domingo, 10 de novembro de 2024

Colóquio internacional “𝗨𝗺 𝗢𝗹𝗲𝗶𝗿𝗲𝗻𝘀𝗲 𝗻𝗼 𝗧𝗲𝗰𝘁𝗼 𝗱𝗼 𝗠𝘂𝗻𝗱𝗼”, o Padre António de Andrade no Tibete. Imagens do encontro e das visitas. Organização excelente da Câmara Municipal de Oleiros.

Uma tanka com Sidharta Gautama o Buddha, as bandeiras de Oleiros, Portugal e União Europeia, o retrato do Padre António de Andrade e a oração tibetana Om Mani Padme Hum Hri, que o Padre António de Andrade comentou, bordada numa faixa avermelhada. Oleiros, 9.XI.2024, quatrocentos anos desde a sua 1ª carta-relação do Descobrimento do Tibete.
Miguel Marques, presidente da Câmara Municipal de Oleiros, que tem manifestado notável dinamismo no apoio  ao património cultural e humano de Oleiros e particularmente à vida e obra do P. António de Andrade, abre o Colóquio, vende-se ainda o co-organizador Joaquim Magalhães de Castro, e Maria Manso.       
À esquerda, Marco Serote Roos, que proferiu a 1ª comunicação sobre as viagens terrestres e marítimas anteriores à descoberta do Tibete, intitulada "Os Descobrimentos na Ásia Central: antecedentes da missão de António Andrade", e à direita Maria de Deus Manso,  proferindo a segunda comunicação sobre a devassa à morte por envenenamento do mártir Padre António de Andrade, intitulada: "Além dos limites: a Viagem ao Tibete do Padre António de Andrade e as controvérsias em torno da sua morte em Goa"
                                                              
O último dos três oradores da manhã, o sacerdote jesuíta António Trigueiros, apresenta a sua comunicação: "O Padre António de Andrade na documentação jesuíta romana", acerca das cartas e assinaturas de António Andrade, partir do fundo ou arquivo da Companhia de Jesus, hoje disponível online na sede da revista Brotéria, e ainda as avaliações que lhe foram feitas internamente na Ordem, sobre os seus aspectos psicosomáticos,
A assistência interessada, que chegou a ser de 80 pessoas no início, destacando-se na primeira fila o Presidente da Câmara Miguel Marques, o vereador da Cultura Paulo Urbano e a co-organizadora do colóquio Inês Martins, sempre presente na sua claridade. 

O homenageado, o heróico e santo missionário António de Andrade, nascido em Oleiros em 1580 e desencarnado em 1634, em Goa, pioneiro da ligação entre Portugal e a Europa e o Tibete.
O excelente pavilhão Multiusos em que decorreu o colóquio, numa arquitectura fortemente assente nos dons naturais de Oleiros: a madeira e o xisto. 
Parte da tarde: Maria João Coutinho profere a sua comunicação acerca da "Arte e Cultura na Assistência portuguesa no tempo de António de Andrade, s.J." , Joaquim Magalhães de Castro e António Graça de Abreu.
O Padre António de Andrade, e a Maria João Coutinho. 

Pedro Teixeira da Mota, o encontro ecuménico e as qualidades do P. António de Andrade

António Graça de Abreu, mostrando algumas fotografias captadas no Tibete, após a sua palestra "O P. António de Andrade na prosa exuberante de Aquilino Ribeiro."
Os anfitriões e organizadores,  e os conferencistas do 1º dia. 

Dia 10, Domingo, manhã, após a palestra de José Raimundo Noras, "António de Andrade e as cartas do Tibete -  urgência da Redescoberta", em que abordou as cartas no seu conjunto e a sua recepção, a Inês Martins tece algumas considerações antes de subirem ao estrado os outros comunicantes presentes, Maria João Coutinho, António Graça Abreu, Marco Serote Roos e Pedro Teixeira da Mota, que tiveram oportunidade para realizarem uma última intervenção conclusiva e valiosa.

Alguns dos objectos sagrados tibetanos expostos na homenagem ao encontro do Padre António de Andrade com o Tibete e com a sua diversificada tradição cultural, artística, religiosa e espiritual.
O cartaz do programa do Colóquio recria bem o encontro fabuloso do Padre António de Andrade com a civilização Tibetana, perenizado pelas suas tão valiosas quão emocionantes cartas.
 

 

No espaço galeria da Câmara Municipal de Oleiros a exposição temporária de esculturas em pedra de Luís Alenquer, com algumas peças de grande beleza.
Luís Alenquer e a instalação de um portal.
Início da visita guiada por uma das animadoras do Colóquio, Anabela Silva.

A forte representação do Padre António de Andrade realizada por José Leitão de Paula e inaugurada e benzida em 2020, no centro da Vila de Oleiros evocando bem o seu mais ilustre conterrâneo.
Um dos conferencistas, sobre a espiritualidade ecuménica das missões da corte mogol e do Tibete, sentindo grato o coração espiritual, sob a invocação ou sintonia do heróico e santo padre António de Andrade.
Símbolos religiosos comuns: a mitra tibetana, e o pendente do rosário cristão.

A casa onde viveu o P. António de Andrade, e que se encontra bastante degradada à espera de se tornar a casa museu e centro Padre António de Andrade, talvez para ser inaugurada no quarto centenário da sua morte em 1534.
A guardiã e dona da casa, que ouviu muito interessada as comunicações, conversa com dois dos participantes do colóquio e da visita guiada, um deles muito feliz por ter-se mudado para Oleiro há dois anos, e participar nas múltiplas actividades organizadas pelo Município, onde destacou as da Universidade Sénior de Oleiros.

Nave da matriz dedicada a Nossa Senhora da Conceição e onde o Padre António de Andrade foi baptizado em 1580. Começada construir-se em 1532 e já terminada no século XVIII, tem belas esculturas, talha e azulejaria.
O tecto da nave central, bem ornado de caixotões, pintados no séc. XVIII com  frases das Escrituras e seus símbolos alusivos aos predicados da Maternidade Divina....

A Inês Martins, a co-organizadora e coordenadora do Colóquio interrogando qual a melhor designação da tão bela quão invulgar escultura em pedra de ançã, ainda do séc. XV. se Nossa Senhora do Rosário, se Senhora da Rosa, mística.
A belíssima imagem de Nossa Senhora do Rosário, ou da Rosa irradiando a admiração como via de aproximação ao Divino, tendo ao lado um S. João Baptista (séc. XVII-XVIII), de excelente lavor.
Bela imagem de Santa Margarida, domadora do dragão, padroeira de Oleiros, num dos altares laterais e junto a S. Miguel.
A cruz da Ordem de Malta, a quem foi entregue a área de Oleiros no início do seu desenvolvimento urbano, no tecto da nave central.
No adro da Igreja, junto a uma pintura recente de Nossa Senhora da Conceição, e ao Freixo recentemente datado com seiscentos anos, Daniela Hengeller, Inês Martins, José Luís Santos e José Raimundo Noras em conversas.
Meias faces no Freixo multicentenário, sob o qual certamente a criança António de Andrade brincou.
Junto ao curso de um riacho, a um quilómetro da vila, o belo espaço rústico dos "Refúgios do Pinhal" que acolhe excelentemente os seus hóspedes.
O co-organizador e moderador do Colóquio, Joaquim Magalhães de Castro, notável expedicionário moderno do Tibete, de manhã, no Refúgio do Pinhal, e com uma pilha de livros sobre o Tibete que o António Graça de Abreu trouxe para a biblioteca de Oleiros e quem sabe se para a futura casa-museu e centro Padre António de Andrade.
A bela vista sobre a serra do Muradal, de um dos bons restaurantes que acolheram os participantes, o Apalaches Trail House, avistando-se ainda o Miradouro do Zebro traçado por Siza Vieira e recentemente inaugurado no 25 de Abril.
Uma pequena tanka, com Sidharta Gautama, o Buddha, perfumada pelas belas rosas de Oleiros...
Nam mk'a, um amuleto protector de ameaças a vários níveis, cruciforme, em fio de lã colorido, trazido de um mosteiro tibetano já há uns anos, mas ainda vivo e que esteve em exposição, e que prova algumas das afinidades que o Padre António de Andrade observou entre o imaginário religioso himalaico e cristão. Rodeia-o um rosário com a particularidade de conter ainda algumas contas com pedaços de ossos, que o Padre António de Andrade refere nas suas Cartas perenes e que merecem ainda ser bem aprofundadas e divulgadas.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

O P. António de Andrade e a descoberta do Tibete. Reflexões introdutórias ao colóquio "Um Oleirense no Tecto do Mundo.", 9-10-Novembro, em Oleiros.

