sexta-feira, 9 de março de 2018

Viajar de comboio do Porto a Lisboa na eternidade. Imagens belas da paisagem e reflexos psico-espirituais.

  Deixando a urbe portuense e a Dalila Pereira da Costa, comemorada no congresso do centenário do seu nascimento, e mais uma mão de pessoas amigas, sentado na varanda-janela do comboio intercidades Porto-Lisboa, lendo, escrevendo e contemplando, eis  imagens que permancerão de uma viagem já deixada para trás na marcha imparável do tempo, mas aqui, por belos fragmentos fotográficos da paisagem e páginas da alma na sensibilidade e palavra que se transmitem, arrancada a tal voragem, e logo preservada e partilhada. Avancemos...
Fábricas outrora  bem dinâmicas, agora ruínas cheias de memórias. Mas quem as sabe pesquisar e cultivar, ou mesmo as reutilizar?
 Porque mais exposta à chuva e intempéries os telhados. mesmo sem serem de vidro, abatem, e as cabeças , mesmo não sendo ocas, podem ceder. Vela para que a tua luz interior a mantenha coesa e firme. E que a abras às melhores energias psíquicas, emotivas e espirituais
Gate, gate, paragate, parasamgate, bodhi svaha, rezavam os budistas antigos, apelando a deixares para trás apegos, vivendo plenamente desperto no presente e, bordejando a margem da eternidade, libertares-te...
Quem saberá amar as casas na eternidade em que elas vivem, quem as consegue contemplar no olho espiritual, ou mesmo recuperar delas seus segredos, ou em sonhos as conhecer e habitar?
Quando o céu e a terra se unem pela água e o ar, a nuvens e o sol, e se tornam um lago em que contemplamos as ondas do pensamento e nos podemos abismar na riqueza e profundidade do coração do Ser.
Que espíritos da natureza e seres humanos  geraram este quadro que atravessa os vidros e se plasma nas nossas almas como obra prima, como transmissora de energias de liberdade e comunhão?
Circunscreveste as tuas energias psíquicas num rectângulo talhado com a razão dourada, e assim como o lago atrairás o raio do Amor sobre ti, e as tuas águas serão harmonizadoras, plenificadoras.
Leves e diáfanas folhas e ramos, cantam ao vento as mudanças das estações e a subtileza do Amor substancial...
Paisagens que nos levam e elevam ao infinito, ao Divino...
Gemeste, choraste, sofreste mas se aspirares e as tuas águas acalmares o Espírito te iluminará..
Nos bosques e florestas que acompanham os cursos de água absorverás o melhor "prana" e sentirás os espíritos da natureza e o Amor divino
Construir ou atravessar a ponte entre o mundo sensorial físico e o subtil é uma das tarefas dos pontífices e dos peregrinos, das almas sensíveis e dialogantes, pacificantes.
A consciência que se expande pelos campos e nuvens a dentro, chegando ao horizonte, às nuvens e ao céu azul e infinito
Sentir a união da terra e do céu é natural na Natureza
Cultivar a comunhão com as nuvens, com o espaço infinito abre-nos ao Amor divino
Também dentro de ti, através do teu olho espiritual, poderás contemplar na distância, maravilhado
Sinta e escreva, do seu ser para ser...
O teu temenos,  o teu templo, o espaço tempo que sacralizas, vai-te preparando para a Eternidade e vai-se tornando um local irradiante e harmonizante na terra. Cultiva-o persistentemente organicamente, amorosamente.

(1) Diários e suas meditações, visões e ensinamentos. Do espírito e da aspiração mística.

Trancrições de compreensões, vivências, intuições e ensinamentos registados em diários ao longo dos anos...

Os santos e santas bem  irradiantes do espírito neles, ou da suas qualidades, mais ou menos conscientes de tal, estão bem representados com uma auréola sobre a cabeça, sinalizando assim, para quem sabe,  que a estrela do espírito estava neles bem activa, quase que visível nas suas emanações subtis mas sensíveis.
Seres mais identificados ao Espírito....
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Meditação matinal, com aspiração mística a Deus, tendo visto formar-se no olho espiritual uma pomba branca a esvoaçar para cima. Houve utilização de quando em quando da frase semente: "Eu sou o espírito livre de desejos".  
Tive uma consciencialização que o Espírito Santo é essencialmente o espírito individual.
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Assim como um móvel manchado adquire uma cor pura  se lhe dermos com cera, assim a alma lava-se e brilha mais com a aspiração e a meditação em Deus.
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Vou a um cemitério. A oração que brota é: "que Deus nasça nos nossos corações". 
Saber entrar na elevação própria ou adequada dos sítios é saber sentir ou discernir as necessidades e anelos de cada ambiente e dos seus seres e agir psiquicamente correctamente, harmoniosamente.
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Um sinal de meditarmos bem, de estarmos dignos de receber a Deus é termos a visão de Nossa Senhora com o bebé, com a criança pura, ao colo. 
No fundo, Santo António visto com o menino fisicamente ou apenas espiritualmente significa o mesmo: um ser que merecia receber ou sentir a presença divina.
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 É Domingo, os golos atravessam o ar. O país  anda ao rubro aos Domingos, dia do Senhor, mas por causa do futebol e não por causa de Deus ou em elevação mística de comunhão com o seu amor. Mas certamente que há fraternidade, libertação de tensões e o prazer de jogar, de se entusiasmar pelos outros que são assumidos quase como eles presperto e sobretudo o futebol para muita gente é a religião que mais sentem, pois religam-se com os outros do mesmo clube e expandem a sua consciência até ao tamanho do estádio...
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Quando estamos com pessoas que não estão muito harmonizadas nem polarizadas nas suas energias para a sintonização e elevação a Deus, ao Bem, torna-se difícil não nos envolvermos nas suas personalidades e desejos, nas suas carências e frustrações, nos seus bloqueios e sombras e e que são então um mar impetuoso  de energias diversas influenciando quem as rodeia ou que mesmo à distância pela voz, a intencionalidade e o telefone nos tocam, nos envolvem, nos perturbam. Estarmos conscientes do ponto de saturação é importante pata que não deixemos ou a irritação ou o enfraquecimento apanharem-nos
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Onde está o Anjo da Guarda?
O Anjo vive num plano espiritual elevado, e de lá, quando meditamos e oramos ou quando há alguma necessidade forte nossa,  urgência ou apelo,  envia energias que podem ser sentidas, vistas e recebidas por nós de diversas formas e em diferentes níveis.
Por vezes podemos contemplá-los nas alturas, seja interiores seja exteriores,  outras vezes  nas distâncias. 
O mais forte e raro é quando ele mesmo desce sobre nós, e paira sobre nós, ou atrás de nós. 
Por vezes pode projectar uma energia ou imagem sua numa parede, num muro, num monumento, numa árvores...
Certamente há muitas outras formas de o Anjo da Guarda se manifestar...
Saibamos descobrir, merecer, receber as nossas com regularidade, lembrando-nos mais dele durante o dia a dia...

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Das Bibliotecas e Livros e seus efeitos anímicos. Da biblioterapia como medicina simples.

