segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Nos 557 anos de Erasmo, um estudioso e amoroso da Divindade e da verdade religiosa ou religante a Ela. Alguns aspectos perenes da sua demanda.

                                                              

Ao longo dos anos tenho cultivado uma amizade com Erasmo que embora tenha frutificado num livro em 2008, muito mais gerou de pensamentos, meditações e escritos (sobretudo na época), além de uma vontade de dialogar com ele e o compartilhar, para maior lucidez e sabedoria das almas que hoje em geral pouco ou nada o conhecem, já que sem a memória do passado luminoso o presente é mais manipulável e o futuro menos promissor, amplo e conducente a uma vida post-mortem luminosa.

Perfazendo-se hoje 28 de Outubro o seu aniversário, e de 1467 (que pode ser 1466) a 2024 já são 557 anos, resolvi revisitá-lo, seja nos seus textos, seja no que já escrevi sobre ele, melhorando-o e partilhando-o...

Como sabemos Desidério Erasmo foi filho de um clérigo, e foi também ele a partir dos 17 anos um religioso, embora cedo tenha recebido um estatuto especial devido aos seus excelentes dotes de sensibilidade e inteligência e à pouca vocação para estar limitado pela rotina do mosteiro dos Agostinhos em Steyn, onde tivera de entrar pela morte dos pais, sendo  ordenado sacerdote em 1492 e entrando para secretário do bispo Hendrik van Bergen, o que lhe permitiu viajar pela Europa durante  dois anos e encontrar-se e conviver com  humanistas e religiosos, dedicados às letras, à religião, à sabedoria perene.

Estudando em Paris, ao mesmo tempo que já ensinava jovens, mas desiludindo-se com a metodologia escolástica meramente formal, tortuosa e insípida, virá após diversas viagens e trabalhos, a doutorar-se em Turin, apenas em 1506, mas independentemente disso as suas edições anotadas, as traduções e obras sucessivas granjeiam-lhe uma grande reputação seja pela inteligência compreensiva do latim e da civilidade e literatura clássica, traduzindo Terêncio, Eurípedes, Luciano, Plauto, Juvenal,  e a capacidade de a ensinar, como pela ironia com que criticava os defeitos da época e apontava para as qualidades valiosas,  e ainda pela coragem de enfrentar e dialogar com os meios e agentes  mais conservadores. E sobretudo pelo seu grande amor ao conhecimento e à mensagem de Jesus, a philosophia Christi, que palpita nos Evangelhos e  corre nos escritos dos primeiros padres da Igreja que ele mais tarde virá a traduzir do grego em latim e a comentar, tornando assim acessíveis os grandes mestres do cristianismo inicial, tais como Clemente de Alexandria, Orígenes, S. João Crisóstemo, S. Hilário e outros.

Escrevendo tantos livros sobre a educação, a ética, a religião, tais como os dedicados à morte, ao casamento, à aprendizagem de línguas, à conversa  e à elegância do estilo, à guerra e à paz, à oração, Erasmo tornou-se um farol de grande luz no Renascimento. As obras que tiveram mais sucesso foram sem dúvida o Manual do Cavaleiro Cristão, o Elogio da Loucura, os Colóquios e os Adágios, e com eles alcançou milhares de pessoas e criou uma reputação imensa, que originou tanto críticas dos meios mais ortodoxos e reacionários como a criação de um círculo de amigos, correspondentes e confabuladores sólidos, onde se destacaram Thomas More, John Colet, Beatus Rhenanus, os Froben, e até o nosso Damião de Goes e logo a manutenção de uma correspondência com dezenas de estudiosos, humanistas e sábios, que sobreviveu em grande parte, com mais de 3.000 cartas, mostrando por dentro da sodalidade ou irmandade humanista o pulsar cultural, sócio-político e religioso europeu durante cerca de quarenta anos importantíssimos, antes e durante a Reforma fracturante da unidade cristã.