                                                                   

O Padre António de Andrade e o Tibete.
Ensaios de caracterização, de compreensão psíquica, deste português nascido em Oleiros em 1580 e que peregrinou até até às nascentes do Ganges e ao Tecto do Mundo, por entre dificuldades pasmosas, são valiosos de realizarmos, para compreendermos melhor que forças físicas, psíquicas e espirituais detinha ele para ter triunfado durante os seus 54 nos de vida, partindo do centro de Portugal, de Oleiros, formando-se em Coimbra, Lisboa e Goa, missionando na corte mogol em Agra durante quatro anos e lançando-se ao Tibete em duas viagens audaciosas, a segunda numa permanência de mais de quatro anos.
                                              
Sabemos pouco dos seus pais (Margarida Andrade e Bartolomeu Gonçalves), das suas características físicas e da educação inicial, apenas que era de família importante na vila, já que o jurisconsulto e conjurado de 1640 Francisco de Andrade Leitão, o confirmaria anos depois como seu parente, nem com quem conviveu e aprendeu e terá ser pelas descrições das suas viagens que poderemos deduzir a sua constituição psico-somática e o que tinha ou levava consigo para arrostar tantos perigos movido por uma aspiração religiosa imensa, bem patente sobretudo na 1ª carta que o tornará mais famoso, escrita em 1624, já com vinte e quatro anos de permanência na Índia, e publicada em Lisboa, em 1626, num folheto de 16 páginas, onde descreve a sua arrojada exploração missionária ao Tibete Ocidental, ao reino de Guge e a sua estadia na capital Chaparangue.

                                                         
Noviço em Coimbra desde os 15 anos, formado depois em Lisboa como irmão jesuíta, chegado em Outubro de 1600, com mais companheiros, a cidade de Cochim, na nau S. Valentim, numa das armadas enviadas regularmente de Lisboa para a Índia, António de Andrade sabia bem ao que ia e o que deveria contar: esforços, sacrifícios, sofrimentos, na esperança de apostalizar, de salvar almas, de servir Jesus Cristo e a Igreja.
Este aspecto de dedicação religiosa e abnegação era comum nos arrojados missionários, que por si mesmos, ou porque sentiam que participavam na gesta portuguesa dos Descobrimentos, se ofereciam e lançavam mares a fora para evangelizar, assim talvez justificando melhor a empresa dos Descobrimentos como missão religiosa portuguesa. Haveria portanto bastante patriotismo em alguns, e menos noutros, até porque vários jesuítas estrangeiros lançaram-se também na gesta, e certamente não será fácil equacionarmos em termos percentuais de intensidade as motivações vibrantes em cada um dos missionários, nomeadamente em António de Andrade: como e quando lhe nascera a vocação e com que causas principais?
A carta-relação datada de 8 de Novembro de 1624, de Agra, e portanto já da missão dos Portugueses na corte mogol do imperador Jahangir, onde regressara após cerca de sete meses da 1ª viagem ao Tibete, é antecedida de um prefácio do editor  Mateus Pinheiro, muito patriota e atento ao que se passava na gesta mundial portuguesa, afirmando contudo que a razão mais elevada dela era o serviço de Deus.
Tal fé na missão divina da evangelização, comum a quase todos os missionários, é plenamente partilhada pelo P. António de Andrade na sua carta e este acreditar num Deus, numa doutrina, numa religião quando estamos entre fiéis e amigos é fácil, mas em viagem em terras estrangeiras, com religiões diferentes, pode ocasionar choques, despiques violentos e mesmo perigos de prisão e de morte.

Muito dependia do tacto, empatia-amor e sabedoria do missionário, mas também da sorte ou azar das circunstâncias, da bondade ou maldade dos actores que os rodeavam, do espírito da época, mas observaremos como o P. Andrade era dotado de um sentido arguto dos perigos e de um bom tacto diplomático, embora se mantivesse firme nas suas doutrinas e decisões, sabendo contudo adaptar-se.

Akbar no diálogo ecuménico em busca da religião da Verdade, Din-I-Ilahi.
Aconteceram contudo momentos de grande diálogo intereligioso como ele sabia na própria corte Mogol desde 1579, ao tempo do genial imperador Akbar (1556-1605), uns anos antes de ele chegar a tal corte esplendorosa em 1612, também como missionário enviado de Goa, e algo desse ambiente dialogante ainda sobrevivia no seu filho Jahanguir, com quem o P. Andrade dialogou e depois em Shah Jahan e finalmente com Dara Shikoh, o malogrado místico e aproximador da filosofia Yoga Vedanta e do Islão.
A segunda viagem, descrita em carta enviada do Tibete com a data de 15 de Agosto de 1626, relata bem os diálogos e discussões com os lamas e partilha o começo da Tibetologia ocidental (e em especial o Om Mani Padme Hum), certamente com as limitações do pouco domínio da língua e da cultura tibetana. Fora enviada para os seus superiores, mas só será publicada entre nós e algo modificada pelo P. António Franco em 1717, em 24 páginas da sua obra Imagem da Virtude no Noviciado da Companhia de Jesus na corte de Lisboa. É porém só em 1921, quando Francisco Esteves Pereira  publica as duas cartas e as contextualiza, que se patenteia publicamente o grande valor do Padre António de Andrade.
Após a sua vida abnegada, sábia e heróica, seja na corte mogol, seja nas duas árduas viagens e estadias em Chaparangue no Tibete Ocidental, seja nos vários anos como sacerdote, professor e Provincial da Companhia de Jesus em Salcete, Rachol e Goa, quando se preparava em 1634 para partir de novo para o Tibete, acabará, ao apoiar a investigação de suspeição de judaísmo num irmão jesuíta, por morrer envenenado, mas com tal aura de santidade que a breve trecho o seu túmulo foi considerado miraculoso, bem como a sua imagem. Mas não foi canonizado, apesar das várias atestações da sua virtude e santidade em curas.

Será apenas agora 400 anos exactos depois da redacção da sua primeira carta, 8 de Novembro de 1624, que a Câmara Municipal da sua terra natal, Oleiros, organiza um colóquio, com bons participantes e moderado pelo experiente viajante do Oriente e do Tibete, Joaquim Magalhães de Castro, nos próximos dias 9 e 10 de Novembro, no qual se homenageará e aprofundará o seu espírito e obra de diálogo, tanto missionário como ecuménico, com o povo e a civilização tibetana, numa intereligiosidade pioneira entre o Ocidente e o Oriente, que certamente de novo frutificará...

Símbolo ou amuleto protector, cruciforme e em losango, no meio do rosário com que se pronunciava o famoso mantra Om Mani Padme Hum Hri, ao qual o P. António Andrade ousadamente acrescentou nova hermenêutica: Deus, separa-nos e purifica-nos dos nossos pecados ou faltas...

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Desidério Erasmo, mestre espiritual de Portugal, da Europa e da Humanidade, perenemente. Nas comemorações em 2024 do seu aniversário.