As bibliotecas das pessoas, dos escritores (e até dos livreiros e instituições) permitem deduzir, do seu conteúdo e temáticas, as orientações, afinidades, gostos, influências, amizades e inspirações dos  possuidores. Todavia, a menos que haja anotações e referências, não saberemos bem o que foi lido e apreciado, repelido ou assimilado, embora certamente se possam encontrar na obra de um escritor referências, citações e sinais de afinidades ou influências que certos livros ou autores exerceram.
                                        
É rara a casa que não tenha as suas estantes de livros e revistas, poucas as pessoas que não recorrem a eles para aprender, comungar ou evadirem-se, descontraírem-se, deliciarem-se ou então adormecerem com a mente mais aconchegada. E se houve escritores que tiveram poucos livros, ou que leram com dificuldade em bibliotecas públicas ou de outros, muitos há que se viram rodeados de boas companhias, podendo navegar em diferentes cursos psico-energéticos e atingir certas intuições, compreensões e visões novas, originais mas a partir de estímulos e antecessores, que acabaram por se incorporar nas suas almas e escritos e, eventualmente, em quem os ler...
                                               
Assim, cada casa, cada pessoa deveria ter uma razoável biblioteca para a evolução pessoal sua e da Humanidade, ainda que, nos tempos modernos, os computadores e a internet sejam por vários modos, nomeadamente por possuírem já descarregados ou reproduzidos milhões de livros e folhetos, excelentes bibliotecas globais, ainda que virtuais e logo com certas limitações, seja de contacto físico, manual, seja de fixação anímica e talvez até mnemónica do que se lê...
Em verdade, os livros e revistas, com todas as suas subtis particularidades, desde os autores aos assuntos, das datações às dedicatórias, das encadernações e ilustrações às anotações ou marginália, do tacto ao cheiro do papel, são preciosos companheiros para quem quer aprofundar os mistérios e maravilhas do universo e da humanidade e, particularmente, para os estudantes, pensadores, escritores, historiadores, investigadores, artistas, criadores, comunicadores.
Todos nós sabemos quanto podemos receber psico-somaticamente ao manusear e ler com atenção, gratidão e amor qualquer obra que a sabedoria dos séculos nos lega, ou nos permite aceder, e com ela viajar no tempo e nos mundos psico-espirituais, nos quais tantas riquezas há para suprir as necessidades da Humanidade, ainda tão mergulhada na ignorância, na violência, no egoísmo, no sofrimento, ou manipulada para tal por forças, grupos e seres anti-culturais, anti-libertadoras, opressivas, redutoras...
Podemos dizer então que cada livraria ou biblioteca, ou livro é uma mezinha, um medicamento para harmonizar e curar, um fermento de transformações, uma semente de novas manifestações luminosas e benéficas, uma defesa face à invasão manipulante e massificante que nos rodeia ou nos penetra pelos meios de informação e a publicidade.
O livro no seu suporte de papel, pergaminho ou papiro, pela sua durabilidade e pela sua proximidade e intimidade, será sempre então um dos melhores instrumentos de harmonização e elevação humana e, como tal, o presente ideal que as pessoas oferecem e acolhem, lêem e anotam, criticam ou amam, e com eles se harmonizam.
Quando entramos na casa de alguém frequentemente a nossa primeira impulsão é ver as obras contidas nas estantes, o que essa pessoa leu ou mostra e, ainda que nem queiramos, a partir até de uma mera vista de olhos (se for de conhecedor...) poderemos intuir algumas das características das pessoas que os juntaram, leram, possuíram, amaram...
 Constituirmos a nossa própria biblioteca, e saber ordená-la, e ter mesmo em destaque ou de mais fácil acesso as obras que mais nos tocam,  com as quais  trabalhamos ou os autores com quem  sentimos melhores afinidades e sintonizamos, é então importante, construindo-se assim ilhas valiosas, insuspeitadamente interligadas em redes invisíveis no mundo subtil da Grande Biblioteca Mundial, às quais podemos até convidar a desembarcarem pessoas amigas a fim de desfrutarem da sabedoria e dos prazeres que tais fontes vivas nos transmitem.
 Todos sabemos como algumas bibliotecas se transformaram em quase ilhas utópicas, até no sentido que pela sua singularidade, beleza e raridade não podem ser facilmente acedidas, reforçando-se assim a sua aura, a que hoje as imagens livres virtuais na Web ainda mais realçam, ainda que desvendando-as incompletamente, sem a verdadeira energia do local e dos livros palpitantes ao vivo... 
 A Biblioteca de Mafra, a da Universidade de Coimbra, a da Academia de Ciências de Lisboa, a Vaticana, a de Paris, a do Escorial, e outras famosas, serão algumas das mais notáveis. Mas não devemos menosprezar as  apenas nascidas da bibliofilia de almas mais entusiastas, outras nascidas de legados post-mortem, destacando-se nestas as que tendo pertencido a escritores ou investigadores, e não foram dispersas em leilões ou passadas a diferentes instituições e pessoas, conservam a sua autonomia, diríamos mesmo a sua individualidade, especialmente quando se mantêm no local onde sempre estiveram, rodeadas da memória subtil dos momentos em que as mãos do escritor ou dos seus amigos manusearam os livros, dialogando-o e de mais vida e alegria os inundando. Neste sentido deveria haver mais casas-bibliotecas museus, como polos culturais dinamizadores, constituídas a partir de boas bibliotecas não dispersadas pelas leiloeiras e alfarrabistas, embora certamente estas cumpram um papel bem importante nesse partilhar...
Livros para leilão, em Lisboa...
Não há ainda máquinas digitais que consigam medir a intensidade vibratória que cada livro de uma biblioteca ganhou pela passagem pelas mãos, pela leitura, pelas anotações, pelas trocas psico-energéticas desencadeadas a partir do tabuleiro de xadrez da impressão invertido na cabeça das pessoas e sentido e compreendido na alma em compreensões, intensificações e iluminações...
Alguns de nós, todavia, já terão certamente contemplado por momentos uma estante a certa distância antes de se aproximarem e acolherem o  livro que lhes pareceu mais vibrar ou os chamar. 
Talvez o melhor, quando temos seis ou sete prateleiras à nossa frente, seja escolher uma e depois até ir passando os olhos pelas lombada dos livros, vendo-os a vibrarem, e tentarmos discernir qual é o mais palpitante e tremeluzente que se quer dar às nossas mãos e almas, para depois identificarmos quem o escreveu ou mesmo o anotou. E que talvez deseje diálogos, continuadores e, logo, mais luz e amor no planeta e no cosmos psico-espiritual.
Outra hipótese de trabalho será, depois dessa passagem ou entrada dos olhos-mente nos livros, ficarmos numa percepção desfocada de todos e abrir mais o coração e tentar sentir qual é o que mais nos envia os seus raios, qual é o que mais nos impacta invisivelmente e nos quer fazê-lo arrancar do seu poisio à sombra, quem sabe se já longo, e trazê-lo à luz solar e ao calor amoroso que o ambiente e os nossos olhos, almas e mãos nele introduzem, deles acolhendo tantas potencialidades "suaves, deliciosas, exultantes", três palavras que eu retiro agora da obra antiga que me atraiu de uma estante, as Anotações críticas ao Novo Testamento síriaco, por Egidio Gutbirii, de 1706, impressas em Hamburgo. Mas, vendo melhor o livro, e temos um belo exemplo da riqueza dos livros, da sua capacidade de serem espelhos do passado para o futuro, dou-me conta que a obra tem outro frontispício, começando portanto tanto no fim como no princípio do volume, se o manusearmos da esquerda para a direita, surgindo o começo do Novo Testamento ora em síriaco ora em latim, quem sabe sugerindo-nos que devemos ler e reler aquelas obras que impulsionam mais a nossa religação com a Fonte, com a Sabedoria e Ser Divino, e que constituem portanto o princípio e o fim de tudo...
Os livros são então boas novas, evangelhos, trazendo sabedoria que se acrescenta à nossa, luz sobre luz e, em certos casos, os mais frequentes, os livros sendo já escritos sobre outros livros, introduzem-nos numa cadeia de elos de sabedoria quase infinita, adentrando-nos no vasto campo bibliográfico mundial e no corpo místico dos escritores e pensadores da Humanidade, ou dos seres e temas que eles partilharam...
E, assim, sobre a informação e ambiente  que alguém num presente-passado trabalhou, recriou, descobriu e passou ao futuro, nós agora, os leitores que de novo o retomamos,  reactualizamo-lo de um modo ou outro mais luminoso neste presente e para um futuro que desejamos melhor graças aos nossos contributos...
E tal circulação de saber, energia e graça realiza-se seja pelo que sentimos, anotamos, mencionamos, seja pelo que aprofundaremos e escreveremos já posteriormente e independentemente, cada livro do passado sendo como uma semente lançada de uma planta matura, e estática se ficar em terra estante parada, mas que cresce ao ser lida e se multiplica ao renascer noutra escrita, espaços e tempos, de novo dando ou proporcionando cores e perfumes, ideias e imagens, impulsões e clarificações.
Realcemos de novo as palavras e estados de alma recolhidos há pouco nas três palavras: a suavidade, a elevação e a delícia.
Possam os livros intensificar tais efeitos em nós, fortificando-nos no corpo e na alma das emoções e pensamentos e gerar frutos de vida eterna, ou seja, que iluminando mais as pessoas, as façam reintegrar-se mais harmoniosamente neste planeta, sistema solar e humanidade em história e evolução, de modo a que levemos o que se leu e amou  no corpo espiritual ou de glória, esse com o qual avançamos mais ou menos conscientes, aqui e aquém, rumo a melhores comunhões seja com os outros escritores seja com Divindade, na Unidade amorosa, suave, deliciosa, elevante.
E nestes tempos graves de "cofinagem" nada melhor que os livros, com que mais aprendemos ou nos ligamos beneficamente, para na sua discreta e dialogante biblioterapia, nos apoiarem, harmonizarem, inspirarem, pela disponibilidade, paz, silêncio, suavidade, simplicidade, sabedoria ou mesmo Amor que catalizam em nós e no ambiente...
Ornamento da estrela pentagonal, por Bô Yin Râ

