A afirmação de Erasmo ser um mestre espiritual de Portugal, da Europa e da Humanidade assenta em várias razões, das quais enumeramos algumas:
Entendeu que a paz e a concórdia eram a base fundacional da humanidade e da cristandade europeia e procurou educar as pessoas para se aperfeiçoarem e estarem em paz.
Foi um defensor e propugnador da não-violência e da tolerância, bem com do livre arbítrio, dos estudos e publicações livres, da procura da verdade, e da sabedoria e vivência ecuménica, de modos fortes e pioneiros (que levaram algumas das suas obras a serem censuradas ou proibidas), pondo por exemplo em causa tanto a conversão dos infiéis quando os missionários ainda não se tinham verdadeiramente convertido, para além de que os turcos podiam ser mais religiosos que os cristãos, como ainda os monopólios que o rei de Portugal tentava introduzir no comércio das especiarias, no que prefigurava de certo modo as actuais sanções desmesuradas da oligarquia ocidental sobre as economias emergentes ou mais socialistas. Ou o monopólio das edições, metodologias e hermenêuticas com que algumas universidades e teólogos se arrogavam.
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Um sofista sorbónico, por Hans Holbein, para o Elogio da Loucura.
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Realçou o trabalho a realizar-se sobre os instintos e desejos, hábitos, preconceitos e medos, e exemplificou-o na sua vida, realçando a pureza, a sinceridade, a sobriedade.
Foi bastante crítico (bem ironicamente no Elogio da Loucura), do ego, do egoísmo, das superstições, da vaidade, sede do poder, dogmatismo e mostrou tal desprendimento egóico e das presunções e riquezas na sua vida de studium, isto é, estudo e esforço, que dizia lhe ter evitado vícios ou fraquezas,
Valorizou muito a piedade, a pietas docta, o amor, a compaixão, a fraternidade, nas suas obras e nas suas convivências com amigos e pessoas, para os quais foi tanto um companheiro como um mestre, tal como vivenciou durante alguns meses que viveu com ele o principal representante de Portugal dos Descobrimentos na Europa, o seu confabulator Damião de Goes, corajoso defensor dos lapões e etíopes numa precoce multipolaridade de costumes, povos e religiões.
Valorizou bastante a palavra, o Sermo, o Logos, a sinceridade, o efeito das palavras e sons, e o seu uso nas conversas, discursos e orações e várias das suas obras iniciais foram meios de ensinar a saber escolher e usar as palavras e exemplos, com elegância e propriedade, para além do seu ganha pão inicial de preceptor e humanista.Foi um mestre do controle dos pensamentos e imaginação, da meditação e da oração, deixando-nos várias orações e meditações, várias delas incluídas no seu Modo de Orar a Deus que publiquei em 2009. |
Capa de Maria de Lurdes Oliveira, a Lucha, que ilustrou ainda a obra com um desenho.
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Valorizou o canto, o êxtase, o rapto como estados intensificados de energia-consciência e de unificação e de aproximação à união com Deus, tal como quando escreve no Modo de Orar a Deus: «Há um hino quando o ânimo, tendo considerado (considerata) a sublimidade de Deus, é arrebatado (rapitur) no louvor daquele, a quem somente é devida toda a glória». Ou ainda: «quem com o olhar do espírito, contempla do interior a glória da filha do Rei, diz com o profeta: "a minha alma aspira aos átrios do senhor, ela desfalece aí". Ekleipen (desfalece) é próprio dos que desejam de um modo supra-humano intensíssimo".
Esteve sempre consciente do corpo psico-espirital e da necessidade de trabalharmos com ele, como por exemplo este dito bem realça: «a luz da fé agudiza o olhar espiritual e permite-lhe distinguir mais coisas que não podem os olhos do corpo.» Da concórdia amável da Igreja, 1536
Realçava a importância fundamental da religação da alma humana à Divindade e por muitíssimos modos a expressou e ensinou,ora usando palavras das Escrituras, da Patrística ou suas, e podemos resumi-la, entre outros modos, assim: -"Há um corpo espiritual, há um coração puro que Deus cria em nós e há um espírito direito que ele recria de novo nas nossas entranhas."