A afirmação de Erasmo ser um mestre espiritual de Portugal, da Europa e da Humanidade assenta em várias razões, das quais enumeramos algumas:
Entendeu que a paz e a concórdia eram a base fundacional da humanidade e da cristandade europeia e procurou educar as pessoas para se aperfeiçoarem e estarem em paz.
Foi um defensor e propugnador da não-violência e da tolerância, bem com do livre arbítrio, dos estudos e publicações livres, da procura da verdade, e da sabedoria e vivência ecuménica, de modos fortes e pioneiros (que levaram algumas das suas obras a serem censuradas ou proibidas), pondo por exemplo em causa tanto a conversão dos infiéis quando os missionários ainda não se tinham verdadeiramente convertido, para além de que os turcos podiam ser mais religiosos que os cristãos, como ainda os monopólios que o rei de Portugal tentava introduzir no comércio das especiarias, no que prefigurava de certo modo as actuais sanções desmesuradas da oligarquia ocidental sobre as economias emergentes ou mais socialistas. Ou o monopólio das edições, metodologias e hermenêuticas com que algumas universidades e teólogos se arrogavam.
Um sofista sorbónico, por Hans Holbein, para o Elogio da Loucura.
Realçou o trabalho a realizar-se sobre os instintos e desejos, hábitos, preconceitos e medos, e exemplificou-o na sua vida, realçando a pureza, a sinceridade, a sobriedade.
Foi bastante crítico (bem ironicamente no Elogio da Loucura), do ego, do egoísmo, das superstições, da vaidade, sede do poder, dogmatismo e mostrou tal desprendimento egóico e das presunções e riquezas na sua vida de studium, isto é, estudo e esforço, que dizia lhe ter evitado vícios ou fraquezas,
Valorizou muito a piedade, a pietas docta, o amor, a compaixão, a fraternidade, nas suas obras e nas suas convivências com amigos e pessoas, para os quais foi tanto um companheiro como um mestre, tal como vivenciou durante alguns meses que viveu com ele o principal representante de Portugal dos Descobrimentos na Europa, o seu confabulator Damião de Goes, corajoso defensor dos lapões e etíopes numa precoce multipolaridade de costumes, povos e religiões. 
Valorizou bastante a palavra, o Sermo, o Logos, a sinceridade, o efeito das palavras e sons, e o seu uso nas conversas, discursos e orações e várias das suas obras iniciais foram meios de ensinar a saber escolher e usar as palavras e exemplos, com elegância e propriedade, para além do seu ganha pão inicial de preceptor e humanista.
Foi um mestre do controle dos pensamentos e imaginação, da meditação e da oração, deixando-nos várias orações e meditações, várias delas incluídas no seu Modo de Orar a Deus que publiquei em 2009.
Capa de Maria de Lurdes Oliveira, a Lucha, que ilustrou ainda a obra com um desenho.
 Valorizou o canto, o êxtase, o rapto como estados intensificados de energia-consciência e de unificação e de aproximação à união com Deus, tal como quando escreve no Modo de Orar  a Deus «Há um hino quando o ânimo, tendo considerado (considerata) a sublimidade de Deus, é arrebatado (rapitur) no louvor daquele, a quem somente é devida  toda a glória». Ou ainda: «quem com o olhar do espírito, contempla do interior a glória da filha do Rei, diz com o profeta: "a minha alma aspira aos átrios do senhor, ela desfalece aí". Ekleipen (desfalece) é próprio dos que desejam de um modo supra-humano intensíssimo".
Esteve sempre consciente do corpo psico-espirital e da necessidade de trabalharmos com ele, como por exemplo este dito bem realça: «a luz da fé agudiza o olhar espiritual e permite-lhe distinguir mais coisas que não podem os olhos do corpo.» Da concórdia amável da Igreja, 1536
Realçava a importância fundamental da religação da alma humana à Divindade e por muitíssimos modos a expressou e ensinou,ora usando palavras das Escrituras, da Patrística ou suas, e podemos resumi-la, entre outros modos, assim: -"Há um corpo espiritual, há um coração puro que Deus cria em nós e há um espírito direito que ele recria de novo nas nossas entranhas." 
A empresa tipográfica de Fröben, de Basileia, grande amigo de Erasmo.
Valorizava o trabalho em grupo, seja social, seja literário e editorial (e assim trabalhou nas tipografias de Aldo Manutio e de Froben), seja religioso, como um acto harmonizador e gerador de boas emanações no Universo, tal como quando escreve: "cada vez que as pessoas se reúnem no respeito das leis e para um objectivo honesto, o seu gesto comporta uma certa dignidade e é mesmo criador de alegria, logo com que respeito não se deve envolver uma assembleia de pessoas piedosas agrupada para prestar culto ao Deus vivo, tanto mais que se liberta uma tal força do coro formado por aqueles a quem confiança em Deus une intimamente, que mesmo os profanos sentem admiração."
Se na época foi por muitos reconhecido como mestre e com o decorrer dos anos as suas obras não deixaram de ser lidas com proveito, contudo poderemos nós pensar que Erasmo quando morreu em 1536, algo em bolandas entre cidades ora protestantes ora católicas por causa das lutas da Reforma, estaria frustrado quanto a um dos seus objectivos, o da unidade da Cristandade?
Provavelmente não, pois o objectivo ou dharma de cada um de nós é fazer o que pode, transmitir as energias que tem para o universo de acordo com o que recebeu, assimilou e gera, e os resultados não são tanto da sua conta, não estão em seu poder, devendo estar equânime perante as críticas ou ataques que recebe, tal como Erasmo bem demonstrou enfrentando tantos adversários das suas ideias em polémicas fortes, sem desanimar e perseverando fiel do Amor e da Verdade, tal como também ensina a sabedoria indiana na Bhagavad Gita, 2, 47, tens o dever da acção justa mas não o direito aos frutos.
 Os seus objectivos principais foram aprender bem o latim e o grego, contribuir para a união da cultura clássica com a cristã e inserindo-a na contemporaneidade para a melhoria da Humanidade e assim procurou manuscritos, mergulhou neles e recuperou o conhecimento das belas letras antigas e da sua elegância e sabedoria, e transmitiu-a aos seus alunos e depois leitores.
Atraído pela fonte viva religiosa do Cristianismo que é o Novo Testamento lançou-se na recuperação, clarificação, actualização da mensagem de Jesus e gerou dezenas de obras, seja originais seja de tradução e anotação, seja de comentários e paráfrases. O que fez também com grande qualidade com os primeiros padres da igreja traduzindo, anotando, comentando S. Jerónimo, S. Agostinho, S. Hilário, S. Crisóstomo, Orígenes e outros.
Para além do seu trabalho literário e religioso houve as várias obras de pedagogia, que influenciaram gerações e gerações, e na quais podemos de certo modo incluir as mortais obras primas dos Colóquios e do Elogio da Loucura, com o lúcido desmascarar do que era exagerado, limitado, negativo, contrapondo as vias correctas ou mais harmoniosas e felizes.
Sancte Erasme, ora pro nobis, ora cum nobis!
Em todos estes labores conseguiu dar à luz milhares de páginas, impressas em biliões, alcançando milhões leitores não só na época como ao longo dos séculos, que se alegraram com efeitos luminosos, que lhe agradarão até hoje no além, nos mundo espirituais, onde certamente é um guia, um mestre, com quem podemos sintonizar.
 Entre os portugueses do seu tempo que tinham  coração e o olho espiritual suficientemente abertos para reconhecerem o seu valor deveremos mencionar o seu grande amigo Damião de Góis, escrevendo no prefácio à tradução de Catão, de Cícero): «aquele prudentíssimo e gravíssimo Erasmo Roterodamo, neste nosso áureo e doutíssimo século, príncipe de toda a doutrina e eloquência», André de Resende,  em 1531 no Erasmi encomium, impresso por Froben: «homem de juízo acérrimo, considerado entre os escritores, o Aristarco do nosso tempo», sendo de se realçar que Aristarco fora um gramático e retórico de Alexandria, que restabelecera os textos de Homero, e inspirara a exegética espiritualizante de Orígenes, mestre de Erasmo, que por sua vez restabelecera os textos de Jesus. E quando Erasmo desencarna, André de Resende, a Damião de Góis, exclama: «extinguiu-se para o mundo aquele que era o ornamento que os séculos nuca chorarão suficiente». E apela: «aqueles que profanaram a sua reputação acusando-o de heresia, aprendam agora a moderar as suas sevícias e deixem ao menos intactas as suas obras que a posterioridade grata poderá venerar e honrar». Também Diogo Pires expressa em 1545 quanto o amava, em belos poemas e num epitáfio: «Aqui jaz um homem divino, Erasmo, do amor exemplo. Quanto à sua alma, essa tem morada no Olimpo, entre os bem-aventurados», isto é, os santos, mestres, sábios e guias da Humanidade. 
Erasmo num Graal e Olimpo português.
  Se é verdade que com a sua douta piedade e irenismo (pacifismo) quis que houvesse uma reforma moderada da Igreja, e a conseguiu interiormente em si e em muita gente amiga - e foi um dos centros de força de tolerância e concórdia durante a época da Reforma, do Protestantismo e da Contra-reforma papal -, se a Igreja Católica veio a ficar cindida, a culpa não foi sua, tal como alguns disseram ("Erasmo pôs os ovos, Lutero chocou-os"), mas sim porque isso tinha de acontecer, seja por ganâncias e nacionalismos, seja por caracterologias e equilíbrios e desequilíbrios de forças. E ressalve-se que a sua batalha pela unidade e concórdia numa Igreja purificada, piedosa e douta não morreu com ele, pois entre protestantes e católicos nos anos a seguir ainda houve encontros (Leipzig, Worms, Ratisbonna) promovidos por Carlos V e as alas moderadas adeptas das ideias de Erasmo, para se chegar a acordos que evitassem a divisão no cristianismo, consumada contudo, com perdas importantes quanto aos aspectos devocionais com santos e santos, anjos e arcanjos e suas imagens, ainda que amenizada nos nossos dias, ressalvando-se terem nas últimas décadas surgido muitas seitas evangélicas e dos últimos dias altamente manipuladoras da mensagem de Jesus ou dos Evangelhos, exploradoras dos fiéis, e fanáticas ou mesmo diabólicas. Quanta falta faz a esses pastores os estudos bíblicos, comparativos e erasmianos, para além da docta pietas?
Ao deixar-nos 3.000 cartas, algumas cotejáveis com as que lhe enviaram e que reunidas todas já no séc. XX por Allan em 12 volumes, que são uma fonte monumental e extraordinária de informações interactivas e dialogantes históricas e psicológicas, e plenas de ensinamentos éticos, religiosos e espirituais, mais ainda se comprova o valor de Erasmo como mestre perene da Humanidade.