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

"Bom-Senso e Bom-Gosto", a carta de Antero de Quental a A. F. Castilho, de 1865, transcrita e comentada.


Costuma considerar-se como excessiva, atrevida ou violenta a resposta que o jovem açoriano de 23 anos Antero de Quental ofereceu em carta pública de Novembro de 1865 a António Feliciano Castilho, pelas críticas menos apreciadoras da escola Coimbrã, ou seja dele, Vieira de Castro e Teófilo Braga, exaradas numa carta posfacial  para o editor e amigo A. M. Pereira, e inserida na obra do seu admirador e discípulo Pinheiro Chagas, Poema de Mocidade, publicada nesse ano de 1865. Quanto muito, talvez nas últimas linhas, em duas frases, algo se possa sentir de mais ofensivo, ao referi-lo como velho de idade mas não de maturidade interior (e Antero reconheceu isso mais tarde, em 1887), pois de resto o texto é um ensinamento vivo, ardente, perene...
Antero em 1864

Bem sabemos que António Feliciano Castilho na época já tinha 65 anos e  se tornara praticamente cego pelo sarampo desde os 6, mas cedo manifestara um génio poético e ajudado por um irmão se formara em Direito, muito aprendera no que ouvia, tornando-se um dinamizador cultural valioso, nomeadamente com o seu método de ensino de leitura que pretendeu oficializar mas em vão, levando-o a entrar em polémicas, nas quais por vezes se manifestou áspera ou duramente. Por tudo isso, e pelos seus poemas, traduções, livros, revistas, críticas e amizades, era considerado um patriarca das Letras portuguesas, nomeadamente no seu formalismo e romantismo, e como tal venerado.
                                     
Foi contra tal figura, escola e ideias que Antero de Quental se ergueu, defendendo a nova geração e escola literária naturalista e realista, provinda de estudantes da Universidade de Coimbra, bastante mais europeia, filosófica, revolucionária, idealista e socialista. E fê-lo em termos que consideraremos harmoniosos, justificando-se as referências mais críticas talvez ao facto de, como Antero aprendera com ele aos 10 anos francês (e relembra tal grato na carta), terá tido uma intuição anímica quanto ao fundo da alma crítica de Castilho ("... debaixo de cabelos brancos... travesso cérebro..." ) o qual, se publicamente manifestou-se sem grandes tiradas ofensivas que pusessem em causa a sua veneranda figura, já nas cartas aos seus seguidores e defensores deixa escapar expressões e palavras acerca de Antero e dos outros (mafomas coimbrões, bácoros, vândalos e outras) que preferimos não partilhar neste blogue...
Sem irmos ao posfácio causador, já que algumas das afirmações de Feliciano Castilho são de certo modo evocadas por Antero de Quental na sua réplica, foquemo-nos antes em  três aspectos mais fortes presentes em Antero, vividos mesmo animicamente, e que parecem de grande valor, perene mesmo, advertindo que no texto da carta, que transcrevemos em seguida adaptando a ortografia para a actual correcta, sublinhámos as partes mais importantes.
1ª - Para Antero de Quental, as ideias de Ideal, Justiça, Verdade, Bem,  Liberdade,  Independência, e sobretudo o pensar-se por si próprio e com probidade,  são o que  animam a sua consciência e o levam  a escrever, tanto mais que tais valores e princípios,  que estão a ser visados pelas críticas de Castilho, são o que de mais essencial há na missão do escritor público e nos seus efeitos futurantes, para que possa emergir "uma humanidade viva, sã, crente e formosa".
 2ª Para tal missão e criatividade luminosa e benéfica do publicista, as qualidades mais importantes são "a elevação moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma e a dignidade do pensamento e do carácter." Tais virtudes tornam o peito ou o coração puro, inocente, luminoso e irradiante, benéfico à humanidade, e tal é a consciência-energia mais importante de ser cultivada.
3ª  Antero de Quental, na sua época mais verdejante e luminosa, sentia em si que a recompensa dos que se conservam independentes e frequentemente pobres era: «as ideias serenas brilham-lhes na escuridão do isolamento e alumiam-lhes com uma luz doce mas imensa toda a sua obscuridade. Dão-se a desbaratar o mal dos outros homens, como muitos se dão a aumentar o seu bem próprio. Vivem na região das bênçãos, escutando as palavras da boca invisível, e com os ecos dessa voz celeste compõem os hinos de esperança e de amor para a humanidade. Morrem; mas morrem nobres e puros. Tudo isto porque foram independentes». 
Há já nisto um prenúncio de toda a sua teoria da audição da voz da Consciência (e, no fundo, da tão necessária meditação silenciosa), tão partilhada em cartas aos seus amigos, e como a tentativa de audição dela nos interioriza e  alinha com o espírito essência nossa, e com a Razão prática, que nos vai lembrar ou estimular ao que devemos realizar em seguida, no dia a dia e para o Bem.
Há ainda algo de profético neste enunciado, pois intuímos que Antero de Quental, fazendo como ele diz "sacrifício do eu às tristezas e misérias da humanidade," e não se ligando tanto à Divindade solar e amorosa, acabou por carregar um peso grande demais e não conseguiu estabilizar suficientemente a luz e o amor espiritual em si. E assim sofrer demasiado os efeitos das desilusões, vazios e atracção da morte libertadora, para o que a sua doença psico-somática (com reflexos na digestão e no sono) de certo modo também o predispunha, ao enfraquecê-lo. 
Segue-se um pequeno vídeo de 20 minutos sobre a carta de Bom- Senso e Bom-Gosto de Antero e as suas duas primeiras páginas, com leitura comentada (e algum ruído de fundo nos minutos finais). Após o vídeo podemos encontrar transcrita a excelente carta, plena de aspiração, de filosofia, de moral, de espiritualidade, de visão, bem merecedora de ser lida, aprofundada, assimilada e vivida...
 
