Costuma considerar-se como excessiva, atrevida ou violenta a resposta que o jovem açoriano de 23 anos Antero de Quental ofereceu em carta pública de Novembro de 1865 a António Feliciano Castilho, pelas críticas menos apreciadoras da escola Coimbrã, ou seja dele, Vieira de Castro e Teófilo Braga, exaradas numa carta posfacial para o editor e amigo A. M. Pereira, e inserida na obra do seu admirador e discípulo Pinheiro Chagas, Poema de Mocidade, publicada nesse ano de 1865. Quanto muito, talvez nas últimas linhas, em duas frases, algo se possa sentir de mais ofensivo, ao referi-lo como velho de idade mas não de maturidade interior (e Antero reconheceu isso mais tarde, em 1887), pois de resto o texto é um ensinamento vivo, ardente, perene...
Antero em 1864 |
Bem sabemos que António Feliciano Castilho na época já tinha 65 anos e se tornara praticamente cego pelo sarampo desde os 6, mas cedo manifestara um génio poético e ajudado por um irmão se formara em Direito, muito aprendera no que ouvia, tornando-se um dinamizador cultural valioso, nomeadamente com o seu método de ensino de leitura que pretendeu oficializar mas em vão, levando-o a entrar em polémicas, nas quais por vezes se manifestou áspera ou duramente. Por tudo isso, e pelos seus poemas, traduções, livros, revistas, críticas e amizades, era considerado um patriarca das Letras portuguesas, nomeadamente no seu formalismo e romantismo, e como tal venerado.
Foi contra tal figura, escola e ideias que Antero de Quental se ergueu, defendendo a nova geração e escola literária naturalista e realista, provinda de estudantes da Universidade de Coimbra, bastante mais europeia, filosófica, revolucionária, idealista e socialista. E fê-lo em termos que consideraremos harmoniosos, justificando-se as referências mais críticas talvez ao facto de, como Antero aprendera com ele aos 10 anos francês (e relembra tal grato na carta), terá tido uma intuição anímica quanto ao fundo da alma crítica de Castilho ("... debaixo de cabelos brancos... travesso cérebro..." ) o qual, se publicamente manifestou-se sem grandes tiradas ofensivas que pusessem em causa a sua veneranda figura, já nas cartas aos seus seguidores e defensores deixa escapar expressões e palavras acerca de Antero e dos outros (mafomas coimbrões, bácoros, vândalos e outras) que preferimos não partilhar neste blogue...
Foi contra tal figura, escola e ideias que Antero de Quental se ergueu, defendendo a nova geração e escola literária naturalista e realista, provinda de estudantes da Universidade de Coimbra, bastante mais europeia, filosófica, revolucionária, idealista e socialista. E fê-lo em termos que consideraremos harmoniosos, justificando-se as referências mais críticas talvez ao facto de, como Antero aprendera com ele aos 10 anos francês (e relembra tal grato na carta), terá tido uma intuição anímica quanto ao fundo da alma crítica de Castilho ("... debaixo de cabelos brancos... travesso cérebro..." ) o qual, se publicamente manifestou-se sem grandes tiradas ofensivas que pusessem em causa a sua veneranda figura, já nas cartas aos seus seguidores e defensores deixa escapar expressões e palavras acerca de Antero e dos outros (mafomas coimbrões, bácoros, vândalos e outras) que preferimos não partilhar neste blogue...
Sem irmos ao posfácio causador, já que algumas das afirmações de Feliciano Castilho são de certo modo evocadas por Antero de Quental na sua réplica, foquemo-nos
antes em três aspectos mais fortes presentes em Antero,
vividos mesmo animicamente, e que parecem de grande valor, perene mesmo,
advertindo que no texto da carta, que transcrevemos em seguida adaptando a
ortografia para a actual correcta, sublinhámos as partes mais importantes.
1ª
- Para Antero de Quental, as ideias de Ideal, Justiça, Verdade, Bem,
Liberdade, Independência, e sobretudo o pensar-se por si próprio e com
probidade, são o que animam a sua consciência
e o levam a escrever, tanto mais que tais valores e princípios, que
estão a ser visados pelas críticas de Castilho, são o que de mais
essencial há na missão do escritor público e nos seus efeitos
futurantes, para que possa emergir "uma humanidade viva, sã, crente e formosa".