Sabermos também nós bater à porta do reino dos céus interior, pedir e receber.

Tal como o seu amigo e sábio platónico John Colet, deão da escola da catedral de S. Paulo em Londres, onde a tão bela imagem de Jesus a bater à porta, do pre-rafaelita Holmam Hunt,  se encontra, profetizou o Nomen Erasmi nunquam peribit, "O nome [e espírito] de Erasmo nunca perecerá…",  assim ainda hoje Desidério Erasmo toca, ilumina e inflama animicamente  os que o leem, estudam, editam e meditam, pelo que sempre renascerão testemunhos e frutos dos seus estudos e criatividades, amizades e ligações, tal como nós laboramos neste anel de graças em que lhe retornamos o amor sábio que ele tanto manifestou, 557 anos depois de ele ter vindo à Terra sulcá-la tão estudiosa quão fecundamente com o seu espírito divino, de acordo com o que escreveu no seu tratado Da Educação das Crianças, o De Pueris: “Um homem não nasce homem, torna-se”.

Estudos das mãos de Erasmo, por Hans Holbein.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Nos 557 anos de Erasmo, um estudioso e amoroso da Divindade e da verdade religiosa ou religante a Ela. Alguns aspectos perenes da sua demanda.

                                                              

Ao longo dos anos tenho cultivado uma amizade com Erasmo que embora tenha frutificado num livro em 2008, muito mais gerou de pensamentos, meditações e escritos (sobretudo na época), além de uma vontade de dialogar com ele e o compartilhar, para maior lucidez e sabedoria das almas que hoje em geral pouco ou nada o conhecem, já que sem a memória do passado luminoso o presente é mais manipulável e o futuro menos promissor, amplo e conducente a uma vida post-mortem luminosa.

Perfazendo-se hoje 28 de Outubro o seu aniversário, e de 1467 (que pode ser 1466) a 2024 já são 557 anos, resolvi revisitá-lo, seja nos seus textos, seja no que já escrevi sobre ele, melhorando-o e partilhando-o...

Como sabemos Desidério Erasmo foi filho de um clérigo, e foi também ele a partir dos 17 anos um religioso, embora cedo tenha recebido um estatuto especial devido aos seus excelentes dotes de sensibilidade e inteligência e à pouca vocação para estar limitado pela rotina do mosteiro dos Agostinhos em Steyn, onde tivera de entrar pela morte dos pais, sendo  ordenado sacerdote em 1492 e entrando para secretário do bispo Hendrik van Bergen, o que lhe permitiu viajar pela Europa durante  dois anos e encontrar-se e conviver com  humanistas e religiosos, dedicados às letras, à religião, à sabedoria perene.

Estudando em Paris, ao mesmo tempo que já ensinava jovens, mas desiludindo-se com a metodologia escolástica meramente formal, tortuosa e insípida, virá após diversas viagens e trabalhos, a doutorar-se em Turin, apenas em 1506, mas independentemente disso as suas edições anotadas, as traduções e obras sucessivas granjeiam-lhe uma grande reputação seja pela inteligência compreensiva do latim e da civilidade e literatura clássica, traduzindo Terêncio, Eurípedes, Luciano, Plauto, Juvenal,  e a capacidade de a ensinar, como pela ironia com que criticava os defeitos da época e apontava para as qualidades valiosas,  e ainda pela coragem de enfrentar e dialogar com os meios e agentes  mais conservadores. E sobretudo pelo seu grande amor ao conhecimento e à mensagem de Jesus, a philosophia Christi, que palpita nos Evangelhos e  corre nos escritos dos primeiros padres da Igreja que ele mais tarde virá a traduzir do grego em latim e a comentar, tornando assim acessíveis os grandes mestres do cristianismo inicial, tais como Clemente de Alexandria, Orígenes, S. João Crisóstemo, S. Hilário e outros.

Escrevendo tantos livros sobre a educação, a ética, a religião, tais como os dedicados à morte, ao casamento, à aprendizagem de línguas, à conversa  e à elegância do estilo, à guerra e à paz, à oração, Erasmo tornou-se um farol de grande luz no Renascimento. As obras que tiveram mais sucesso foram sem dúvida o Manual do Cavaleiro Cristão, o Elogio da Loucura, os Colóquios e os Adágios, e com eles alcançou milhares de pessoas e criou uma reputação imensa, que originou tanto críticas dos meios mais ortodoxos e reacionários como a criação de um círculo de amigos, correspondentes e confabuladores sólidos, onde se destacaram Thomas More, John Colet, Beatus Rhenanus, os Froben, e até o nosso Damião de Goes e logo a manutenção de uma correspondência com dezenas de estudiosos, humanistas e sábios, que sobreviveu em grande parte, com mais de 3.000 cartas, mostrando por dentro da sodalidade ou irmandade humanista o pulsar cultural, sócio-político e religioso europeu durante cerca de quarenta anos importantíssimos, antes e durante a Reforma fracturante da unidade cristã.