                            



«Acabo de ler um escrito (1) de v.ª ex.ª onde, a propósito de faltas de bom-senso e de bom-gosto, se fala com áspera censura da chamada escola literária de Coimbra, e entre dois nomes ilustres (2) se cita o meu, quase desconhecido e sobre tudo desambicioso. 
Esta minha obscuridade faz com que a parte de censura que me cabe seja sobremaneira diminuta: em quanto que, por outro lado, a minha despreocupação de fama literária, os meus hábitos de espírito e o meu modo de vida, me tornam essa mesma pequena parte que me resta tão indiferente, que é como que se a nada a reduzíssemos.
Estas circunstâncias pareceriam suficiente para me imporem um silêncio, ou modesto ou desdenhoso. Não o são, todavia. Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição independentíssima de homem sem pretensões literárias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como não pretendo lugar algum, mesmo ínfimo, na brilhante falange das reputações contemporâneas, é por isso que, estando de fora, posso como ninguém avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso também falar livremente. E não é esta uma pequena superioridade neste tempo de conveniências, de precauções, de reticências—ou, digamos a cousa pelo seu nome, de hipocrisia e falsidade. Livre das vaidades, das ambições, das misérias duma posição, que não pretendo, posso falar nas misérias, nas ambições, nas vaidades desse mundo tão estranho para mim, atravessando por meio delas e saindo puro, limpo e inocente.
A este primeiro motivo, que é um direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais grave e mais obrigatório, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida que nos leva muitas vezes, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que acreditamos a justiça. É ela que me manda falar. Não que a justiça e a verdade se ofendessem com v. ex.ª ou com as suas apreciações. Verdade e justiça estão tão altas, que não têm olhos com que vejam as pequenas cousas e os pequenos homens das ínfimas questiúnculas literárias dum ignorado canto de terra, a que ainda se chama Portugal.
Não é isso o que as ofende. Mas as ideias que estão por de trás dos homens; o mal profundo que as cousas apenas miseráveis representam; uma grande doença moral acusada por uma pequenez intelectual; as desgraças, tanto para reflexões lamentosas, desta terra, reveladas pelas misérias, tão merecedoras de desprezo, dos que cuidam dominá-la; isso é que aflige excessivamente a razão e o sentimento, o que prende o olhar ainda o mais desdenhoso a estas baças intrigas; isso é que levanta esta questão do raso das personalidades para a elevar até à altura duma questão de princípios, e que dá às ridículas chufas, que entre si trocam uns tristes literatos, todo o valor duma discussão de filosofia e de historia.
Sim, ex.mo sr. Eu não sei se v. ex.ª tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque a inteligência dos hábeis, dos prudentes, dos espertíssimos é muitas vezes cega em lhe faltando uma cousa bem pequena, que se encontra nos simples e nos humildes—a boa-fé.
À luz dela, porem, eu hei de sempre ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de v. ex.ª, dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incomodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de v. ex.ª
Porque é uma acção desonesta. O que se ataca na escola de Coimbra (talvez mesmo v. ex.ª o ignore, porque há malévolos inocentes e inconscientes), o que se ataca não é uma opinião literária menos provada, uma concepção poética mais atrevida, um estilo ou uma ideia. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se à
 independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A guerra faz-se ao escândalo inaudito duma literatura desaforada, que cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grãos-mestres oficiais. A guerra faz-se à impiedade destes hereges das letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não escreveu nas frontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser só responsável por seus actos e palavras...
Agora quem move estes ridículos combates de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices; é o espírito de rotina violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que quer dormir sossegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a forçam—nós só lhe queremos puxar as orelhas!
Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual.
V. ex.ª, com a imparcialidade que todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal feita, mas também pequena e miseravelmente feita. Mas é que a escola de Coimbra cometeu efectivamente alguma cousa pior de que um crime - cometeu uma grande falta: quis inovar. Ora, para as literaturas oficiais, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sofismas, do que envenenar com o erro as fontes do espírito publico, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, pior do que isto é essa falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar. Por que? Porque todos os outros crimes eram contra as ideias: haveria sempre um perdão para eles. Mas esta falta era contra as pessoas: e essas tais são imperdoáveis. Inovar é dizer aos profetas, aos reveladores encartados: «ha alguma cousa que vós ignorais; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; ha mundo além do círculo que se vê com os vossos óculos de teatro; há mundo maior do que os vossos sistemas, mais profundo do que os vossos folhetins; há universo um pouco mais extenso e mais agradável sobre tudo do que os vossos livros e os vossos discursos.» Isto, sim, que é intolerável! Isto, sim, que é infame e revoltante e ímpio e subversivo! Contra isto, sim, às armas, ergamo-nos na nossa força, mostremos o que somos e o que podemos... escrevamos três folhetins e um prólogo!...
V. ex.ª fez-se chefe desta cruzada tão desgraçada e tão mesquinha. Não posso senão dar-lhe os pêsames por tão triste papel. Mas se eu, como homem, desprezo e esqueço, como escritor é que não posso calar-me; porque atacar a independência do pensamento, a liberdade dos espíritos, é não só ofender o que há de mais santo nos indivíduos, mas é ainda levantar mão roubadora contra o património sagrado da humanidade - o futuro. - É secar as nascentes da fonte aonde as gerações futuras têm de beber. É cortar a raiz da árvore a que os vindoiros tinham de pedir sombra e sossego. E atrofiar as ideias e os sentimentos das cabeças e dos corações que têm de vir.
O contrário disto tudo é que é a bela, a imensa missão do escritor. É um sacerdócio, um oficio público e religioso de guarda incorruptível das ideias, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras. Para isso toda a altura, toda a nobreza interior são pouco ainda. Para isso toda a independência de espírito, toda a despreocupação de vaidades, toda a liberdade de jugos impostos, de mestres, de autoridades, nunca será de mais. O mineiro quer os braços soltos para cavar buscando o ouro entre as areias grossas. O piloto quer os olhos desvendados para ler nos astros o caminho da não por entre as ondas incertas. O sacerdote quer o coração limpo de paixões, de interesses, para aconselhar, guiar, julgar, imparcial e justo. O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras: só assim merecerá o lugar de censor entre os homens, porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres, mas elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro.
Este é o escritor, o poeta, o apóstolo. Se o obrigassem a respeitos convencionais, a terrores supersticiosos diante de certos homens, a espantos cegos diante de certas cousas; se o fizessem baixar a cabeça e as costas para entrar a porta do panteão literário; ele, o pobre, ficaria sempre curvo e submisso, humilde e sem força própria, servo de alheias ideias e apostolo apenas de palavras decoradas e vazias de alma. Como se havia ele pois erguer, entre seus irmãos, tão alto que seus olhos fossem uns como faróis para todos os outros olhos, a sua fronte uma como montanha de luz; tão alto que as palavras de sua boca caíssem sobre as cabeças como uma chuva benéfica e fecundante? Seria, depois das provas e das torturas, das genuflexões e das baixezas da iniciação no grémio dos senhores, seria um aleijão e não gigante, um aborto em vez de herói e, em vez de sobre exceder a todos com a fronte, andaria sumido entre eles, visitado escassamente pelo sol e pela luz. Ele, que não soubera procurar para si o seu caminho, como poderia ele alumiar o dos outros? Ele, humilde, como ensinaria a altivez e a dignidade? Respeitador de conveniências estéreis, como daria o exemplo das revoltas fecundas? Sem alma, como a insuflaria no peito dos tristes e humilhados? Sem vontade, como resistiria às tiranias da opinião omnipotente, ao capricho dos grandes, às ambições, às tentações?
As grandes, as belas, as boas coisas só se fazem quando se é bom, belo e grande. Mas a condição da grandeza, da beleza, da bondade, a primeira e indispensável condição, não é o talento, nem a ciência, nem a experiência: é a elevação moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma e a dignidade do pensamento e do carácter. Nem aos mestres, aos que a maioria boçal aponta como ilustres, nem à opinião, à crítica sem ciência nem consciência das turbas, do maior número, deve pedir conselhos e aprovação, mas só ao seu entendimento, à sua meditação, às suas crenças. Nesta escola do trabalho, da dignidade, das altas convicções, se formam os homens em cujos peitos a humanidade encontra sempre um vasto lago onde farte a sede de verdade, de consolações, de ensinos para a inteligência e confortos para o coração.
No peito dos outros, dos que andam de capela em capela na lida afanosa de incensar cada dia todos os ídolos, dos que fazem da glória uma Bastilha para aventureiros levarem de assalto, e não púlpito aonde se suba com respeito e amor, no peito desses não habita mais do que ambição, vaidade, endurecimento e miséria. Esses lisonjeiam os grandes; e os grandes dão-lhes a mão para que subam, e desprezam-nos depois. Lisonjeiam as maiorias; e as maiorias inconstantes lançam-lhes no regaço um pouco de ouro e algum aplauso de momento, e depois passam e esquecem. Afagam todas as vaidades; e têm em cada vício humano um capital, cujo juro dissipam em quanto vivos, porque essa moeda corrompida para mais ninguém serve. Enfim, nos quinze ou vinte anos em que dão que falar às gazetas, aos botequins, aos grémios, a todos os vadios, a todos os fúteis, folgam, vivem alegres e esquecidos de tudo quanto não seja a satisfação do que há no homem de mais pequeno—a vaidade e o interesse.
Para os outros a obscuridade, e a miséria muita vez - mas a estima dos melhores entre os homens pelo espírito, e, o que excede tudo, a posse duma consciência superior a quanto não seja a verdade, a justiça e a formosura. As ideias serenas brilham-lhes na escuridão do isolamento e alumiam-lhes com uma luz doce mas imensa toda a sua obscuridade. Dão-se a desbaratar o mal dos outros homens, como muitos se dão a aumentar o seu bem próprio. Vivem na região das bênçãos, escutando as palavras da boca invisível, e com os ecos dessa voz celeste compõem os hinos de esperança e de amor para a humanidade. Morrem; mas morrem nobres e puros. Tudo isto porque foram independentes. Não pertenceram a corrilhos; não elogiaram ninguém para que os elogiassem a eles; não incensaram os fetiches dos ridículos pagodes literários. Foram honrados. Foram simples.
A estes tais chamo eu poetas. Porque nos ensinam o bem. Porque são originais e dizem sempre alguma cousa nova à nossa curiosidade de saber. Porque dão com a elevação das vidas confirmação à sublimidade dos escritos. Porque são tão poéticos como os seus poemas. Porque vão adiante abrindo à luz e ao amor novos horizontes. Porque não conhecem ambições nem orgulhos. Porque têm a cabeça do génio e o coração da inocência. É por isso tudo que lhes chamo poetas.
