempo, sem conhecer muito de Antero de Quental, e agora bem mais estudioso da sua vida e obra,  terei de admitir que embora em jovem ele estivesse muito aberto  ao oceano do Amor, manifestando-o  forte e livremente, depois, por uma série de desventuras, desilusões e doença, acabou por ficar nas margens ou orlas dele, embora especulando bem, amando seus amigos e próximos, tentando especular e intuir mais a grande unidade oceânica de consciência, energia e ideia, sem contudo conseguir sentir-se nela plenamente em Amor e com ligação à Divindade, Absoluto ou Fonte primordial.
Ora para além da doença que tanto fatigou e abalou o seu sistema nervoso, levando-o a desistir de viver mais na Terra, quando tinha apenas 49 anos, embora estes tivessem sido bastantes vivenciados e marcados no seu corpo e alma, também alguns erros de percurso, de valorização de estudos, escritas e opções filosóficas e religiosas  acabaram por o impedir de se abrir suficientemente ao mundo espiritual e divino e nisto nos estimulando ou obrigando mesmo a constantemente pormos em causa a nossa verticalidade e empenho na mais alta realização espiritual que nos é possível
Pensaria Antero de Quental que como alma sobreviveria à morte física e que tal acto de suicídio não era condenável pela justiça cósmica e divina, ou não acreditaria ou valorizaria ele muito uma sobrevivência individual sob que forma fosse, embora alguns dos seus últimos melhores sonetos sejam exactamente os que falam sentidamente de uma comunhão com os mortos?
Santo Antero, peregrino da justiça e da liberdade, santo  por ser bondoso, pesquisador da verdade, sóbrio no viver, estóico no sofrer e disseminando a ética e a sabedoria, a bondade e o amor nas suas relações, diálogos e cartas?

Santo por se ter entregue à sua missão, ao swadharma, ao seu impulso de dever interior, moral, ético, algo sacrificial, fazendo sagrada a sua via dolorosa, tal como os outros seres, todos sofridos e ora santificados ora mitificados pela história e o povo?
Quem conheceu ou vivenciou mais o Espírito dos cinco, por amor, conhecimento ou visão? 
O Infante Santo D. Fernando pela sua interioridade cristã e dura e longa vivência de 16 anos de provação sofrida? 
Antero de Quental, na sua juventude vivendo corajosamente a imensa força do amor e da sede de justiça, liberdade e verdade, e na sua maturidade procurando-a estóica e  filosoficamente? 
Camilo Castelo Branco, na sua criatividade amorosa de investigador, polemista e romancista genial  mas destroçado pelas desgraças familiares e a cegueira?
Fernando Pessoa, na sua demanda solitária sociológica e, patriótica, poética e gnóstica, tão estudioso da criatividade poética, dos mecanismos do génio, dos meandros do ocultismo e do esoterismo?
Bem difícil de compararmos e julgarmos, tanto mais que não é tão evidente o meio de aferirmos comparativamente tal realização em cada um deles, embora possamos pensar que avançou mais lucidamente, mais desperto na vida post-mortem, e rapidamente se internou nos mundos espirituais,  quem  estaria mais identificado ao espírito ou porventura ligado ao seu mestre ou santo, anjo ou Deus.
 Todavia, podemos considerar ainda que as orações que lhes foram enviadas depois das suas mortes os terão ajudado a religarem-se ao espírito e avançarem para o divino. E aí talvez as preces, missas e rituais dos cavaleiros e religiosos da ordem de Santiago, de que D. Fernando, o Infante Santo, era mestre, tenham sido  poderosas no impulso para a alma desincarnada se auto-consciencializar, iluminar e avançar no mundo espiritual. E talvez sendo também ele no fundo quem se tenha  mais sacrificado e santificado, voluntária e involuntariamente, na longa provação mortífera que lhe coube como fava no bolo-rei da Ínclita geração.
 Fernando Pessoa, que no fim da vida bastante desiludido afectiva e socialmente se estava a alcoolizar, embora muito conhecedor das mais importantes doutrinas espirituais, e Antero de Quental, a desanimar-se do meio nacional e insular, rumo ao suicida, embora ambos carregados de valiosos poemas, quão melhores estariam que o jovem ambicioso, e algo fanatizado no império da conquista, D. Sebastião que, tombando na força da juventude em Alcácer Quibir, sem confirmação absoluta de tal, logo muito rezado, foi erguido miticamente a encoberto salvador que virá, algo que Fernando Pessoa tanto exaltará e cultivará depois, inserindo-se ele próprio na Mensagem nessa linha ou veia, pelo menos como profeta dela? Mistério...
Agora, hoje, se conseguem eles ou não movimentarem-se bem à vontade no grande oceano da Anima Mundi, na autoconsciência de espíritos luminosos, de cavaleiros do Amor, quem sabe até inspirando-nos, é uma questão que cada um de nós poderá sentir ou intuir seja na meditação das suas vidas e obras, seja na nossa capacidade de (inspirados por eles ou outros), nos erguermos acima das circunstâncias ambientais que tanto  dispersam, desanimam ou vitimam e cumprirmos as nossas missões libertadoras e iluminadoras...
 No fundo, embora a linha do horizonte do mar marque um umbral oceânico, será sempre no mar do nosso sentir e do ver no nosso interior que a Luz e o Amor do Espírito e da Divindade deverão ser descobertos e recebidos, cultivados e vividos e daí partilhados...

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