Ao  publicar em 1515, e com a aprovação do papa Leão X, um culto Medici, uma nova versão do Novo Testamento e que teve a ousadia de chamar Novo Instrumento, na qual, baseando-se em vários manuscritos até então não conhecidos, e mais científico na análise filológica, corrigiu a versão corrente, a Vulgata, em mais de 600 casos, Erasmo suscitou fortes clamores contrários, nomeadamente de dois ou três teólogos mais fanaticamente conservadores, obrigando-o a grandes polémicas e sendo posto no Índice dos autores de livros proibidos, nomeadamente pelas Universidades de Paris, a Sorbonne, e de Lovaina. Na segunda edição, em 1519, Erasmo, com mais modéstia, retirou o título de Novo Instrumento e passou a ser apenas Novo Testamento. E se as modificações e anotações eram de início mais de ordem filológica, com as polémicas  as sucessivas edições (1519, na qual usou vários manuscritos gregos e latinos não utilizados até então, 1522, 1527, 1535) passaram nas anotações a incluir  aspectos teológicos, morais e espirituais, e nelas Erasmo, reformista da Igreja e clarificador sincero e ardente da mensagem e espírito de Jesus, brilha. 
Exemplos instrutivos das anotações aos Evangelhos: Mateus, 3. "fazer penitência", para Erasmo voltar aos seus sentidos, a si mesmo, ou seja, fazer a metanóia, a transformação em relação ao passado. Actos, 19, acerca da "confissão", Erasmo considerava-a pública, não instituída por Cristo e não obrigatória, desejando que todos vivêssemos sem necessidade dela. Mateus 5, o "jurar, ou não". Para Erasmo Jesus não proibira o jurar, e apenas dissera que o cristão devia ter um carácter que lhe permitiria dizer  apenas "sim ou não" e não ter que recorrer ao juramento como qualquer pessoa comum fazia correntemente. Lucas, 3, "fazer guerra ou não". Erasmo propunha que um religioso não devia fazer guerra e que um cristão só a deveria fazer por "grande necessidade e honesta  utilidade", e que Cristo não a tinha recomendado, e como S. Ambrósio dissera "as armas da Igreja são a fé e as orações, pois são elas que vencem os inimigos." Lucas 1, "A saudação do Anjo" (ou arcanjo Gabriel) a Maria. Erasmo traduziu o grego kecharismene, por gratiosa em vez do gratia plena da versão corrente ou Vulgata. Ou seja, o Anjo chamara-a "graciosa" e não "cheia de graça", o que para os mais ortodoxos parecia um diminutivo da condição de imaculada de Maria. Também o considerar a saudação do anjo como "amatória" foi considerada ofensiva pelos seus contraditores, obrigando-o na 2ª edição a diminuir o seu afecto para "gentil". Marcos 14, Mateus, 2 e Eucaristia. 1 Coríntios, 11. Eucaristia. Na consagração, que Erasmo considerava difícil saberem-se as palavras usadas, pelo que seria melhor que houvesse menos dogmatismo da parte dos teólogo sobre elas, preferindo o frangere, "quebrar" ou "dividir" o meu corpo, em vez de tradere "dar", e pensando que não teria sido o verbo no futuro mas no presente utilizado. Após vários ataques nomeadamente, os da Junta de Vallodolid em 1527, submeteu-se ou amoldou-se mais à autoridade eclesiástica aceitando o valor dos decretos da Igreja já que a razão humana não podia saber ao certo o que fora dito no momento da última Ceia. Em relação à transubstanciação, acusado por Noël Beda e Leo Jud de a estar a negar, considerando o pão e o vinho como meramente simbólicos, o que era grave, Erasmo respondeu que apenas questionara se Cristo estaria presente sempre que se partisse o pão, e na edição de 1527, já depois da Junta de Valladolid, onde participaram teólogos portugueses para decidir da ortodoxia ou não de Erasmo, ele acabou por afirmar que o pão "era o seu verdadeiro corpo e não o símbolo do seu corpo, porque o corpo era transformado de uma maneira misteriosa". 
Erasmo não foi um grande frequentador da Eucaristia, talvez pela sua itinerância e porque a sua religação com o mestre Jesus e a Divindade estava activa a tempo inteiro, no que ele chamava a oração incessante e que tinha como base íntima o que afirmou no Modo de Orar a Deus: "O peito do cristão é o próprio templo de Deus, leva consigo o seu altar, contém Deus presente". Ou ainda,  e tão valiosamente: "Tanto mais é entrado o íntimo sagrado, e Deus feito próximo, quanto mais te recolheres em ti próprio."

Muito importante na dimensão do mundo cristão, alem das edições anotadas do Novo Testamento, foram, pelo seu sucesso em toda a Europa e em especial em Espanha, onde fora rapidamente traduzida (e muito bem estudada por Marcel Bataillon), as sucessivas edições do Enchiridion ou Manual do Cavaleiro cristão. E depois as suas paráfrases dos Evangelhos, que acabaram por ser adoptadas pela igreja Anglicana, tentando Erasmo  apresentar um cristianismo não supersticioso nem dogmático ou ritualista, mas puro, simples, directo, do coração e  baseado no amor a Deus e ao próximo, e vivenciável no dia a dia de cada um.
Consideraram contudo alguns que o interesse principal de Erasmo     seria apenas a religião ou religação interior, e uma religiosidade consciente, assente na liberdade ou livre arbítrio e responsabilidade individual, e que tal era um perigo para a Igreja, pois o seu relativismo e cepticismo em relação a certos aspectos ou dogmas abriam brechas na fé monolítica e total que alguns desejavam, e lembremo-nos de S. Inácio de Loiola (1491-1566), uns anos mais novo que Erasmo e que estudou no mesmo colégio religioso de Montaigu em Paris, desaconselhando os seus discípulos "jesuítas" de lerem Erasmo, pois esfriava a fé.
Todavia foi em defesa do livre arbítrio que Erasmo acedeu ao pedido do Papa de entrar em combate com Lutero e a sua excessiva predestinação e assim, ao obedecer ao pedido do chefe da Igreja, pôs em causa o fanatismo protestante, "derrotando" e enfurecendo Lutero. E talvez fosse também por isso  que Erasmo recusou o barrete cardinalício oferecido pelo papa Paulo III já quase no fim da sua vida, em Agosto de 1535, após tantas perseguições e polémicas com os sectores mais conservadores da Igreja, explicando coloquial e ironicamente que já era um burro demasiado velho para enfiar tal carapuça. 
Sua era mais a liberdade que os que demandam a verdade experimentam e que expressou em duas magníficas declarações  e que eu escolhi até para epigrafe inicial da tradução e edição que gerei em 2008 do Modo de Orar a Deus: "Eu desejo ser cidadão do mundo, comum a todos ou mesmo mais  peregrino."   ---   "Não nego que procuro a paz sempre que possível. Sou a favor de ouvir os lados com ouvidos abertos. Amo a liberdade. Não servirei, nem posso servir, nenhum partido.", afirmações tão exemplares e actuais para um mundo ainda tão partido ou dividido pelos partidos...
Mas concluamos com a sua semente de meditação: "O peito do cristão é o próprio templo de Deus, leva consigo o seu altar, contém em si Deus presente".
                                                                  

domingo, 27 de outubro de 2024

Comemorações do aniversário de Erasmo em 2024. Breve biografia e aproximação ao seu ser e mensagem humanista, transpessoal, espiritual e perene.

                                        