Os outros adoram a palavra, que ilude o vulgo, e desprezam a ideia, que custa muito e nada luz. São apóstolos do dicionário, e têm por evangelho um tratado de metrificação. Fazem da poesia o instrumento de suas vaidades. Pregam o bem por uso e convenção literária, porque se presta à declamação poética, mas praticam o egoísmo por índole e por vontade. Fazem-nos descrer da grandeza humana, porque são uns sofismas que nos mostram a pequenez e a má fé aonde as aparências são todas de nobreza. Preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir. Repetem o que está dito há mil anos, e fazem-nos duvidar se o espírito humano será uma estéril e constante banalidade. São os enfeitadores das ninharias luzidias. Põem os nadas em pé para parecerem alguma cousa. São os ídolos literários da multidão que mal sabe ler. São os filósofos queridos da turba que nunca pensou. São, enfim, génios no Brasil como v. ex.ª
Estes tais escusam da nobreza e da dignidade: têm a habilidade e a finura. Para a obra que fazem, isso lhes basta. Mas a obra, ex.mo sr., é que é uma obra vulgar: bem feita para agradar ao ouvido, mas estéril para o espírito. Soa bem, mas não ensina nem eleva. Ora a humanidade precisa que a levantem e que a doutrinem. São, pois, necessárias outras e melhores obras.
Mas, se já alguma hora da história impôs aos que falam alto entre os povos obrigações de seriedade, de profunda abnegação, de sacrifício do eu às tristezas e misérias da humanidade, de trabalho e silencioso pensamento; se alguma hora lhes mandou serem graves, puros, crentes, é certamente esta do dia de hoje, da idade de transformação dolorosa, de cepticismo, de abaixamento moral, de descrença, que é o nosso século. Refundem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas ideias. Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado abalam-se. O futuro não aparece ainda. E, entre estas duvidas, estes abalos, estas incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem, menos dispostas ao sacrifício e às abnegações da consciência. Há toda uma humanidade em dissolução, de que é preciso extrair uma humanidade viva, sã, crente e formosa.
Para este grande trabalho é que se querem os grandes homens. Sairão esses heróis das academias literárias? das arcádias? das sinecuras opulentas? Dos corrilhos do elogio-mútuo? Sairão as águias das capoeiras? Saltarão as ideias salvadoras do choque das maledicências e dos doestos? Nascerão as dedicações do casamento das vaidades? Darão a grande novidade os ledores de Horácio? Inventarão as novas formulas os que decoram as frases rabugentas dos livros bolorentos que chamam clássicos? E os Sócrates e os Epictetos descerão para as suas missões das cadeiras almofadadas, das rendosas conezias literárias, das prebendas, das explorações?
Fora dessa atmosfera corrupta, e, quando não corrupta, pelo menos esterilizadora, é mais provável encontrarem-se as condições que precisam para viver e crescer os homens úteis e necessários às transformações do espírito humano.
Não é traduzindo os velhos poetas sensualistas da Grécia e de Roma; requentando fábulas insonsas diluídas em milhares de versos sem-sabores; não é com idílios grotescos sem expressão nem originalidade, com alusões mitológicas que já faziam bocejar nossos avós; com frases e sentimentos postiços de académico e retórico; com visualidades infantis e puerilidades vãs; com prosas imitadas das algaravias místicas de frades estonteados;com banalidades, com ninharias; não é, sobre tudo, lisonjeando o mau gosto e as péssimas ideias das maiorias, indo atrás delas, tomando por guia a ignorância e a vulgaridade, que se hão de produzir as ideias, as ciências, as crenças, os sentimentos de que a humanidade contemporânea precisa para se reformar como uma fogueira a que a lenha vai faltando.
Mas fora de tudo isto, destas necessidades tradicionais, é o nevoeiro, é o metafisico, é o inatingível - diz v. ex.ª
Todavia, quem pensa e sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim. Não é a nossa divertida Academia das Ciências, que revolve, decompõe, classifica e explica o mundo dos factos e das ideias. É o Instituto de França, é a Academia cientifica de Berlim, são as escolas de filosofia, de historia, de matemática, de física, de biologia, de todas as ciências e de todas as artes, em França, em Inglaterra, em Alemanha. Pois bem: a Alemanha, a Inglaterra, a França, comprazem-se no nevoeiro, são incompreensíveis e ridículas, são metafisicas também. As três grandes nações pensantes são risíveis diante da critica fradesca do sr. Castilho. Os grandes génios modernos são grotescos e desprezíveis aos olhos baços do banal metrificador português.
O grande espírito filosófico do nosso tempo, a grande criação original, imensa da nossa idade, não passa de confusão e embróglio desprezível para o professor de ninharias, que cuida que se fustiga Hegel, Stuart Mil, Augusto Comte, Herder, Wolf, Vico, Michelet, Proudhon, Litré, Feuerbach, Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Buchner, Quinet, a filosofia alemã, a crítica francesa, o positivismo, o naturalismo, a história, a metafísica, as imensas criações da alma moderna, o espírito mesmo da nossa civilização.... que se fustiga tudo isto e se ridiculariza e se derruba com a mesma sem-cerimónia com que ele dá palmatoadas nos seus meninos de 30, 40 e 50 anos, de Lisboa, do Grémio, da Revista Contemporânea!
Quem seguir tudo isto vai com o pensamento moderno; com as tendências da ciência; com os resultados de trinta anos de critica; com a nova escola histórica; com a renovação filosófica; com os pensadores; com os sábios; com os génios; vai com a França; vai com a Alemanha—mas que importa? não vai com o sr. Castilho! não vai com o novo método repentista! não vai com o moderno folhetim português!
O metrificador das Cartas d'Echo diz ao pensador da Filosofia da natureza - tira-te do meu sol! - O mitólogo do dicionário da fábula diz ao profundo descobridor da Simbólica - és um ignorante! - A retórica portuguesa diz à ciência, ao espírito moderno - cala-te daí, papelão!
É que tudo isto não passa de ideias. Ora há uma cousa que o sr. Castilho tomou à sua conta, que não deixa em paz, que nos prometeu destruir... é a metafísica... é o ideal...
O ideal! palavra mística; de gótica configuração; quase impalpável; espiritualista; impopular; que o artigo de fundo repele; que desacreditaria o deputado do centro que a empregasse; que Victor Hugo adora e de que se riem os localistas; que não chega para um folhetim e que enche o maior poema; imensa aos olhos dos que a vêem com os olhos fechados e que nunca viram os que os trazem sempre arregalados; palavra péssima para uma rima de madrigal; palavra que faz desmaiar as beatas; grotesca num botequim; disforme numa sala; medonha numa assembleia de literatos horacianos... decididamente v. ex.ª devia odiar esta desgraçada palavra!
O ideal quer dizer isto: desprezo das vaidades; amor desinteressado da verdade; preocupação exclusiva do grande e do bom; desdém do fútil, do convencional; boa fé; desinteresse; grandeza de alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberaníssimo bom senso... tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras - ideal.
Por todos estes motivos ela é sobremaneira odiável; ela é desprezível por todas estas causas; e v. ex.ª tem toda a razão, chacoteando, bigodeando, pulverizando esse miserável ideal.
Ele, com efeito, nada do que ele é ou do que vem dele, serve ou pode servir jamais para alguma cousa do que se procura na vida, do que nela procuram os homens graves, os homens sérios, os homens de senso e gosto como v. ex.ª, que nada querem com ideais ou com ideias, mas só com realidades e com tactos; para captar a admiração das turbas; o aplauso das multidões; para formar um grande nome composto de pequeninas letras; para merecer os encómios dos gramaticões e o assombro dos burgueses; para ser das academias; das arcádias; comendador; citado pelos brasileiros retirados do comercio; decorado pelos directores de colégio; o Tirteu dos merceeiro e um Homero constitucional.
Para isto é que não serve o ideal. E é por isso, pela sua absurda inutilidade, que v. ex.ª o apeia com tanta sem cerimonia do pedestal aonde, para o adorarem, o têm posto os loucos que nunca foram nada neste mundo, nem das academias nem do conselho de instrução pública, um Cristo, um Sócrates, um Homero...
Por isso é que v. ex.ª faz muito bem em o destruir, a esse pobre diabo do ideal; de o pôr fora de casa a bofetões; de o banir das suas obras, que não haver por lá nem a mais leve sombra dele. Agradam a todos assim. Os versos de v. ex.ª não têm ideal—mas começam por letra pequena. As suas criticas não têm ideias—mas têm palavras quantas bastem para um dicionário de sinónimos. Os seus poemas líricos não são metafísicos, não precisam duma excessiva atenção, de esforços de pensamento para se compreenderem—e têm a vantagem de não deixarem ver nem um só ideal. Nas suas obras todas há uma falta tão completa dessas incompreensibilidades, que deve pôr muito à sua vontade os leitores que v. ex.ª têm no Brasil. V. ex.ª diz tudo quanto se pode dizer sem ideias - boa, excelente receita para não cair nas nebulosidades do ideal. Os seus escritos são óptimos escritos—menos as ideias: e é v. ex.ª um grande homem - menos o ideal.
Dante, que era um bárbaro, e Shakespeare, que era um selvagem, é que rechearam as suas obras de ideal. Victor Hugo também cai muito nesse defeito. V. ex.ª é que o tem sempre evitado cautelosamente, e por isso não é um bárbaro como Dante, nem selvagem como Shakespeare, nem um mau poeta como Victor Hugo. Não é Dante, nem Shakespeare, nem Hugo—mas é amigo do sr. Viale, que fala latim como Mevio e Bavio.
Mas, ex.mo sr., será possível viver sem ideias? Esta é que é a grande questão. Em Lisboa, no Curso de Letras, na Academia, no Conselho Superior, no Grémio, nos saraus de v. ex.ª, dizem-me que sim, e que é mesmo uma condição para viver bem. Fora de Lisboa, isto é, no resto do mundo, em Paris, Berlim, Londres, Turim, Goetingue, New-York, Boston, países mais desfavorecidos da sorte, na velha Grécia também e mesmo na Roma antiga, é que nunca puderam passar sem essas magnificas inutilidades. Elas o muito que têm feito é servirem de entretenimento aos visionários como Christo (um metafisico bem nebuloso), como Sócrates, como Çakia-Mouni, como Mahomet, como Confúcio e outros sujeitos de nenhuma consideração social, que se entretinham fazendo sistemas com elas, e com os sistemas religiões, e com as religiões povos, e com os povos civilizações, e com as civilizações códigos, leis, sentimentos, amores, paixões, crenças, a alma enfim da humanidade, cousa que se não vê nem rende, e é também inútil e incompreensível. Eis aí o mais a que as ideias têm chegado. Creio que pouco mais ou nada mais têm feito do que isto.
Em Lisboa é que nem isto. Não sei se tem havido quem tente introduzi-las nessa capital. V. ex.ª é que eu tenho a certeza de que não era capaz dessa má acção. Por isso Lisboa não cai como caíram Atenas e Roma, por causa das suas ideias, e Jerusalém e outras cidades infelizes, cujos poetas tiveram um amor demasiado ao ideal... Uma só cousa ficou delas: uma memoria grande, honrosa, nobilíssima. Caíram, mas deram ao mundo um espectáculo raro—o espírito e a consciência humana triunfando da matéria e brilhando no meio das ruínas como a chama que se alimenta da destruição da lenha donde sai e que a gerou. Eu não sei se v. ex.ª acha isto sensato e de bom gosto. Cuido que não. O que eu sei somente é que isto é sublime......................