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A empresa tipográfica de Fröben, de Basileia, grande amigo de Erasmo. |
Valorizava o trabalho em grupo, seja social, seja literário e editorial (e assim trabalhou nas tipografias de Aldo Manutio e de Froben), seja religioso, como um acto harmonizador e gerador de boas emanações no Universo, tal como quando escreve: "cada vez que as pessoas se reúnem no respeito das leis e para um objectivo honesto, o seu gesto comporta uma certa dignidade e é mesmo criador de alegria, logo com que respeito não se deve envolver uma assembleia de pessoas piedosas agrupada para prestar culto ao Deus vivo, tanto mais que se liberta uma tal força do coro formado por aqueles a quem confiança em Deus une intimamente, que mesmo os profanos sentem admiração."Se na época foi por muitos reconhecido como mestre e com o decorrer dos anos as suas obras não deixaram de ser lidas com proveito, contudo poderemos nós pensar que Erasmo quando morreu em 1536, algo em bolandas entre cidades ora protestantes ora católicas por causa das lutas da Reforma, estaria frustrado quanto a um dos seus objectivos, o da unidade da Cristandade? Provavelmente não, pois o objectivo ou dharma de cada um de nós é fazer o que pode, transmitir as energias que tem para o universo de acordo com o que recebeu, assimilou e gera, e os resultados não são tanto da sua conta, não estão em seu poder, devendo estar equânime perante as críticas ou ataques que recebe, tal como Erasmo bem demonstrou enfrentando tantos adversários das suas ideias em polémicas fortes, sem desanimar e perseverando fiel do Amor e da Verdade, tal como também ensina a sabedoria indiana na Bhagavad Gita, 2, 47, tens o dever da acção justa mas não o direito aos frutos. Os seus objectivos principais foram aprender bem o latim e o grego, contribuir para a união da cultura clássica com a cristã e inserindo-a na contemporaneidade para a melhoria da Humanidade e assim procurou manuscritos, mergulhou neles e recuperou o conhecimento das belas letras antigas e da sua elegância e sabedoria, e transmitiu-a aos seus alunos e depois leitores.
Atraído pela fonte viva religiosa do Cristianismo que é o Novo Testamento lançou-se na recuperação, clarificação, actualização da mensagem de Jesus e gerou dezenas de obras, seja originais seja de tradução e anotação, seja de comentários e paráfrases. O que fez também com grande qualidade com os primeiros padres da igreja traduzindo, anotando, comentando S. Jerónimo, S. Agostinho, S. Hilário, S. Crisóstomo, Orígenes e outros.
Para além do seu trabalho literário e religioso houve as várias obras de pedagogia, que influenciaram gerações e gerações, e na quais podemos de certo modo incluir as mortais obras primas dos Colóquios e do Elogio da Loucura, com o lúcido desmascarar do que era exagerado, limitado, negativo, contrapondo as vias correctas ou mais harmoniosas e felizes.
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Sancte Erasme, ora pro nobis, ora cum nobis!