Se considerarmos a vida de Erasmo de Roterdão (28.10.1467-12.6.1536), filho ilegítimo de Gerard, um sacerdote itinerante dos Países Baixos (então pertencentes ao ducado de Borgonha), e de Margarida Brand, filha de um médico, e portanto praticamente  educado sem pai pela mãe  e desde os quatro anos nas escolas religiosas da região, e desde os onze, em Deventer, na época grande centro de tipografia nascente (editaram-se 450 incunábulos), na escola dos Irmãos da Vida Comum, que lançaram  o movimento da Devotio moderna, menos escolástica e formalista e mais afectiva, piedosa e aberta ao estudo da Antiguidade, e onde ensinavam mestres humanistas, tais como Alexandre Hegius e Rudolfo Agricola, observaremos que cedo desabrocharia o seu génio literário,  impulsionando-o para um mundo mais elevado de valores e princípios, e uma visão do mundo bastante mais ampla, culta,  espiritual.
Sensível, inteligente,  muito auto-consciente, teve de entrar pela morte da mãe e do pai, em 1484, para o mosteiro dos Agostinhos em Steyn, onde professa e utiliza bem o remanso conventual para os estudos tanto religiosos como clássicos, escrevendo então duas obras que só publicará mais tarde, o De Contemptu mundi, Do Menosprezo do mundo, onde escreve já com grande universalidade:"os pagãos que só conheciam a luz da Natureza não estavam na escuridão pois eram iluminados pelos raios que brilhavam da luz imortal e nós podemos usá-los como escadas. Porque aquele que tenta escalar as ameias do céu cai no desagrado de Deus, mas o que sobe degrau a degrau não será derrubado". E o Antibarbarorum, onde defende os estudos da antiguidade clássica e a combinação da erudição profana com a religiosa e a elegância de língua e estilo, atrevendo-se mesmo a interrogar magistralmente os mais conservadores: "Dizes-me que não devíamos ler Virgílio porque está no inferno. Achas que muitos cristãos, cujas obras lemos, não estão no inferno? Não nos compete discutir se os pagãos antes de Cristo não foram condenados. Mas, se me autorizarem a raciocinar, ou eles estão salvos, ou então ninguém se salva"...
É ordenado sacerdote pelo arcebispo de Utreque, em 1492, e pouco depois o bispo de Cambrai, Hendrik van Bergen, nomeá-lo-á seu secretário e começará (primeiro, durante dois anos com ele),  a sua vida itinerante e de estudioso (desiludindo-se com o escolasticismo da Universidade de Paris e só em 1506 doutorando-se na Universidade de Turin), tutor e pedagogo, escritor, tradutor, e por fim conselheiro de reis,  imperadores e papas, viajando constantemente,  e indo a Itália, Alemanha e Inglaterra (a 1ª vez, em 1499, a convite de um dos seus alunos, encontrando-se com Thomas More), em geral de cavalo ou burro, os quais por vezes enalteceu em cartas divertidas para os seus amigos correspondentes.

O que busca ele ao princípio: a combinação das letras antigas greco-romanas com o cristianismo. Uma educação mais moderna, menos impositiva e escolástica, mais atenta à natureza, ao sentimento, à descoberta própria, ao conhecimento objectivo, para isso contribuindo com vários manuais escolares e livros educativos, e com a recolha dos Adágios (1ª edição de 1500, com 800, e a última, 1533, com 4.151) que se tornará o grande tesouro de Minerva ou da Sabedoria antiga ao dispor dos estudantes e humanistas, com traduções em toda a Europa, e os Colóquios (1ª edição, sem a sua autorização, em 1518, última em 1533), e que ao longo das sucessivas edições acrescentadas se tornam cada vez mais divertidamente críticos da sociedade e da religião praticada, chegando por isso a entrar no Índice dos Livros proibidos, tal como outras das suas obras causticadas pelos  teólogos mais ortodoxos e reaccionários, tais como os franceses Noël Beda e Petrus Sutor, o dominicano castelhano López Zuñiga, o dominicano inglês Edward Lee e o veneziano Girolamo Aleandro, violento repressor do protestantismo.

Girolamo Aleandro que esteve presente e furibundo ao ter de assistir  ao auto de Gil Vicente, hoje perdido (certamente por isso), o Jubileu dos Amores, representado 1531 em Bruxelas, na casa do embaixador português D. Pedro de Mascarenhas, corajosamente já que Aleandro era legado papal e a peça troçava das indulgências e excomunhões de que Aleandro tanto gostava. Outros tempos, quando Portugal era independente e tinha cavaleiros do Amor escritores como Gil Vicente, Damião de Goes, D. João de Castro, Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Fernão Álvares do Oriente ou mesmo António de Sousa Macedo, citando Erasmo e a Prisca Teologia.

O expurgador inquisitorial deste exemplar da Cosmografia de Münster não resistiu a molestar a efígie do sábio e determinado Erasmo. A sanha costumeira contra a sua lucidez, ou a de outros considerados heréticos, era "autor danado".
Erasmo esforça-se por uma renovação do Cristianismo, pelo regresso às fontes e por uma leitura mais frequente e viva dos Evangelhos, recuperados, cotejados, rectificados, anotados, propondo mesmo que sejam traduzidos em línguas vulgares, o que na altura suscitou grande oposição, nela se destacando o cartusiano Petrus Sutor, ou Pierre Costurier, teólogo sorbónico que publica em 1524, com forte e bela portada, o De Tralatione Bibliae, et novarum reprobatione interpretationum, muito indignado com as inovações e propostas de Erasmo, que tentou em vão por correspondência convencê-lo da utilidade de mais pessoas terem acesso às Escrituras sacralizadas.

Erasmo, por Hans Holbein, o jovem, numa gravura oferecida pelo prof. Pina Martins.
A visão de Erasmo era profunda e sincera: houve e há uma Filosofia de Cristo. Uma boa nova, uma mensagem acessível a todos, uma piedade douta praticável por qualquer um, enquanto amor ao próximo e a Deus, e um conhecimento mais aprofundado do relacionamento entre o divino e o humano, que certamente deve culminar em virtudes e graças, ou mesmo estados de sublimidade e êxtase, tais os que o apóstolo Paulo menciona.
É pela disposição anímica de seguir correctamente o Cristo, «que é caridade, simplicidade, paciência, pureza, ou seja, tudo o que ele ensinou», que o crente em Deus, no Cristo e no corpo místico da Igreja avança na vida e no aperfeiçoamento, para se tornar também um Cristo, que significa um ungido: «todos os que renasceram em Cristo, são Cristos»,  dirá mesmo no Da Concórdia amável na Igreja, escrito para harmonizar os conflitos intra-cristãos e uma das suas últimas obras, de 1534, tal como o Da Preparação para a Morte, a qual virá na noite de 11 para 12 de Julho de 1536, as suas últimas palavras sendo: "Amado Deus", ou se quisermos "Querido Deus", e pronunciadas na sua língua natal, que nunca usava, na linha do renascer ao morrer, ou no dito grego tão glosado entre nós (por Antero de Quental, Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa, e já desenvolvido no blogue)  "Morrer é ser iniciado"... 
Como contrapartida de tal espiritualidade directa houve desde cedo a  desvalorização dos votos ("o hábito não faz o monge"), das cerimónias, dos sacramentos, dos jejuns, das peregrinações e das superstições populares, pois a religião é sobretudo interior, intenção, aspiração, paz, comunhão, expansão, e logo universalidade, comunhão com os vivos e os mortos e sobretudo com a Divindade. 

Observa a constituição tripla do ser humano, corpo, alma e espírito, ou ainda a dualidade da alma terrena e a alma celestial, esta dotada dos sentidos subtis espirituais e várias vezes exprime-a vigorosamente, tal como no Enchiridion, o Manual do cavaleiro Cristão (1ª edição, 1503) que tantos efeitos teve em Portugal e Castela (como nos nossos dias Marcel Bataillon e Pina Martins demonstraram), e onde nos adverte com tanta actualidade: «quando os olhos do coração estão obscurecidos para que não vejas a Luz evidentissima que é a verdade, quando não captas com teus ouvidos interiores a Voz Divina, quando careces completamente do sentido do absoluto, pensas que a tua alma estará viva? (...) Se o teu próximo é mal tratado, porque é que a tua alma não sente nada?» Que actualidade tremenda, face a tanta pessoa aceitando impávidas, indiferentes ou até apoiando a crueldade dum genocídio racial... 
O  caminho cristão é ascendente mas solidário com o próximo, e a passagem do mundo material ao espiritual, pela contemplação, a oração, a meditação, o jejum, a simplicidade, implica sempre a empatia e compaixão, pois o ser humano é uma grande família, a fraternidade é a realidade original e que se clama diariamente na oração do Pai Nosso, sendo o Cristo o amor que conglomera todos os seres num só ou na Unidade.
Salientemos os grandes valores transpessoais para Erasmo: a unidade humana e europeia, o corpo místico da humanidade, o Logos, Sermo ou Palavra de Deus que vive nas escrituras sagradas e que está imanente nos seres, e que pelo diálogo e colóquio lhes permite entenderem-se e evoluírem na compreensão mútua e do Universo.
Deveremos distinguir realidades e valores humanistas espirituais dos transpessoais, ou são basicamente muito semelhantes ?
Na época a palavra transpessoal não existia: a psicologia transpessoal é dos nossos dias e representa uma tentativa de incorporar na ciência da psicologia tanto níveis e experiências outrora presentes sobretudo no corpo mágico, religioso e iniciático como teorizações e comparações de estados modificados de consciência como ainda  observações e resultados da física moderna e das neurociências, deixando para trás o termo espiritual e tentando ir para além da persona, mas contudo não conseguindo grandes impactos nas consciências e sociedades humanas, caindo em teorizações e equivalências excessivas de estados psíquicos não vivenciados (caso de Ken Wilber) e vindo a surgir mesmo, no vazio das religiões, e sobre as novas eras, canalizações, transmissões galácticas e adorações da ciência,  um travestimento do transpessoal e do humanismo, com o denominado transhumanismo (que é mais um infrahumanismo diabólico) da Nova Ordem mundial, e do super-egoísta Fórum Económico Mundial oligárquico. O que poderemos fazer, de acordo com a alma genial de Erasmo e dos seus confabulatores, como foi o nosso Damião de Goes, já na altura entrando em defesa dos Lapões e dos Etíopes vitimas de certas opressões hoje de novo rampantes?
Quando aprofundou o fenómeno religioso, a mensagem de Jesus  e o estado da Cristandade, Erasmo valorizou o poder transformador do estudo, do esforço, do amor, e realçou a importância da congregação ou união de sensibilidades, aspirações e valores afins, e portanto do trabalho em grupo, realçando a magia da oração, por Cristo expressa axiomática e perenemente no dito: "onde dois ou três se reunirem no meu nome ou vibração, eu estarei entre eles". Este estar (com discernimento) em rede de pessoas e grupo afins, para resistir, regenerar e elevar, é então fundamental tarefa dos nossos dias, tal como também a comunhão espiritual com o corpo místico da Igreja e da Humanidade, o que devemos fazer pelas nossas meditações.

