terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A espiritualidade d' "A Casa do Coração", de Friedrich Rücker, na versão de Antero de Quental, na revista "Crítica Amena". E as sincronias com Carlos Cirilo Machado nesse ano de 1886.

                                                     
 A Crítica Amena, Revista Literária Contemporânea, saiu à luz em Lisboa em Julho de 1886, sendo o seu proprietário, director e apresentador Augusto Forjaz, e mostrando  uma extensa lista de notáveis colaboradores no centro da capa, onde se destacavam Camilo, Bulhão Pato, Jaime de Magalhães de Lima, Júlio César Machado, Alfredo Pimentel, Luís Palmeirim, Guerra Junqueiro, José Silvestre Ribeiro, Macedo Papança, D. António da Costa e Alfredo Gallis, este desferindo uma crítica virulenta a um estudante de Coimbra, amigo de Antero de Quental,  Carlos Cirilo Machado (1865-1919), que chegará a altos postos diplomáticos (e mesmo a 2º Visconde de Santo Tirso), e ao qual, em Dezembro de 1881, a 15,  Antero de Quental escrevera bem instrutiva e elogiosa: «pela minha parte, de entre os rapazes da última geração, está o Carlos no número limitado daqueles que eu estimo e de quem espero alguma coisa sã. Concebo que [eu] lhe tenha feito alguma falta: as nossas conversas não eram vãs, e o Carlos não é daqueles, que, por terem talento, se cuidam dispensados de ouvir e atender»...
  Que sincronias estas no Verão de 1886: ao mesmo tempo que Carlos Cirilo Machado, jovem de 21 anos, recebia por um lado de Alfredo Gallis (1859-1910, autor que se especializara na literatura sexual), na revista Crítica Amena, uma descasca fortíssima à sua ousada A Velhice do Padre Eterno pelo Sr. Guerra Junqueiro (ensaio crítico), 1886, na qual até a Victor Hugo fazia reparos, e que obrigara logo em Setembro de 1886 Antero de Quental a escrever a Carlos Cirilo, a propósito de tal crítica "acre e visivelmente hostil" e portanto não "persuasiva": «Meu caro. Apesar de V. bater tão desalmadamente num que eu sempre amei muito, não lhe posso encobrir que na maioria dos casos bate certo», destacando que «a Velhice é o sintoma duma deplorável mania de profeta, que ameaça perdê-lo como perdeu o Hugo», antevendo ainda que Carlos poderia ser mal interpretado, e lembrando-lhe que o crítico deve ser um juiz e não um adversário, Carlos Cirilo recebia por outro lado também a última das três cartas de Antero de Quental preservadas, a qual, além de o  apoiar pelo diálogo e afirmação da unidade, é de suma importância.
 Na realidade, nela, Antero de Quental, respondendo às perguntas de Carlos Cirilo Machado sobre o magnetismo, refere ter conhecido  o padre Chaves e o deputado Sárrea Prado, algarvios (do primeiro nada sabemos e do segundo conhecemos estar activo no meio ocultista e espiritualista em 1928), dados «às ciências ocultas» e afirma, numa continuidade de ideias de Karl Eduard von Hartmann, que a «unidade de consciência», «expressão da unidade fundamental das coisas, existe latente ordinariamente, e só se manifesta obscuramente nos factos do instinto. O magnetismo será, segundo esta ordem de ideias, o momento em que essa unidade de consciência de latente se torna patente». 
Anote-se que Edward von Hartmann, mais conhecido como filósofo do inconsciente e  que Antero de Quental lera, chamara à comunicação no plano magnético cósmico ou transcendental, uma comunicação telefónica no Absoluto, como assinala Hans Driesch na sua Psychical Research. The Science of the Super-Normal, 1923, legível online, e na qual faz uma tentativa metodológica de discernir o que pode ser verdadeiro e falso na investigação psíquica, ao tempo de Antero de Quental sendo tal  comunicação denominada e estudada mais como magnetismo, sonambulismo, transferência de consciência, com associações por vezes à acção de espíritos, como os adeptos do espiritismo investigavam, embora frequentemente sob as mistificações dos médiuns...
Assim nesse criativo ano de 1886 Antero de Quental estava recolhido na sua tebaida ou eremitério ou ashram de Vila de Conde e escrevia cartas importantes que tanto clarificavam e apoiavam filosófica e espiritualmente como assinalavam a sua crise e as suas maleitas, compreendendo-se que o seu nome não estivesse sequer assinalado nos colaboradores por  não ser amigo do director da revista lisboeta, e, portanto, por não se ter disponibilizado para ser colaborador; e de facto na sua  ampla correspondência, bem compilada e anotada por Ana Maria Almeida Martins,  não encontramos referências a Augusto Forjaz.
António de Azevedo Castelo Branco
Numa carta de Vila do Conde, num  Domingo de Maio desse ano de 1886,  a um dos seus mais queridos condiscípulos, António de Azevedo Castelo Branco, alguém a quem Antero de Quental podia entregar-se e confessar aspectos que o preocupavam, falava-lhe da sua pouca inserção e interacção na sociedade: «Eu por aqui estou, para o meu humor e gosto, bem, no meio do suave austero desta região, que ainda não é do século 19. Entretanto, pesa-me o não servir em nada à comunidade, pois nem espectador sou da triste comédia do mundo contemporâneo. Por dever, medito em sair deste encantamento e misturar-me aos homens para fazer alguma coisa que lhes preste. Mas o quê? É o que ainda não descobri. Veremos.»
Estava porém na forja a edição dos seus Sonetos completos, a qual sairia em Agosto de 1886 e que, como diria em Setembro, com ela já nascida,  em carta ao seu tradutor italiano e amigo Tommazo Cannizzaro, valerá como um documento psicológico, «como "as memórias de uma consciência" neste nosso período tão tormentoso e confuso» constituindo sem dúvida uma notável contribuição para a poesia, a cultura e a cosmovisão portuguesa.
Nessa carta referia ainda «o estado deplorável dos meus nervos, ou como agora dizem, a nevrose, que durante larguíssimos períodos, deixando-me intacta a inteligência, me entibia a vontade e me impede de fazer as coisas mais simples justamente quando desejo fazê-las,» nomeadamente ou no caso  responder-lhe e enviar-lhe os Sonetos mais cedo...
Voltando ao início deste nosso texto, a revista literária lisboeta que nesse mesmo ano de 1886 surgia com o pacato título de Crítica Amena e que não mencionava na capa Antero de Quental nos colaboradores, se a abrirmos e lermos o frontispício, encontramos todavia a menção seguinte:  Casa do Coração, poesia de Antero de Quental. 
E na verdade, nas páginas 33 e 34, encontramos uma breve mas significativa apresentação à transcrição de tal poesia que, embora sendo atribuída a Antero, e tenha ganho alguma fama, embora com discrepâncias nas transcrições, era apenas uma tradução sua do alemão Friedrich Rücker (1788-1866), um vigoroso poeta e sonetista (muito musicado ao longo dos anos, nomeadamente por Gustav Mahler) e, significativamente, um notável orientalista que publicou várias traduções árabes (nomeadamente do Corão) e indianas e mesmo uma obra em seis volumes  intitulada Die Weisheit des Brahmanen, A Sabedoria dos Brâmanes. Não há, porém, obras dele, a não ser a antologia Deutsche Lyrick, de 1879, contendo este poema, na livraria de Antero de Quental, hoje em Ponta Delgada, na  Biblioteca Pública.