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Em todos estes labores conseguiu dar à luz milhares de páginas, impressas em biliões, alcançando milhões leitores não só na época como ao longo dos séculos, que se alegraram com efeitos luminosos, que lhe agradarão até hoje no além, nos mundo espirituais, onde certamente é um guia, um mestre, com quem podemos sintonizar. Entre os portugueses do seu tempo que tinham coração e o olho espiritual suficientemente abertos para reconhecerem o seu valor deveremos mencionar o seu grande amigo
Damião de Góis, escrevendo no prefácio à tradução de Catão, de Cícero): «aquele prudentíssimo e gravíssimo Erasmo Roterodamo,
neste nosso áureo e doutíssimo século, príncipe de toda a doutrina e
eloquência», André de
Resende, em 1531 no Erasmi encomium, impresso
por Froben: «homem de juízo acérrimo, considerado
entre os escritores, o Aristarco do nosso tempo», sendo de se realçar
que Aristarco fora um gramático e retórico de Alexandria, que
restabelecera os textos de Homero, e inspirara a exegética
espiritualizante de Orígenes, mestre de Erasmo, que por sua vez
restabelecera os textos de Jesus. E quando Erasmo desencarna, André de Resende,
a Damião de Góis, exclama: «extinguiu-se para o mundo aquele que era o
ornamento que os séculos nuca chorarão suficiente». E apela: «aqueles
que profanaram a sua reputação acusando-o de heresia, aprendam agora a
moderar as suas sevícias e deixem ao menos intactas as suas obras que a
posterioridade grata poderá venerar e honrar». Também Diogo Pires expressa em
1545 quanto o amava, em belos poemas e num epitáfio: «Aqui jaz um homem
divino, Erasmo, do amor exemplo. Quanto à sua alma, essa tem morada no
Olimpo, entre os bem-aventurados», isto é, os santos, mestres, sábios e guias da Humanidade.
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Erasmo num Graal e Olimpo português.
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Se é verdade que com a sua douta piedade e irenismo (pacifismo) quis que houvesse uma reforma moderada da Igreja, e a conseguiu interiormente em si e em muita gente amiga - e foi um dos centros de força de tolerância e concórdia durante a época da Reforma, do Protestantismo e da Contra-reforma papal -, se a Igreja Católica veio a ficar cindida, a culpa não foi sua, tal como alguns disseram ("Erasmo pôs os ovos, Lutero chocou-os"), mas sim porque isso tinha de acontecer, seja por ganâncias e nacionalismos, seja por caracterologias e equilíbrios e desequilíbrios de forças. E ressalve-se que a sua batalha pela unidade e concórdia numa Igreja purificada, piedosa e douta não morreu com ele, pois entre protestantes e católicos nos anos a seguir ainda houve encontros (Leipzig, Worms, Ratisbonna) promovidos por Carlos V e as alas moderadas adeptas das ideias de Erasmo, para se chegar a acordos que evitassem a divisão no cristianismo, consumada contudo, com perdas importantes quanto aos aspectos devocionais com santos e santos, anjos e arcanjos e suas imagens, ainda que amenizada nos nossos dias, ressalvando-se terem nas últimas décadas surgido muitas seitas evangélicas e dos últimos dias altamente manipuladoras da mensagem de Jesus ou dos Evangelhos, exploradoras dos fiéis, e fanáticas ou mesmo diabólicas. Quanta falta faz a esses pastores os estudos bíblicos, comparativos e erasmianos, para além da docta pietas?
Ao deixar-nos 3.000 cartas, algumas cotejáveis com as que lhe enviaram e que reunidas todas já no séc. XX por Allan em 12 volumes, que são uma fonte monumental e extraordinária de informações interactivas e dialogantes históricas e psicológicas, e plenas de ensinamentos éticos, religiosos e espirituais, mais ainda se comprova o valor de Erasmo como mestre perene da Humanidade.
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Sabermos também nós bater à porta do reino dos céus interior, pedir e receber.
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Tal como o seu amigo e sábio platónico John Colet, deão da escola da catedral de S. Paulo em Londres, onde a tão bela imagem de Jesus a bater à porta, do pre-rafaelita Holmam Hunt, se encontra, profetizou o Nomen Erasmi nunquam peribit, "O nome [e espírito] de Erasmo nunca perecerá…", assim ainda hoje Desidério Erasmo toca, ilumina e inflama animicamente os que o leem, estudam, editam e meditam, pelo que sempre renascerão testemunhos e frutos dos seus estudos e criatividades, amizades e ligações, tal como nós laboramos neste anel de graças em que lhe retornamos o amor sábio que ele tanto manifestou, 557 anos depois de ele ter vindo à Terra sulcá-la tão estudiosa quão fecundamente com o seu espírito divino, de acordo com o que escreveu no seu tratado Da Educação das Crianças, o De Pueris: “Um homem não nasce homem, torna-se”.
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Estudos das mãos de Erasmo, por Hans Holbein. |
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