 No seu Modo de Orar a Deus (1ª edição, 1524) que eu publiquei nas edições Maitreya, há um bom trabalho de discernimento das modalidades de relação do ser humano com a Divindade, ou a sua concepção de Deus, e como devemos chegar à experiência da Presença divina em nós. Também da sua vida, temos alguns registos de experiências espirituais que observou ou que lhe aconteceram e mencionaremos duas delas. A primeira está  no que nos diz nas biografias de Jean Vitrier, John Colet e Thomas More,  enquanto seres de realização espiritual, e profundamente cultores da religião do coração e do espírito, e exemplificaremos com o guardião franciscano, em Saint-Omer, Jean Vitrier, com quem esteve um ano entre 1501 e 1502: "era um ser cheio de ardor pela piedade, entrava quase em êxtase nos sermões e fazia senti-lo aos ouvintes. O seu sucessor no convento disse dele que toda a sua vida não era senão um sermão sagrado."
A segunda é a valorização da psique e do que nós chamamos algo limitadoramente inconsciente, nomeadamente dos sonhos que por vezes narra, tal o da visita de S. Francisco de Assis que o considerou um amigo da ordem Franciscana, e lhe disse que fazia bem em criticar os frades e que prosseguisse no seu caminho. Erasmo apresenta o sonho com uma grande naturalidade, interpreta-o como uma experiência espiritual normal, evidenciando que os mortos para o corpo físico e a Terra e os vivos, mas em geral mortos para os mundos espirituais, podem comunicar nos sonhos.
Nos nossos dias quantos conseguem ter tais sonhos e senti-los e interpretá-los como vivências das almas, não limitadas pelo corpo e o cérebro físico?
E não será que tal se torna cada vez mais difícil não só pela descrença em relação à comunicação anímica ou telepática mas também pela acumulação de lixo que as pessoas deixam estabelecer-se nas cabeças e almas com tanta informação e desinformação televisiva, internética e audiovisual?
Valoriza então a sobriedade (e hoje não ver televisão ou sobretudo noticiários e comentadores avençados é fundamental), a disciplina, a ordem, a purificação, tão presentes nas tradições e ensinamentos religiosos e iniciáticos para que o ser espiritual possa emergir da personalidade humana aperfeiçoada, mais completa, harmoniosa, individualizada, algo de que Erasmo estava bem consciente, nomeadamente quando afirmava que devia ao seu amor e dedicação aos estudos não se perder na profanidade dos meros prazeres do mundo. E nesse sentido, ele dizia “O ser humano não nasce, faz-se”, o “Faz o que amas, ama o que fazes” e ainda “O que tens de melhor, partilha-o com os outros”.
O erasmismo, enquanto livre indagação e interpretação das escrituras e dos ensinamentos religiosos, enquanto valorização da vida interior e da piedade douta, enquanto combinação do conhecimento profano e do sagrado, enquanto lucidez e bom senso na vida social, e enquanto predominância do espiritual sobre o material, nomeadamente nos aspectos culturais e religiosos, não morreu com Erasmo e continuou em muitos pensadores, religiosos e criadores. 

Erasmo visto e desenhado por Albrecht Dürer.
Em termos artísticos poderemos dizer que Hans Holbein, Albretch Dürer, foram dois pintores que receberam as suas influências já que o pintaram, já que estiveram expostos à irradiação serena do mestre do Humanismo, quanto este posou para eles, e de Dürer sabendo-se que instou para que interviesse mais nos conflitos de então, e quem sabe se a icónica Melancolia deve algo a isto. É interessante referir que Erasmo teria achado que não o tinham captado bem, e isto remeter-nos-ia para a imagem ou imagens que fazemos de nós, como elas são proteus, e como ora resistem ora se alteram com o tempo e o amadurecimento, e como no fundo tal se relaciona com o mito e missão que nos atribuímos, com nosso papel e a nossa imagem, no fundo o arquétipo ou estrutura funcional principal em nós, e que em certos seres está mais próxima da verdade essencial ou íntima deles, da sua vera identidade monádica, em Erasmo muito ampla e profunda na manifestação.
Certamente que uns conservam uma imagem generosa de si mesmos enquanto doadores ou beneméritos, outros de belos Donjuans, outros de ferozes Quixotes ou Torquemadas, mas difícil é vermo-nos como somos na realidade actual e na temporalidade pluridimensional: corporal, seja emocional, mental, anímica e espiritual e inserida na interactividade karmica com todos os seres que afectamos ou nos afectam.
Uma ilustração de Hans Holbein para o Elogio da Loucura: um sorbónico opositor do conhecimento livre e de Erasmo, que teve no  síndico da Universidade de Paris, a Sorbone,  Noël Beda, o expoente máximo.
O auto-conhecimento, a gnose, é fundamental, o ver-nos sem ilusões, com o olho simples e nesta linha o  genial Elogio da Loucura é um apelo a que vejamos por quantos lados ou facetas estamos desequilibrados, manipulados, egoístas, violentos. Ver-nos lúcida e desmitificadamente, e sabendo desmistificar os outros, as instituições, as doutrinas, os dogmas, as modas, as narrativas oficiais é fundamental
Erasmo neste aspecto foi exigente e ousado: criticou reis, teólogos, frades,  não-pacifistas,  gananciosos,  aduladores,  hipócritas, os Descobrimentos de conquistas e negócios, os pseudo-mestres e santos, a exploração da credulidade pública, a arrogância, a brutalidade.
Para haver a metanóia propunha um coração sincero virado para Deus e a sua invocação misericordiosa sincera ou unânime na alma, pelo que criticou o excesso de imposições sobre o que devíamos acreditar, valorizando antes o coração puro, simples, que arde por si mesmo em aspiração pelo bem e a verdade.
Criticou a oração a Jesus, a equiparação de Jesus e do Espírito Santo a Deus, pois a sua visão da Trindade não era a mesma da teologia da época. As interpolações que se fizeram por causa do Espírito Santo, nomeadamente o versículo em Mateus, 28, 16-20: "Ide (...) e baptizai em nome do Pai, do Filho e do Espírito", foram por ele desmontadas, já que não existiam nas versões manuscritas mais antigas.
Propôs pois a relação directa com a Divindade, denominada por Jesus Deus Pai, e um estado de ânimo puro e logo de oração ininterrupta, que poderemos explicar como de plena atenção e boa vontade. E a desidentificação ao corpo físico como sendo a totalidade do nosso ser, e antes a assunção de um corpo psico-espiritual, com os sentidos subtis da visão e da audição.
Valorizou com o tempo e talvez face ao protestantismo a comunhão com os santos, com os anjos, o corpo místico colectivo da humanidade, a antiga alma mundo, e  a existência de uma tradição perene, de uma sodalidade de conhecedores e espirituais ao longo dos séculos, que Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, no humanismo italiano, tinham bastante desenvolvido. 
Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano, num fresco pintado em 1488 por Cosimo Roselli e ainda hoje contemplável na igreja de Sant'Ambrogio, Florença.
 Valorizou os arcanos dos textos sagrados, nos aspectos filológicos, históricos, e sobretudo espirituais ou anagógicos deles, ou seja, os que remetem para o mundo do além
depois da morte e o celestial, , ou mesmo neste mundo, para o corpo subtil e os seus sentidos, órgãos e capacidades espirituais. E aqui e acolá o êxtase, a expansão da consciência, a união com a Divindade, a sensação do infinito, a comunhão com o Amor primordial, a saída do corpo, a inspiração da alma mundo, surgem.
Dos erasmianos, ou dos leitores, que o prosseguiram encontramos alguns místicos que estiveram em Portugal, tais como Francisco Monzon e Frei Luís de Granada, que o leram e citaram  e que ainda puderam, por breve tempo, valorizar a meditação, a contemplação, a ligação directa, que cedo, com a Contra-Reforma, seriam consideradas perigosas ao poderem ser conducentes às heresias do quietismo, dos alumbrados, do iluminismo.
Deste
modo a tarefa das pessoas tomarem por si mesmas o conhecerem-se, de se ligarem a Deus, de salvarem-se, acabou outra vez por ser diminuída e enfraquecida pelo ênfase na condição de pecadores, e da necessidade da ascese, dos sacrifícios, dos jejuns, das cerimónias, dos sacramentos e penitências, que frequentemente  afastaram os cristãos da possibilidade de respirarem o espírito, antes se curvando demasiado sob a carga e a cruz que lhes foi posta às costas, ainda que sem dúvida Erasmo valorizasse o esforço, o sacrifício, o sofrer dores, purificadoras e estimuladoras, tal como dizia: Ego aliam artem notoriam non novi nisi curam, amorem, et assiduitatem, " Eu não conheço outra arte de conhecimento que o curar, amar  e perseverar.” 