2ª Para tal missão e
criatividade luminosa e benéfica do publicista, as qualidades mais importantes são "a
elevação
moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma e a
dignidade do pensamento e do carácter." Tais virtudes tornam o peito ou
o coração puro, inocente, luminoso e irradiante, benéfico
à humanidade, e tal é a consciência-energia mais importante de ser
cultivada.
3ª Antero de Quental,
na sua época mais verdejante e luminosa, sentia em si que a recompensa
dos que se conservam independentes e frequentemente pobres era: «as
ideias
serenas brilham-lhes na escuridão do isolamento e alumiam-lhes com
uma luz doce mas imensa toda a sua obscuridade. Dão-se a desbaratar o
mal dos outros homens, como muitos se dão a aumentar o seu bem
próprio. Vivem na região das bênçãos, escutando as palavras da boca
invisível, e com os ecos dessa voz celeste compõem os hinos de
esperança e de amor para a humanidade. Morrem; mas morrem
nobres e puros. Tudo isto porque foram independentes».
Há já nisto um prenúncio de toda a sua teoria da audição da voz da
Consciência (e, no fundo, da tão necessária meditação silenciosa), tão
partilhada em cartas aos seus amigos, e como a tentativa de audição dela nos interioriza e alinha com o espírito essência nossa, e com a Razão prática, que nos vai lembrar ou estimular ao que devemos realizar em seguida, no dia a dia e para o Bem.
Há ainda algo de profético neste enunciado, pois intuímos que Antero de Quental, fazendo como ele diz "sacrifício do eu às tristezas e misérias
da humanidade," e não se ligando tanto à Divindade solar e
amorosa, acabou por carregar um peso grande demais e não conseguiu
estabilizar suficientemente a luz e o amor espiritual em si. E assim
sofrer demasiado os efeitos das desilusões, vazios e atracção da morte libertadora, para o que a
sua doença psico-somática (com reflexos na digestão e no sono) de certo modo também o predispunha, ao
enfraquecê-lo.
Segue-se um pequeno vídeo de 20 minutos sobre a carta de Bom- Senso e Bom-Gosto de Antero e as suas duas primeiras páginas, com leitura comentada (e algum ruído de fundo nos minutos finais). Após o vídeo podemos encontrar transcrita a excelente carta, plena de aspiração, de filosofia, de moral, de espiritualidade, de visão, bem merecedora de ser lida, aprofundada, assimilada e vivida...
«Acabo de ler um escrito (1) de v.ª ex.ª onde, a propósito de faltas de bom-senso e de
bom-gosto, se fala com áspera censura da chamada escola literária
de Coimbra, e entre dois nomes ilustres (2) se cita o meu, quase desconhecido e sobre tudo desambicioso.
Esta minha obscuridade faz com que a
parte de censura que me cabe seja sobremaneira diminuta: em quanto
que, por outro lado, a minha despreocupação de fama literária,
os meus hábitos de espírito e o meu modo de vida, me tornam
essa mesma pequena parte que me resta tão indiferente, que é como
que se a nada a reduzíssemos.
Estas circunstâncias pareceriam
suficiente para me imporem um silêncio, ou modesto ou desdenhoso.
Não o são, todavia. Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é
a liberdade absoluta que a minha posição independentíssima de
homem sem pretensões literárias me dá para julgar
desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como
não pretendo lugar algum, mesmo ínfimo, na brilhante falange das
reputações contemporâneas, é por isso que, estando de fora, posso
como ninguém avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais
luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso também falar
livremente. E não é esta uma pequena superioridade neste tempo de
conveniências, de precauções, de reticências—ou, digamos a
cousa pelo seu nome, de hipocrisia e falsidade. Livre das
vaidades, das ambições, das misérias duma posição, que não
pretendo, posso falar nas misérias, nas ambições, nas vaidades
desse mundo tão estranho para mim, atravessando por meio delas e
saindo puro, limpo e inocente.
A este primeiro motivo, que é um
direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais grave e mais
obrigatório, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta
força desconhecida que nos leva muitas vezes, ainda contra a
vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o interesse, a erguer a
voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que acreditamos
a justiça. É ela que me manda falar. Não que a justiça e a
verdade se ofendessem com v. ex.ª ou com as suas apreciações.
Verdade e justiça estão tão altas, que não têm olhos com que
vejam as pequenas cousas e os pequenos homens das ínfimas
questiúnculas literárias dum ignorado canto de terra, a que ainda
se chama Portugal.