Ao  publicar em 1515, e com a aprovação do papa Leão X, um culto Medici, uma nova versão do Novo Testamento e que teve a ousadia de chamar Novo Instrumento, na qual, baseando-se em vários manuscritos até então não conhecidos, e mais científico na análise filológica, corrigiu a versão corrente, a Vulgata, em mais de 600 casos, Erasmo suscitou fortes clamores contrários, nomeadamente de dois ou três teólogos mais fanaticamente conservadores, obrigando-o a grandes polémicas e sendo posto no Índice dos autores de livros proibidos, nomeadamente pelas Universidades de Paris, a Sorbonne, e de Lovaina. Na segunda edição, em 1519, Erasmo, com mais modéstia, retirou o título de Novo Instrumento e passou a ser apenas Novo Testamento. E se as modificações e anotações eram de início mais de ordem filológica, com as polémicas  as sucessivas edições (1519, na qual usou vários manuscritos gregos e latinos não utilizados até então, 1522, 1527, 1535) passaram nas anotações a incluir  aspectos teológicos, morais e espirituais, e nelas Erasmo, reformista da Igreja e clarificador sincero e ardente da mensagem e espírito de Jesus, brilha. 
Exemplos instrutivos das anotações aos Evangelhos: Mateus, 3. "fazer penitência", para Erasmo voltar aos seus sentidos, a si mesmo, ou seja, fazer a metanóia, a transformação em relação ao passado. Actos, 19, acerca da "confissão", Erasmo considerava-a pública, não instituída por Cristo e não obrigatória, desejando que todos vivêssemos sem necessidade dela. Mateus 5, o "jurar, ou não". Para Erasmo Jesus não proibira o jurar, e apenas dissera que o cristão devia ter um carácter que lhe permitiria dizer  apenas "sim ou não" e não ter que recorrer ao juramento como qualquer pessoa comum fazia correntemente. Lucas, 3, "fazer guerra ou não". Erasmo propunha que um religioso não devia fazer guerra e que um cristão só a deveria fazer por "grande necessidade e honesta  utilidade", e que Cristo não a tinha recomendado, e como S. Ambrósio dissera "as armas da Igreja são a fé e as orações, pois são elas que vencem os inimigos." Lucas 1, "A saudação do Anjo" (ou arcanjo Gabriel) a Maria. Erasmo traduziu o grego kecharismene, por gratiosa em vez do gratia plena da versão corrente ou Vulgata. Ou seja, o Anjo chamara-a "graciosa" e não "cheia de graça", o que para os mais ortodoxos parecia um diminutivo da condição de imaculada de Maria. Também o considerar a saudação do anjo como "amatória" foi considerada ofensiva pelos seus contraditores, obrigando-o na 2ª edição a diminuir o seu afecto para "gentil". Marcos 14, Mateus, 2 e Eucaristia. 1 Coríntios, 11. Eucaristia. Na consagração, que Erasmo considerava difícil saberem-se as palavras usadas, pelo que seria melhor que houvesse menos dogmatismo da parte dos teólogo sobre elas, preferindo o frangere, "quebrar" ou "dividir" o meu corpo, em vez de tradere "dar", e pensando que não teria sido o verbo no futuro mas no presente utilizado. Após vários ataques nomeadamente, os da Junta de Vallodolid em 1527, submeteu-se ou amoldou-se mais à autoridade eclesiástica aceitando o valor dos decretos da Igreja já que a razão humana não podia saber ao certo o que fora dito no momento da última Ceia. Em relação à transubstanciação, acusado por Noël Beda e Leo Jud de a estar a negar, considerando o pão e o vinho como meramente simbólicos, o que era grave, Erasmo respondeu que apenas questionara se Cristo estaria presente sempre que se partisse o pão, e na edição de 1527, já depois da Junta de Valladolid, onde participaram teólogos portugueses para decidir da ortodoxia ou não de Erasmo, ele acabou por afirmar que o pão "era o seu verdadeiro corpo e não o símbolo do seu corpo, porque o corpo era transformado de uma maneira misteriosa". 
Erasmo não foi um grande frequentador da Eucaristia, talvez pela sua itinerância e porque a sua religação com o mestre Jesus e a Divindade estava activa a tempo inteiro, no que ele chamava a oração incessante e que tinha como base íntima o que afirmou no Modo de Orar a Deus: "O peito do cristão é o próprio templo de Deus, leva consigo o seu altar, contém Deus presente". Ou ainda,  e tão valiosamente: "Tanto mais é entrado o íntimo sagrado, e Deus feito próximo, quanto mais te recolheres em ti próprio."