O seu Enchiridion milites christiani, o Manual do cavaleiro cristão foi na época uma revolução. Era como se de novo Jesus falasse na Terra. Não era que não tivesse havido já a Imitação de Cristo, proveniente dos Irmãos da Vida Comum, onde Erasmo estudara, ou as obras de S. Agostinho e de outros a apelarem à conversão e à ligação a Deus. Mas foi a obra de Erasmo, com a nova versão traduzida do grego para latim em 1515 (e bem anotada) do Novo Testamento, e sobretudo com as Paráfrases aos Evangelhos e Epístolas, que abriu nas pessoas os corações para a humanidade e sabedoria de Jesus e os olhos para a riqueza espiritual da leitura dos Evangelhos, algo que os protestantes assumiram posteriormente com força, ainda que se tenham deixado cristalizar em dogmatismos redutores da afectividade humana e da intermediarização dos santos e anjos e ainda do valor das leituras ou hermenêuticas espirituais, reduzidas portanto às literais e a uma fé quase cega, algo que Erasmo sempre considerou insuficiente pois havia uma mensagem oculta que era preciso encontrar, com o esforço do livre arbítrio bem utilizado.
Há ainda erasmismo nos dias de hoje? 
- Sim, certamente: há os que escrevem sobre Erasmo e traduzem-no, mesmo que se mantenham nas balizas das doutrinas e dogmas da Igreja e não na livre investigação erasmiana, e na não subordinação a capelinhas, dogmas e imposições exteriores. Outros estudam as suas obras com adesão a Erasmo, ainda que certamente o seu Erasmo até possa não ser o dele. Outros que o leem regularmente estimam-no como um grande ser, um amigo para eternidade, um mestre que cruzou os céus ocidentais numa época de charneira, tentando manter a unidade e universalidade de uma Europa culta, unido pelo latim, o culto das belas letras e o cristianismo ético e são.
Erasmo continua a ser hoje um modelo de independência, de livre busca da verdade, da resolução dos conflitos pelo diálogo, pela paz, dentro do reconhecimento da unidade das religiões e povos, na época pondo em causa a guerra contra os Turcos ou as conversões que se faziam nos Descobrimentos quando os próprios religiosos é que se deviam converter antes em si mesmo e a Si mesmo.
Com o seu nome dado ao programa europeu de intercâmbio estudantil, com as suas obras a serem ainda reeditadas, com um espólio fabuloso de mais de 3.000 cartas, temos de reconhecer que ainda há muito por fazer para que as suas compreensões e mensagens possam ser mais assimiladas pela humanidade dos nossos dias e este texto para o aniversário de Erasmo em 2024 insere-se nessa continuidade de erasmianos e cumpre assim, de seu amigo John Colet, deão do colégio de S. Paulo em Londres, e para o qual Erasmo escreveu um belo sermão do Menino Jesus, que nos nossos dias Eugenio Assensio e José V. de Pina Martins estudaram e muito apreciavam, a profecia de que "o nome de Erasmo nunca perecerá". E por nome, entendemos tanto a memória do seu ser, vida e obra, como a essência que se filtra ou destila através da leitura e reflexão sua e dos textos sagrados que traduziu ou comentou, e ainda a inspiração, comunicação e comunhão que possamos ter com ele enquanto espírito imortal, quem sabe se tão irónico e crítico (para nós) quão lúcido e clarividente.

Sancte Erasme, ora pro nobis, ora cum nobis. Aum, Amen. Deo gratias!

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Dizer a verdade é um acto de heroicidade: as declarações do Presidente do Kazakastan, sobre a invencibilidade da Rússia e a necessidade de se procurar rapidamente o fim do conflito.

                                   

 Foi recentemente, a 17 de outubro, que o presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev (17-V-1953), na sessão plenária do famoso Fórum Astana Think Tank, afirmou que a força militar da Rússia esta fundamentada na sua história e reside no seu povo, o qual apoia praticamente a 100% o que o seu presidente Vladimir Putin (7-X-1952) está a realizar.

 Declarou ainda este sábio e afável presidente que "durante minhas conversas com o Chanceler Alemão Olaf Scholz (14-VI-1958) disse-lhe que a Rússia é militarmente invencível. Isto é confirmado pelas suas capacidades militares, pelo apoio da população às políticas do presidente russo Vladimir Putin e pela própria história. Portanto, consideramos necessário procurarem-se opções para uma solução pacífica do conflito e apoiamos os planos pragmáticos de todos os países, incluindo a China e o Brasil,
A paz é a única opção para não se destruírem mutuamente. Não há outro modo. A alternativa sería uma guerra de extermínio mútuo. Talvez algumas potências mundiais queiram ver isso acontecer, mas tal caminho levaria a um abismo, o que tem de se evitar tanto mais  que esforçar-nos pela paz por meio de negociações construtivas é um sinal de prudência estratégica, não um sinal de fraqueza."

Não pensam assim os mais extremistas ucranianos nem  maioria dos dirigentes da União Europeia e dos Estados Unidos que estão comprometidos e corrompidos pelo Fórum Económico Mundial e a sua agenda anti-russa. É pena, é mesmo trágico, pois já morreram inutilmente mais de um milhão de ucranianos  e a Rússia, embora lentamente e sofrendo baixas, vai avançando e libertando Donbass, que poderia ter ficado na Federação Ucraniana, se tivesse sido cumprido o tratado de Minsk, assinado em Setembro de 2014, mas  assim vai ficar na Federação Russa.  Busque-se a Paz...