Não é isso o que as ofende. Mas as
ideias que estão por de trás dos homens; o mal profundo que as
cousas apenas miseráveis representam; uma grande doença moral
acusada por uma pequenez intelectual; as desgraças, tanto para
reflexões lamentosas, desta terra, reveladas pelas misérias, tão
merecedoras de desprezo, dos que cuidam dominá-la; isso é que aflige
excessivamente a razão e o sentimento, o que prende o olhar
ainda o mais desdenhoso a estas baças intrigas; isso é que
levanta esta questão do raso das personalidades para a elevar até à
altura duma questão de princípios, e que dá às ridículas
chufas, que entre si trocam uns tristes literatos, todo o valor duma
discussão de filosofia e de historia.
Sim, ex.mo sr. Eu não sei se v. ex.ª
tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque a inteligência
dos hábeis, dos prudentes, dos espertíssimos é muitas vezes
cega em lhe faltando uma cousa bem pequena, que se encontra nos
simples e nos humildes—a boa-fé.
À luz dela, porem, eu hei de sempre
ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo,
nas impensadas e infelizes palavras de v. ex.ª, dignas quando muito
dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria
ao incomodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar
essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral
e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de v. ex.ª
Porque é uma acção desonesta. O que
se ataca na escola de Coimbra (talvez mesmo v. ex.ª o ignore, porque
há malévolos inocentes e inconscientes), o que se ataca não é uma
opinião literária menos provada, uma concepção poética mais
atrevida, um estilo ou uma ideia. Isso é o pretexto, apenas. Mas
a guerra faz-se à
independência irreverente de escritores, que
entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos
mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A
guerra faz-se ao escândalo inaudito duma literatura desaforada, que
cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos
grãos-mestres oficiais. A guerra faz-se à impiedade destes hereges
das letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e
pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não
escreveu nas frontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem
entende pensar por si e ser só responsável por seus actos e
palavras...
Agora quem move estes ridículos
combates de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices;
é o espírito de rotina violentamente incomodado por mãos rudes e
inconvenientes; é a banalidade que quer dormir sossegada no seu
leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a forçam—nós
só lhe queremos puxar as orelhas!
Isto, resumido em poucas palavras, quer
dizer: combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do
negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral,
do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de
serem independentes e pensarem por suas cabeças. E
combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde às
vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez
moral e intelectual.
V. ex.ª, com a imparcialidade que
todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é
não só mal feita, mas também pequena e miseravelmente feita. Mas é
que a escola de Coimbra cometeu efectivamente alguma cousa pior de
que um crime - cometeu uma grande falta: quis inovar. Ora,
para as literaturas oficiais, para as reputações estabelecidas,
mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sofismas, do
que envenenar com o erro as fontes do espírito publico, do que
pensar mal, do que escrever pessimamente, pior do que isto é essa
falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar
e não de copiar. Por que? Porque todos os outros crimes eram contra
as ideias: haveria sempre um perdão para eles. Mas esta falta era
contra as pessoas: e essas tais são imperdoáveis. Inovar é
dizer aos profetas, aos reveladores encartados: «ha alguma cousa que
vós ignorais; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; ha
mundo além do círculo que se vê com os vossos óculos de teatro; há
mundo maior do que os vossos sistemas, mais profundo do que os vossos
folhetins; há universo um pouco mais extenso e mais agradável sobre
tudo do que os vossos livros e os vossos discursos.» Isto, sim,
que é intolerável! Isto, sim, que é infame e revoltante e ímpio e
subversivo! Contra isto, sim, às armas, ergamo-nos na nossa força,
mostremos o que somos e o que podemos... escrevamos três folhetins e
um prólogo!...
V. ex.ª fez-se chefe desta cruzada tão
desgraçada e tão mesquinha. Não posso senão dar-lhe os pêsames
por tão triste papel. Mas se eu, como homem, desprezo e esqueço,
como escritor é que não posso calar-me; porque atacar a
independência do pensamento, a liberdade dos espíritos, é não só
ofender o que há de mais santo nos indivíduos, mas é ainda
levantar mão roubadora contra o património sagrado da humanidade - o
futuro. - É secar as nascentes da fonte aonde as gerações futuras
têm de beber. É cortar a raiz da árvore a que os vindoiros
tinham de pedir sombra e sossego. E atrofiar as ideias e os
sentimentos das cabeças e dos corações que têm de vir.
