terça-feira, 10 de março de 2020

Antero de Quental e Matias Lima. E o poema sinfónico "Antero de Quental" por Luís de Freitas Branco.

Matias Lima foi um escritor portuense dedicado aos estudos literários, poesia e livros antigos, deixando neste último campo uma obra pioneira e apreciada sobre as encadernações portuguesas e os seus encadernadores.
Vivendo entre 1885 e 1957, em 1918 escreveu Medalhões Nacionais (poetas e prosadores), publicado no Porto na livraria Chardron de Lelo & Irmão, numa homenagem a quarenta escritores do século XIX, reproduzindo uma pequena imagem-busto de cada um e comentando-a com um poema ou soneto de sua lavra. 
Começa em Almeida Garret, Castilho e Herculano e termina em António Feijó, António Fogaça (a quem consagramos um artigo), Eduardo Coimbra e António Nobre, passando por Camilo, João de Deus, Cesário Verde e Antero de Quental, etc.
Juntamos no fim do artigo a ligação musical ao poema sinfónico de Luís de Freitas Branco dedicado a Antero de Quental, que pode começar a ouvir já...
Vamos então transcrever a primeira quadra do soneto que Matias de Lima lhe dedica, no qual tenta resumir o ser e vida de Antero, e comentá-la. Mas se quiser ler o soneto, primeiro, sem comentários, abstraia deles...

«Quanta amargura a sua musa estampa!
A dor fez-se arte, a soluçar no verso...
Ensombrou o seu génio, sempre imerso
Na visão torturante do Além-campa.»

Comentário:
Valiosa esta ideia que a Musa, mais do que ser meramente a inspiradora, é a que imprime, estampa, determina, efectiva. Sai-se de um mero registo de namoro com a musa platónica, uma inspiradora que se acolhe,  para uma reactividade activa e geradora de luz visível.
Claro que podemos interrogar quem é a Musa (para além da mulher que nos possa inspirar),  se um ideal poético, se um outro dentro de nós com quem dialogamos ou que nos inspira, se uma entidade, um anjo, um espírito ou finalmente. se um conjunto de ideias, sentimentos e aspirações que se unifica num todo e que nos inspira, ou seja, a quem nós nos podemos abrir e receber um fluxo criativo...
Matias Lima vai retomar esta linha de interrogação sobre a essência e força que em Antero «ensombrou o seu génio», já que pôs a dor a soluçar nos seu versos, e prendeu-o num visionarismo torturante do mistério do Além.
Embora este Antero de Quental seja bem visível nos Sonetos, embora tenhamos que discernir o que ele vivia e o que ele poetizava, lembremo-nos da sua fase inicial lírica e depois a revolucionária e socialista, só depois, e também pela sua doença nervosa, começando a deixar que os mistérios do Destino, da Noite e da Morte  fossem ensombrando em parte a sua genialidade, abrindo-o  demasiado ao vazio,  ao nada, ao inconsciente e impedindo-o de se ligar mais aos níveis espirituais ou ao seu espírito divino, acabando por ser vítima dos seus pensamentos e nervos. Contudo, Antero não fez um estudo forte sobre o mistério do além, embora tivesse participado ou visto algumas experiência psico-magnéticas e espíritas, antes o sondou pela filosofia e o sentir e crer do seu coração.
 A segunda quadra diz-nos:

«Caminhou pela vida - estreita rampa,
inquirindo o mistério do Universo;
Buscando a luz, um só clarão disperso
que à lage tumular erguesse a tampa.»

Comentário: Uma bela caracterização da vida como uma estreita rampa  e lembra-nos Miguel Torga, um voluntarioso), a tal via estreita, num caminho ascendente, na qual haveria essa busca da luz «rompendo a treva que poderia afastar as limitações do conhecimento do mistério da morte».
Sem dúvida que Antero de Quental pesquisou os mistérios da vidas, mas se formos ver a sua biblioteca ou mesmo a sua correspondência, não encontramos tanto essa busca de Luz específica, espiritual, ainda que tivesse apreciado os místicos medievais da Theologia Germanica, e vemo-lo a laborar mais por um sistema filosófico, «a sua doutrina», que combinasse a ciência, a filosofia e a religião.
Primeiro terceto:
 
«O que é o Ser? É poeira dum momento?
Espírito liberto? Eternidade?
Em quem confiar: na Fé ou na Razão?»