Paro aqui, ex.mo sr. Muito tinha eu ainda que dizer: mas temo, no ardor do discurso, faltar ao respeito a v. ex.ª, aos seus cabelos brancos. Cuido mesmo que já me escapou uma ou outra frase não tão reverente e tão lisonjeira como eu desejara. Mas é que realmente não sei como hei de dizer, sem parecer ensinar, certas cousas elementares a um homem de sessenta anos; dizê-las eu com os meus vinte e cinco! V. ex.ª aturou-me em tempo no seu colégio do Pórtico, tinha eu ainda dez anos, e confesso que devo à sua muita paciência o pouco francês que ainda hoje sei. Lembra-se, pois, da minha docilidade e adivinha quanto eu desejaria agora pode-lo seguir humildemente nos seus preceitos e nos seus exemplos, em poesia e filosofia como outrora em gramática francesa, na compreensão das verdades eternas como em outro tempo no entendimento das fábulas de La Fontaine. Vejo, porém, com desgosto que temos muitas vezes de renegar aos vinte e cinco anos do culto das autoridades dos dez; e que saber explicar bem Telémaco a crianças não é precisamente quanto basta para dar o direito de ensinar a homens o que sejam razão e gosto. Concluo daqui que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a madureza das ideias, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco anos têm-me as verduras de v. ex.ª convencido valerem pelo menos os seus sessenta. Posso pois falar sem desacato. Levanto-me quando os cabelos brancos de v. ex.ª passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que saem dele, confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.ª precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão.
É por estes motivos todos que lamento do fundo da alma não me poder confessar, como desejava, de v. ex.ª
Nem admirador nem respeitador
Antero do Quental.  
                                                Coimbra 2 de Novembro de 1865.