O contrário disto tudo é que é a
bela, a imensa missão do escritor. É um sacerdócio, um oficio
público e religioso de guarda incorruptível das ideias, dos
sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras. Para isso toda a
altura, toda a nobreza interior são pouco ainda. Para isso toda a
independência de espírito, toda a despreocupação de vaidades,
toda a liberdade de jugos impostos, de mestres, de autoridades, nunca
será de mais. O mineiro quer os braços soltos para cavar
buscando o ouro entre as areias grossas. O piloto quer os olhos
desvendados para ler nos astros o caminho da não por entre as ondas
incertas. O sacerdote quer o coração limpo de paixões, de
interesses, para aconselhar, guiar, julgar, imparcial e justo. O
escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de
preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades,
incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas as
suas obras: só assim merecerá o lugar de censor entre os homens,
porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e
injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres, mas
elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente
estudo de si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê
e busca o bem, o belo, o verdadeiro.
Este é o escritor, o poeta, o
apóstolo. Se o obrigassem a respeitos convencionais, a terrores
supersticiosos diante de certos homens, a espantos cegos diante de
certas cousas; se o fizessem baixar a cabeça e as costas para entrar
a porta do panteão literário; ele, o pobre, ficaria sempre curvo e
submisso, humilde e sem força própria, servo de alheias ideias e
apostolo apenas de palavras decoradas e vazias de alma. Como se
havia ele pois erguer, entre seus irmãos, tão alto que seus olhos
fossem uns como faróis para todos os outros olhos, a sua fronte uma
como montanha de luz; tão alto que as palavras de sua boca caíssem
sobre as cabeças como uma chuva benéfica e fecundante? Seria,
depois das provas e das torturas, das genuflexões e das baixezas da
iniciação no grémio dos senhores, seria um aleijão e não
gigante, um aborto em vez de herói e, em vez de sobre exceder a todos
com a fronte, andaria sumido entre eles, visitado escassamente pelo
sol e pela luz. Ele, que não soubera procurar para si o seu caminho,
como poderia ele alumiar o dos outros? Ele, humilde, como ensinaria a
altivez e a dignidade? Respeitador de conveniências estéreis, como
daria o exemplo das revoltas fecundas? Sem alma, como a insuflaria
no peito dos tristes e humilhados? Sem vontade, como resistiria às
tiranias da opinião omnipotente, ao capricho dos grandes, às
ambições, às tentações?
As grandes, as belas, as boas coisas
só se fazem quando se é bom, belo e grande. Mas a condição da
grandeza, da beleza, da bondade, a primeira e indispensável condição,
não é o talento, nem a ciência, nem a experiência: é a elevação
moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma e a
dignidade do pensamento e do carácter. Nem aos mestres, aos que
a maioria boçal aponta como ilustres, nem à opinião, à crítica
sem ciência nem consciência das turbas, do maior número, deve pedir
conselhos e aprovação, mas só ao seu entendimento, à sua
meditação, às suas crenças. Nesta escola do trabalho, da
dignidade, das altas convicções, se formam os homens em cujos
peitos a humanidade encontra sempre um vasto lago onde farte a sede
de verdade, de consolações, de ensinos para a inteligência e
confortos para o coração.
No peito dos outros, dos que andam de
capela em capela na lida afanosa de incensar cada dia todos os ídolos, dos que fazem da glória uma Bastilha para aventureiros
levarem de assalto, e não púlpito aonde se suba com respeito e amor,
no peito desses não habita mais do que ambição, vaidade,
endurecimento e miséria. Esses lisonjeiam os grandes; e os grandes
dão-lhes a mão para que subam, e desprezam-nos depois. Lisonjeiam
as maiorias; e as maiorias inconstantes lançam-lhes no regaço um
pouco de ouro e algum aplauso de momento, e depois passam e esquecem.
Afagam todas as vaidades; e têm em cada vício humano um capital,
cujo juro dissipam em quanto vivos, porque essa moeda corrompida para
mais ninguém serve. Enfim, nos quinze ou vinte anos em que dão
que falar às gazetas, aos botequins, aos grémios, a todos os
vadios, a todos os fúteis, folgam, vivem alegres e esquecidos de tudo
quanto não seja a satisfação do que há no homem de mais pequeno—a
vaidade e o interesse.