Comentário: Matias Lima resume bem algumas das hipóteses que Antero de Quental cogitou, dualizando entre o nada, o niilismo, o ser que é pó e o espírito imortal que se acreditaria pela Fé, avançando com esta no caminho da libertação e da eternidade. Porém, a equação optativa apontada: ou de seguir a Fé ou então  a Razão em tal demanda não é muito correcta, embora mesmo Antero seguisse ou sentisse um pouco tal dualismo.
O que necessário é o conhecimento interior, a experiência espiritual, a gnose, a visão com o olho da alma, o desabrochar dos sentidos espirituais, a criação de uma relação pessoal com a Divindade, que seja sentida e vivida, e não apenas acreditada pela fé ou então ao contrário pensada, raciocinada.
 
 O último terceto sonda já o mistério da sua morte, seja das causas seja desse preciso instante:
 
«A luz não lhe beijou o pensamento...
Buscou a morte em gritos de ansiedade
por não poder viver na escuridão!»

Comentário: Muito provavelmente a luz tenha várias vezes estado forte em si e nos seus sentimentos e pensamentos, e constamo-lo em muitas das cartas que dirige aos amigos e em alguns poemas e sonetos. Talvez possamos dizer que talvez seja mais o Amor que lhe faltou, provavelmente até por uma ou outra desilusão sentimental ou de amizades. Amor que não o aqueceu suficientemente,  seja guiando-o na aspiração e meditação espiritual, seja descobrindo sempre novos férteis campos para a sua força de vida e pensamento, seja dando-lhe forças para resistir às desilusões circunstanciais.
Enfraquecido pela misteriosa doença nervosa e a má alimentação, e desanimado com os últimos momentos da sua vida, sobretudo o de ficar sem as duas crianças que adoptara, filhas do seu grande amigo Germano Vieira Meireles, e ter de regressar a Lisboa que já pouco lhe dizia,   preferiu "samuraicamente" matar-se, ou seja, entregar-se à morte misteriosa, escolhendo o momento do encontro da morte -  ser e estado que ele tanto cultuara, meditara e amara até.
"Gritos de ansiedade por viver na escuridão", não nos parece  acertado. Poderá ter gritado a sua vontade de estar em amor, em paz, a sua vontade de estabilidade, mas não vemos gritos, excessos de sentimento e sensibilidade contra o seu estado cognitivo ou mundivivência de então.
Antero não estava na escuridão. Apenas desiludido e perturbado orgânica, neurológica e emocionalmente.
Mas certamente será sempre um mistério qual era o seu pensamento quanto a se Deus, ou a Ordem do Universo, ou a Verdade aceitavam e teriam como bem ou justa a sua morte voluntária...
Poderemos contudo admitir, na linha de Matias Lima, que Antero quis deixar o estado semi-obscuro desta vida pelo que de mais Luz pressentia, acreditava, desejava...
Fica  ainda a questão se realmente, ao matar-se, passou a sofrer menos ou mais, ou se entrou para uma Luz maior ou não...
Pelo sim pelo não, recomenda-se em geral e prudentemente tanto que as pessoas não se matem, como que oremos pelas que fizeram isso, pois dizem certos mestres que passarão muitos anos no invisível sofrendo...
Luz e Amor divinos brilhem então intima e fortemente em Antero de Quental, Matias de Lima e Luís de Freitas Branco...
 Segue-se o belo, profundo e solene poema sinfónico que Luís de Freitas Branco,  jovem de 19 anos, dedicou a Antero de Quental, sob o impacto da sua leitura, a qual, tal a de Luís de Camões, muito apreciava, sendo tocado pela 1ª vez em 11 de Abril de 1915. Aum...
                 

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