Notas:
(1) Carta ao editor António Maria Pereira, inserida no Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, Lisboa,1865. 
(2) Teófilo Braga e Vieira de Castro.

Que tanto Antero como Castilho estejam ou sejam espíritos bem laureados nas suas vidas subtis....
E entre nós todos circulem  as inspirações ou bênçãos psicomórficas (isto é, psíquicas com formas) da Tradição Espiritual perene, dos Mestres e Anjos e da Divindade...

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A espiritualidade d' "A Casa do Coração", de Friedrich Rücker, na versão de Antero de Quental, na revista "Crítica Amena". E as sincronias com Carlos Cirilo Machado nesse ano de 1886.

                                                     
 A Crítica Amena, Revista Literária Contemporânea, saiu à luz em Lisboa em Julho de 1886, sendo o seu proprietário, director e apresentador Augusto Forjaz, e mostrando  uma extensa lista de notáveis colaboradores no centro da capa, onde se destacavam Camilo, Bulhão Pato, Jaime de Magalhães de Lima, Júlio César Machado, Alfredo Pimentel, Luís Palmeirim, Guerra Junqueiro, José Silvestre Ribeiro, Macedo Papança, D. António da Costa e Alfredo Gallis, este desferindo uma crítica virulenta a um estudante de Coimbra, amigo de Antero de Quental,  Carlos Cirilo Machado (1865-1919), que chegará a altos postos diplomáticos (e mesmo a 2º Visconde de Santo Tirso), e ao qual, em Dezembro de 1881, a 15,  Antero de Quental escrevera bem instrutiva e elogiosa: «pela minha parte, de entre os rapazes da última geração, está o Carlos no número limitado daqueles que eu estimo e de quem espero alguma coisa sã. Concebo que [eu] lhe tenha feito alguma falta: as nossas conversas não eram vãs, e o Carlos não é daqueles, que, por terem talento, se cuidam dispensados de ouvir e atender»...
  Que sincronias estas no Verão de 1886: ao mesmo tempo que Carlos Cirilo Machado, jovem de 21 anos, recebia por um lado de Alfredo Gallis (1859-1910, autor que se especializara na literatura sexual), na revista Crítica Amena, uma descasca fortíssima à sua ousada A Velhice do Padre Eterno pelo Sr. Guerra Junqueiro (ensaio crítico), 1886, na qual até a Victor Hugo fazia reparos, e que obrigara logo em Setembro de 1886 Antero de Quental a escrever a Carlos Cirilo, a propósito de tal crítica "acre e visivelmente hostil" e portanto não "persuasiva": «Meu caro. Apesar de V. bater tão desalmadamente num que eu sempre amei muito, não lhe posso encobrir que na maioria dos casos bate certo», destacando que «a Velhice é o sintoma duma deplorável mania de profeta, que ameaça perdê-lo como perdeu o Hugo», antevendo ainda que Carlos poderia ser mal interpretado, e lembrando-lhe que o crítico deve ser um juiz e não um adversário, Carlos Cirilo recebia por outro lado também a última das três cartas de Antero de Quental preservadas, a qual, além de o  apoiar pelo diálogo e afirmação da unidade, é de suma importância.
 Na realidade, nela, Antero de Quental, respondendo às perguntas de Carlos Cirilo Machado sobre o magnetismo, refere ter conhecido  o padre Chaves e o deputado Sárrea Prado, algarvios (do primeiro nada sabemos e do segundo conhecemos estar activo no meio ocultista e espiritualista em 1928), dados «às ciências ocultas» e afirma, numa continuidade de ideias de Karl Eduard von Hartmann, que a «unidade de consciência», «expressão da unidade fundamental das coisas, existe latente ordinariamente, e só se manifesta obscuramente nos factos do instinto. O magnetismo será, segundo esta ordem de ideias, o momento em que essa unidade de consciência de latente se torna patente». 
Anote-se que Edward von Hartmann, mais conhecido como filósofo do inconsciente e  que Antero de Quental lera, chamara à comunicação no plano magnético cósmico ou transcendental, uma comunicação telefónica no Absoluto, como assinala Hans Driesch na sua Psychical Research. The Science of the Super-Normal, 1923, legível online, e na qual faz uma tentativa metodológica de discernir o que pode ser verdadeiro e falso na investigação psíquica, ao tempo de Antero de Quental sendo tal  comunicação denominada e estudada mais como magnetismo, sonambulismo, transferência de consciência, com associações por vezes à acção de espíritos, como os adeptos do espiritismo investigavam, embora frequentemente sob as mistificações dos médiuns...
Assim nesse criativo ano de 1886 Antero de Quental estava recolhido na sua tebaida ou eremitério ou ashram de Vila de Conde e escrevia cartas importantes que tanto clarificavam e apoiavam filosófica e espiritualmente como assinalavam a sua crise e as suas maleitas, compreendendo-se que o seu nome não estivesse sequer assinalado nos colaboradores por  não ser amigo do director da revista lisboeta, e, portanto, por não se ter disponibilizado para ser colaborador; e de facto na sua  ampla correspondência, bem compilada e anotada por Ana Maria Almeida Martins,  não encontramos referências a Augusto Forjaz.
António de Azevedo Castelo Branco
Numa carta de Vila do Conde, num  Domingo de Maio desse ano de 1886,  a um dos seus mais queridos condiscípulos, António de Azevedo Castelo Branco, alguém a quem Antero de Quental podia entregar-se e confessar aspectos que o preocupavam, falava-lhe da sua pouca inserção e interacção na sociedade: «Eu por aqui estou, para o meu humor e gosto, bem, no meio do suave austero desta região, que ainda não é do século 19. Entretanto, pesa-me o não servir em nada à comunidade, pois nem espectador sou da triste comédia do mundo contemporâneo. Por dever, medito em sair deste encantamento e misturar-me aos homens para fazer alguma coisa que lhes preste. Mas o quê? É o que ainda não descobri. Veremos.»
Estava porém na forja a edição dos seus Sonetos completos, a qual sairia em Agosto de 1886 e que, como diria em Setembro, com ela já nascida,  em carta ao seu tradutor italiano e amigo Tommazo Cannizzaro, valerá como um documento psicológico, «como "as memórias de uma consciência" neste nosso período tão tormentoso e confuso» constituindo sem dúvida uma notável contribuição para a poesia, a cultura e a cosmovisão portuguesa.
Nessa carta referia ainda «o estado deplorável dos meus nervos, ou como agora dizem, a nevrose, que durante larguíssimos períodos, deixando-me intacta a inteligência, me entibia a vontade e me impede de fazer as coisas mais simples justamente quando desejo fazê-las,» nomeadamente ou no caso  responder-lhe e enviar-lhe os Sonetos mais cedo...
Voltando ao início deste nosso texto, a revista literária lisboeta que nesse mesmo ano de 1886 surgia com o pacato título de Crítica Amena e que não mencionava na capa Antero de Quental nos colaboradores, se a abrirmos e lermos o frontispício, encontramos todavia a menção seguinte:  Casa do Coração, poesia de Antero de Quental. 
E na verdade, nas páginas 33 e 34, encontramos uma breve mas significativa apresentação à transcrição de tal poesia que, embora sendo atribuída a Antero, e tenha ganho alguma fama, embora com discrepâncias nas transcrições, era apenas uma tradução sua do alemão Friedrich Rücker (1788-1866), um vigoroso poeta e sonetista (muito musicado ao longo dos anos, nomeadamente por Gustav Mahler) e, significativamente, um notável orientalista que publicou várias traduções árabes (nomeadamente do Corão) e indianas e mesmo uma obra em seis volumes  intitulada Die Weisheit des Brahmanen, A Sabedoria dos Brâmanes. Não há, porém, obras dele, a não ser a antologia Deutsche Lyrick, de 1879, contendo este poema, na livraria de Antero de Quental, hoje em Ponta Delgada, na  Biblioteca Pública.