Para os outros a obscuridade, e a
miséria muita vez - mas a estima dos melhores entre os homens pelo
espírito, e, o que excede tudo, a posse duma consciência superior a
quanto não seja a verdade, a justiça e a formosura. As ideias
serenas brilham-lhes na escuridão do isolamento e alumiam-lhes com
uma luz doce mas imensa toda a sua obscuridade. Dão-se a desbaratar o
mal dos outros homens, como muitos se dão a aumentar o seu bem
próprio. Vivem na região das bênçãos, escutando as palavras da boca
invisível, e com os ecos dessa voz celeste compõem os hinos de
esperança e de amor para a humanidade. Morrem; mas morrem
nobres e puros. Tudo isto porque foram independentes. Não
pertenceram a corrilhos; não elogiaram ninguém para que os
elogiassem a eles; não incensaram os fetiches dos ridículos pagodes
literários. Foram honrados. Foram simples.
A estes tais chamo eu poetas. Porque
nos ensinam o bem. Porque são originais e dizem sempre alguma cousa
nova à nossa curiosidade de saber. Porque dão com a elevação das
vidas confirmação à sublimidade dos escritos. Porque são tão
poéticos como os seus poemas. Porque vão adiante abrindo à luz e ao
amor novos horizontes. Porque não conhecem ambições nem orgulhos.
Porque têm a cabeça do génio e o coração da inocência. É por
isso tudo que lhes chamo poetas.
Os outros adoram a palavra, que ilude o
vulgo, e desprezam a ideia, que custa muito e nada luz. São apóstolos do dicionário, e têm por evangelho um tratado de
metrificação. Fazem da poesia o instrumento de suas vaidades.
Pregam o bem por uso e convenção literária, porque se presta à
declamação poética, mas praticam o egoísmo por índole e por
vontade. Fazem-nos descrer da grandeza humana, porque são uns
sofismas que nos mostram a pequenez e a má fé aonde as aparências
são todas de nobreza. Preferem imitar a inventar; e a imitar
preferem ainda traduzir. Repetem o que está dito há mil anos, e
fazem-nos duvidar se o espírito humano será uma estéril e constante
banalidade. São os enfeitadores das ninharias luzidias. Põem os
nadas em pé para parecerem alguma cousa. São os ídolos literários
da multidão que mal sabe ler. São os filósofos queridos da turba
que nunca pensou. São, enfim, génios no Brasil como v. ex.ª
Estes tais escusam da nobreza e da
dignidade: têm a habilidade e a finura. Para a obra que fazem, isso
lhes basta. Mas a obra, ex.mo sr., é que é uma obra vulgar: bem
feita para agradar ao ouvido, mas estéril para o espírito. Soa bem,
mas não ensina nem eleva. Ora a humanidade precisa que a levantem e
que a doutrinem. São, pois, necessárias outras e melhores obras.
Mas, se já alguma hora da história
impôs aos que falam alto entre os povos obrigações de seriedade, de
profunda abnegação, de sacrifício do eu às tristezas e misérias
da humanidade, de trabalho e silencioso pensamento; se alguma hora
lhes mandou serem graves, puros, crentes, é certamente esta do dia
de hoje, da idade de transformação dolorosa, de cepticismo, de
abaixamento moral, de descrença, que é o nosso século. Refundem-se
as crenças antigas. Geram-se com esforço novas ideias.
Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado
abalam-se. O futuro não aparece ainda. E, entre estas duvidas, estes
abalos, estas incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes,
menos ambiciosas de bem, menos dispostas ao sacrifício e às
abnegações da consciência. Há toda uma humanidade em dissolução,
de que é preciso extrair uma humanidade viva, sã, crente e formosa.
Para este grande trabalho é que se
querem os grandes homens. Sairão esses heróis das academias
literárias? das arcádias? das sinecuras opulentas? Dos corrilhos do
elogio-mútuo? Sairão as águias das capoeiras? Saltarão as ideias
salvadoras do choque das maledicências e dos doestos? Nascerão as
dedicações do casamento das vaidades? Darão a grande novidade os
ledores de Horácio? Inventarão as novas formulas os que decoram as
frases rabugentas dos livros bolorentos que chamam clássicos? E os
Sócrates e os Epictetos descerão para as suas missões das cadeiras
almofadadas, das rendosas conezias literárias, das prebendas, das
explorações?