Muito importante na dimensão do mundo cristão, alem das edições anotadas do Novo Testamento, foram, pelo seu sucesso em toda a Europa e em especial em Espanha, onde fora rapidamente traduzida (e muito bem estudada por Marcel Bataillon), as sucessivas edições do Enchiridion ou Manual do Cavaleiro cristão. E depois as suas paráfrases dos Evangelhos, que acabaram por ser adoptadas pela igreja Anglicana, tentando Erasmo  apresentar um cristianismo não supersticioso nem dogmático ou ritualista, mas puro, simples, directo, do coração e  baseado no amor a Deus e ao próximo, e vivenciável no dia a dia de cada um.
Consideraram contudo alguns que o interesse principal de Erasmo     seria apenas a religião ou religação interior, e uma religiosidade consciente, assente na liberdade ou livre arbítrio e responsabilidade individual, e que tal era um perigo para a Igreja, pois o seu relativismo e cepticismo em relação a certos aspectos ou dogmas abriam brechas na fé monolítica e total que alguns desejavam, e lembremo-nos de S. Inácio de Loiola (1491-1566), uns anos mais novo que Erasmo e que estudou no mesmo colégio religioso de Montaigu em Paris, desaconselhando os seus discípulos "jesuítas" de lerem Erasmo, pois esfriava a fé.
Todavia foi em defesa do livre arbítrio que Erasmo acedeu ao pedido do Papa de entrar em combate com Lutero e a sua excessiva predestinação e assim, ao obedecer ao pedido do chefe da Igreja, pôs em causa o fanatismo protestante, "derrotando" e enfurecendo Lutero. E talvez fosse também por isso  que Erasmo recusou o barrete cardinalício oferecido pelo papa Paulo III já quase no fim da sua vida, em Agosto de 1535, após tantas perseguições e polémicas com os sectores mais conservadores da Igreja, explicando coloquial e ironicamente que já era um burro demasiado velho para enfiar tal carapuça. 
Sua era mais a liberdade que os que demandam a verdade experimentam e que expressou em duas magníficas declarações  e que eu escolhi até para epigrafe inicial da tradução e edição que gerei em 2008 do Modo de Orar a Deus: "Eu desejo ser cidadão do mundo, comum a todos ou mesmo mais  peregrino."   ---   "Não nego que procuro a paz sempre que possível. Sou a favor de ouvir os lados com ouvidos abertos. Amo a liberdade. Não servirei, nem posso servir, nenhum partido.", afirmações tão exemplares e actuais para um mundo ainda tão partido ou dividido pelos partidos...
Mas concluamos com a sua semente de meditação: "O peito do cristão é o próprio templo de Deus, leva consigo o seu altar, contém em si Deus presente".
                                                                  

2 comentários:

Anónimo disse...

As problemáticas tal como o Pedro refere são tão actuais, a Humanidade é muita lenta no entendimento do Homem na Alma, Corpo e Espírito. A maioria de nós tem tantas mas tantas camadas para desbravar que é impressionante. Muitas graças por nos abrir caminhos de ensinamentos, Pedro.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas. Sim, uma pena a educação, seja de cidadania, seja de psicologia e filosofia, seja religiosa, não estar a conseguir clarificar melhor a realidade do ser humano, olvidando tantas grandes almas que ao longo dos séculos testemunharam os níveis mais subtis mas tão importantes do ser humano. Erasmo foi um desses elos bem luminosos. Boas realizações!