     A CASA DO CORAÇÃO 

«O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver,
Num a Dor, noutro o Prazer. 

Quando o Prazer, no seu quarto,
Acorda cheio de ardor,
No seu adormece a Dor.

Cuidado, [Mais baixo], Prazer, Cautela!
Canta [Fala] e ri mais devagar,
Não vá a Dor acordar!»


É uma poesia simples que embora possa ser vista como timorata face à taça do prazer que a vida oferece naturalmente e da qual todos devemos beber, deve ser mais entendida numa linha oriental de temperança, de equilíbrio vibratório, de conhecimento da lei do Karma: - não exageres no prazer pois poderás despertar a reacção ou compensação equilibrante da dor. 
Talvez o mais original do poema do orientalista
Friedrich Rücker seja localizar no coração esses dois níveis, apresentados mesmo como quartos onde a alma se pode instalar, viver ou desenvolver-se mais, e poderemos lembrar-nos também da tipificada dualidade (que igualmente deverá ser complementar e não oposta) do riso e do choro de Demócrito e de Heráclito, glosada pelo padre António Vieira num sermão e outros, ou mesmo as sete mansões ou níveis da alma ou consciência de S. Teresa de Ávila e de vários místicos, que se everão deixar para atrás até se chegar ao centro íntimo de si mesmo e por fim à ligação com a Divindade. 
Anote-se que a linha de transmissão ou divulgação pública desta poesia A Casa do Coração, iniciada quando foi escrita num álbum da filha de João de Deus (hoje na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada), começa no Brasil, onde é impressa pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, e desagua de novo em Lisboa, na Crítica Amena, e finalmente é incluída por Teófilo Braga nos Raios de Extincta Luz, obra publicada rápida e oportunisticamente por este em 1892, um ano após a partida ou morte de Antero, e que certamente Antero não apreciou (do além...) por várias razões.
 Teófilo Braga apresenta-a como imitada do alemão, menciona a proveniência do álbum, e transcreve-a com duas variantes (a principal "Não vás a Dor acordar") em relação à versão dada à luz  na Crítica Amena, na qual o verso final  surge como: «Não vá a Dor acordar»,  certamente a mais acertada, como a podemos ver escrita numa carta para Joaquim Araújo, de 1881, em que o trata Meu caro Pequeno, então numa versão com um pequena variação ainda assim significativa, de intimidade, de interioridade, ao estar "Mais baixo", em vez do "Cuidado" que se tornará a versão pública e aparentemente final...
Mas qual é então a introdução ou nota contextualizante valiosa de Augusto Forjaz, que no fim da revista de oitenta páginas defende e elogia ainda Guerra Junqueiro e Alfredo Gallis? 
Ei-la:


 «Pertence à Gazeta de Noticias, do Rio de Janeiro, a glória de ter publicado, inéditos, os seguintes versos escritos num álbum pelo anacoreta de Coimbra, uma das inteligências mais notáveis da literatura portuguesa. 
Antero de Quental  é o admirável burilador das Odes Modernas e a vítima de uma doença que o aniquila, apertando-lhe a existência num círculo de ferro que lentamente se estreita. 
Mas, através aquele martírio lento, é soberba, é admirável, é extraordinária, a luz que fulgura de um cérebro cultivadíssimo, como que um clarão eterno acompanhando um sol moribundo.
Os versos que seguem, quase completamente desconhecidos em Portugal, são nove brilhantes límpidos, fulgurando na treva da doença do notável poeta açoriano»... 
O que poderemos acrescentar a este aparentemente belo tributo à paixão-doença e génio de Antero de Quental, senão apenas realçar primeiro a  expressão "anacoreta", que embora com laivos algo exagerados aponta o eremita, o génio, passada a fase inicial dos amores e lutas juvenis em que tanto se destacou, e agora longe da dispersão e superficialidade mundana, em busca do íntimo, do sagrado, da verdade, e solitário ou com um ou outro companheiro, como ele se reconheceu ou desejou, nomeadamente falando de uma Ordem dos Mateiros, recolhidos nas matas, apesar do seu forte amor e ardor revolucionário sendo ingénito, permanecer de algum modo  perene, tal como vemos mesmo um ano antes de desencarnar vir ao de cima no episódio da repulsa ao imperialismo inglês do Ultimatum e na aceitação da presidência da Liga Patriótica do Norte. 
Em segundo, a descrição da doença nervosa como um círculo de ferro que lentamente se estreita num martírio lento sobre tal inteligência notável, e em que há quase como que uma antevisão do suicídio cinco anos depois, o qual, por exemplo, entre outros dessa época, Manuel Laranjeira também cometerá, mas que antes em alguns artigos Antero criticara pelo que tal significava de ausência de ambientes que acalentassem as almas mais sensíveis.
Todavia, mesmo na treva da doença (talvez exagerada por Forjaz) e da fraca inserção social, ressalta ou é pressentida por Augusto Forjaz e outros a extraordinária a luz que fulgura de uma alma (e não um cérebro apenas...) plena de cultura e idealismo, sensibilidade e bondade, luz ou clarão divino que continuará para além do poente do horizonte terreno...
Possam a luz e o amor Divinos brilharem sempre no ser anímico e espiritual de Antero do Quental e em nós...