Fora dessa atmosfera corrupta, e,
quando não corrupta, pelo menos esterilizadora, é mais provável
encontrarem-se as condições que precisam para viver e crescer os
homens úteis e necessários às transformações do espírito humano.
Não é traduzindo os velhos poetas
sensualistas da Grécia e de Roma; requentando fábulas insonsas diluídas em milhares de versos sem-sabores; não é com idílios grotescos sem expressão nem originalidade, com
alusões mitológicas que já faziam bocejar nossos avós; com frases e sentimentos postiços de académico e retórico; com visualidades infantis e puerilidades vãs;
com prosas imitadas das algaravias místicas de frades
estonteados;com banalidades,
com ninharias;
não é, sobre tudo, lisonjeando o mau gosto e as péssimas ideias das
maiorias, indo atrás delas, tomando por guia a ignorância e a
vulgaridade, que se hão de produzir as ideias, as ciências, as
crenças, os sentimentos de que a humanidade contemporânea precisa
para se reformar como uma fogueira a que a lenha vai faltando.
Mas fora de tudo isto, destas
necessidades tradicionais, é o nevoeiro, é o metafisico, é o
inatingível - diz v. ex.ª
Todavia, quem pensa e sabe hoje na
Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é
Londres, é Berlim. Não é a nossa divertida Academia das Ciências,
que revolve, decompõe, classifica e explica o mundo dos factos e das
ideias. É o Instituto de França, é a Academia cientifica de
Berlim, são as escolas de filosofia, de historia, de matemática, de física, de biologia, de todas as ciências e de todas as artes, em
França, em Inglaterra, em Alemanha. Pois bem: a Alemanha, a
Inglaterra, a França, comprazem-se no nevoeiro, são
incompreensíveis e ridículas, são metafisicas também. As três
grandes nações pensantes são risíveis diante da critica fradesca
do sr. Castilho. Os grandes génios modernos são grotescos e
desprezíveis aos olhos baços do banal metrificador português.
O grande espírito filosófico do nosso
tempo, a grande criação original, imensa da nossa idade, não passa
de confusão e embróglio desprezível para o professor de ninharias,
que cuida que se fustiga Hegel, Stuart Mil, Augusto Comte, Herder,
Wolf, Vico, Michelet, Proudhon, Litré, Feuerbach, Creuzer, Strauss,
Taine, Renan, Buchner, Quinet, a filosofia alemã, a crítica francesa, o positivismo, o naturalismo, a história, a metafísica, as
imensas criações da alma moderna, o espírito mesmo da nossa
civilização.... que se fustiga tudo isto e se ridiculariza e se
derruba com a mesma sem-cerimónia com que ele dá palmatoadas nos
seus meninos de 30, 40 e 50 anos, de Lisboa, do Grémio, da Revista
Contemporânea!
Quem seguir tudo isto vai com o
pensamento moderno; com as tendências da ciência; com os resultados
de trinta anos de critica; com a nova escola histórica; com a
renovação filosófica; com os pensadores; com os sábios; com os
génios; vai com a França; vai com a Alemanha—mas que importa? não
vai com o sr. Castilho! não vai com o novo método repentista! não
vai com o moderno folhetim português!
O metrificador das Cartas d'Echo diz ao
pensador da Filosofia da natureza - tira-te do meu sol! - O
mitólogo do dicionário da fábula diz ao profundo descobridor da
Simbólica - és um ignorante! - A retórica portuguesa diz à
ciência, ao espírito moderno - cala-te daí, papelão!
É que tudo isto não passa de ideias.
Ora há uma cousa que o sr. Castilho tomou à sua conta, que não
deixa em paz, que nos prometeu destruir... é a metafísica... é
o ideal...
O ideal! palavra mística; de
gótica configuração; quase impalpável; espiritualista;
impopular; que o artigo de fundo repele; que desacreditaria o
deputado do centro que a empregasse; que Victor Hugo adora e de que
se riem os localistas; que não chega para um folhetim e que
enche o maior poema; imensa aos olhos dos que a vêem com os olhos
fechados e que nunca viram os que os trazem sempre arregalados;
palavra péssima para uma rima de madrigal; palavra que faz desmaiar
as beatas; grotesca num botequim; disforme numa sala; medonha numa
assembleia de literatos horacianos... decididamente v. ex.ª devia
odiar esta desgraçada palavra!
O ideal quer dizer isto: desprezo das
vaidades; amor desinteressado da verdade; preocupação exclusiva do
grande e do bom; desdém do fútil, do convencional; boa fé;
desinteresse; grandeza de alma; simplicidade; nobreza; soberano bom
gosto e soberaníssimo bom senso... tudo isto quer dizer esta palavra
de cinco letras - ideal.
Por todos estes motivos ela é
sobremaneira odiável; ela é desprezível por todas estas causas; e
v. ex.ª tem toda a razão, chacoteando, bigodeando, pulverizando
esse miserável ideal.
Ele, com efeito, nada do que ele é ou
do que vem dele, serve ou pode servir jamais para alguma cousa do que
se procura na vida, do que nela procuram os homens graves, os homens sérios, os homens de senso e gosto como v. ex.ª, que nada querem com
ideais ou com ideias, mas só com realidades e com tactos; para
captar a admiração das turbas; o aplauso das multidões; para
formar um grande nome composto de pequeninas letras; para merecer os
encómios dos gramaticões e o assombro dos burgueses; para ser das
academias; das arcádias; comendador; citado pelos brasileiros
retirados do comercio; decorado pelos directores de colégio; o Tirteu
dos merceeiro e um Homero constitucional.
Para isto é que não serve o ideal. E
é por isso, pela sua absurda inutilidade, que v. ex.ª o apeia com
tanta sem cerimonia do pedestal aonde, para o adorarem, o têm posto
os loucos que nunca foram nada neste mundo, nem das academias nem do
conselho de instrução pública, um Cristo, um Sócrates, um
Homero...
Por isso é que v. ex.ª faz muito bem
em o destruir, a esse pobre diabo do ideal; de o pôr fora de casa a
bofetões; de o banir das suas obras, que não haver por lá nem a
mais leve sombra dele. Agradam a todos assim. Os versos de v.
ex.ª não têm ideal—mas começam por letra pequena. As suas
criticas não têm ideias—mas têm palavras quantas bastem para um
dicionário de sinónimos. Os seus poemas líricos não são
metafísicos, não precisam duma excessiva atenção, de esforços de
pensamento para se compreenderem—e têm a vantagem de não deixarem
ver nem um só ideal. Nas suas obras todas há uma falta tão
completa dessas incompreensibilidades, que deve pôr muito à sua
vontade os leitores que v. ex.ª têm no Brasil. V. ex.ª diz tudo
quanto se pode dizer sem ideias - boa, excelente receita para não
cair nas nebulosidades do ideal. Os seus escritos são óptimos
escritos—menos as ideias: e é v. ex.ª um grande homem - menos o
ideal.
Dante, que era um bárbaro, e
Shakespeare, que era um selvagem, é que rechearam as suas obras de
ideal. Victor Hugo também cai muito nesse defeito. V. ex.ª é que
o tem sempre evitado cautelosamente, e por isso não é um bárbaro
como Dante, nem selvagem como Shakespeare, nem um mau poeta como
Victor Hugo. Não é Dante, nem Shakespeare, nem Hugo—mas é amigo
do sr. Viale, que fala latim como Mevio e Bavio.
Mas, ex.mo sr., será possível viver
sem ideias? Esta é que é a grande questão. Em Lisboa, no Curso de Letras, na Academia, no Conselho Superior, no Grémio, nos saraus de
v. ex.ª, dizem-me que sim, e que é mesmo uma condição para viver
bem. Fora de Lisboa, isto é, no resto do mundo, em Paris, Berlim,
Londres, Turim, Goetingue, New-York, Boston, países mais
desfavorecidos da sorte, na velha Grécia também e mesmo na Roma
antiga, é que nunca puderam passar sem essas magnificas
inutilidades. Elas o muito que têm feito é servirem de
entretenimento aos visionários como Christo (um metafisico bem
nebuloso), como Sócrates, como Çakia-Mouni, como Mahomet, como Confúcio e outros sujeitos de nenhuma consideração social, que se
entretinham fazendo sistemas com elas, e com os sistemas religiões,
e com as religiões povos, e com os povos civilizações, e com as civilizações códigos, leis, sentimentos, amores, paixões, crenças,
a alma enfim da humanidade, cousa que se não vê nem rende, e é
também inútil e incompreensível. Eis aí o mais a que as ideias
têm chegado. Creio que pouco mais ou nada mais têm feito do que
isto.
Em Lisboa é que nem isto. Não sei se
tem havido quem tente introduzi-las nessa capital. V. ex.ª é que eu
tenho a certeza de que não era capaz dessa má acção. Por isso
Lisboa não cai como caíram Atenas e Roma, por causa das suas
ideias, e Jerusalém e outras cidades infelizes, cujos poetas tiveram
um amor demasiado ao ideal... Uma só cousa ficou delas: uma memoria
grande, honrosa, nobilíssima. Caíram, mas deram ao mundo um
espectáculo raro—o espírito e a consciência humana triunfando da matéria e brilhando no meio das ruínas como a chama que se alimenta
da destruição da lenha donde sai e que a gerou. Eu não sei se v. ex.ª acha isto sensato e de bom gosto. Cuido que não. O que eu sei somente é que isto é sublime......................
Paro aqui, ex.mo sr. Muito tinha eu
ainda que dizer: mas temo, no ardor do discurso, faltar ao respeito a
v. ex.ª, aos seus cabelos brancos. Cuido mesmo que já me escapou uma
ou outra frase não tão reverente e tão lisonjeira como eu
desejara. Mas é que realmente não sei como hei de dizer, sem
parecer ensinar, certas cousas elementares a um homem de sessenta
anos; dizê-las eu com os meus vinte e cinco! V. ex.ª aturou-me em
tempo no seu colégio do Pórtico, tinha eu ainda dez anos, e confesso
que devo à sua muita paciência o pouco francês que ainda hoje sei.
Lembra-se, pois, da minha docilidade e adivinha quanto eu desejaria
agora pode-lo seguir humildemente nos seus preceitos e nos seus
exemplos, em poesia e filosofia como outrora em gramática francesa,
na compreensão das verdades eternas como em outro tempo no
entendimento das fábulas de La Fontaine. Vejo, porém, com desgosto
que temos muitas vezes de renegar aos vinte e cinco anos do culto das
autoridades dos dez; e que saber explicar bem Telémaco a crianças
não é precisamente quanto basta para dar o direito de ensinar a
homens o que sejam razão e gosto. Concluo daqui que a idade não a
fazem os cabelos brancos, mas a madureza das ideias, o tino e a
seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco anos têm-me as
verduras de v. ex.ª convencido valerem pelo menos os seus
sessenta. Posso pois falar sem desacato. Levanto-me quando os cabelos
brancos de v. ex.ª passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que
está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que saem dele,
confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda
estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade
numa criança. V. ex.ª precisa menos cinquenta anos de idade, ou
então mais cinquenta de reflexão.
É por estes motivos todos que lamento
do fundo da alma não me poder confessar, como desejava, de v. ex.ª
Nem admirador nem respeitador
Antero do Quental.
Coimbra 2 de Novembro de 1865.
Notas:
(1) Carta ao editor António Maria Pereira, inserida no Poema
da Mocidade, de Pinheiro
Chagas, Lisboa,1865.
(2) Teófilo Braga e Vieira de Castro.
2 comentários:
Prezado Pedro Qual terá sido a participação de João de Deus na questão Coimbrã?
João de Deus já se notabilizara enquanto estudante em Coimbra, por uma renovação da lírica amorosa e por um pendor satírico acutilante, e pertencia sem dúvida à escola Coimbrã, embora doze anos mais velho que Antero, sendo porém grandes amigos. Pouco antes da eclosão da Questão, quando dirigiu o jornal "Bejense" de 1862 a 1864, escreveu um extenso artigo a 7.XI.1863 que foi (embora sem respostas directas) como que um prelúdio da mesma, já que punha em causa fundamentadamente Feliciano Castilho pelos elogios exagerados (em 11 cartas publicadas no "Constitucional", do Rio de Janeiro, e depois na "Gazeta de Portugal") ao poema "D. Jaime", de Tomás Ribeiro, pelas contradições nas opiniões ora elogiadoras ora críticas a Camões, aos Lusíadas e á oitava rima,e pela falta de visão abrangente e universal que denotava, concluindo com o alvitre que a estátua que Castilho propunha que os portugueses levantassem a Tomás Ribeiro fosse de gesso.
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