     A CASA DO CORAÇÃO 

«O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver,
Num a Dor, noutro o Prazer. 

Quando o Prazer, no seu quarto,
Acorda cheio de ardor,
No seu adormece a Dor.

Cuidado, [Mais baixo], Prazer, Cautela!
Canta [Fala] e ri mais devagar,
Não vá a Dor acordar!»


É uma poesia simples que embora possa ser vista como timorata face à taça do prazer que a vida oferece naturalmente e da qual todos devemos beber, deve ser mais entendida numa linha oriental de temperança, de equilíbrio vibratório, de conhecimento da lei do Karma: - não exageres no prazer pois poderás despertar a reacção ou compensação equilibrante da dor. 
Talvez o mais original do poema do orientalista
Friedrich Rücker seja localizar no coração esses dois níveis, apresentados mesmo como quartos onde a alma se pode instalar, viver ou desenvolver-se mais, e poderemos lembrar-nos também da tipificada dualidade (que igualmente deverá ser complementar e não oposta) do riso e do choro de Demócrito e de Heráclito, glosada pelo padre António Vieira num sermão e outros, ou mesmo as sete mansões ou níveis da alma ou consciência de S. Teresa de Ávila e de vários místicos, que se everão deixar para atrás até se chegar ao centro íntimo de si mesmo e por fim à ligação com a Divindade. 
Anote-se que a linha de transmissão ou divulgação pública desta poesia A Casa do Coração, iniciada quando foi escrita num álbum da filha de João de Deus (hoje na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada), começa no Brasil, onde é impressa pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, e desagua de novo em Lisboa, na Crítica Amena, e finalmente é incluída por Teófilo Braga nos Raios de Extincta Luz, obra publicada rápida e oportunisticamente por este em 1892, um ano após a partida ou morte de Antero, e que certamente Antero não apreciou (do além...) por várias razões.
 Teófilo Braga apresenta-a como imitada do alemão, menciona a proveniência do álbum, e transcreve-a com duas variantes (a principal "Não vás a Dor acordar") em relação à versão dada à luz  na Crítica Amena, na qual o verso final  surge como: «Não vá a Dor acordar»,  certamente a mais acertada, como a podemos ver escrita numa carta para Joaquim Araújo, de 1881, em que o trata Meu caro Pequeno, então numa versão com um pequena variação ainda assim significativa, de intimidade, de interioridade, ao estar "Mais baixo", em vez do "Cuidado" que se tornará a versão pública e aparentemente final...
Mas qual é então a introdução ou nota contextualizante valiosa de Augusto Forjaz, que no fim da revista de oitenta páginas defende e elogia ainda Guerra Junqueiro e Alfredo Gallis? 
Ei-la:


 «Pertence à Gazeta de Noticias, do Rio de Janeiro, a glória de ter publicado, inéditos, os seguintes versos escritos num álbum pelo anacoreta de Coimbra, uma das inteligências mais notáveis da literatura portuguesa. 
Antero de Quental  é o admirável burilador das Odes Modernas e a vítima de uma doença que o aniquila, apertando-lhe a existência num círculo de ferro que lentamente se estreita. 
Mas, através aquele martírio lento, é soberba, é admirável, é extraordinária, a luz que fulgura de um cérebro cultivadíssimo, como que um clarão eterno acompanhando um sol moribundo.
Os versos que seguem, quase completamente desconhecidos em Portugal, são nove brilhantes límpidos, fulgurando na treva da doença do notável poeta açoriano»... 
O que poderemos acrescentar a este aparentemente belo tributo à paixão-doença e génio de Antero de Quental, senão apenas realçar primeiro a  expressão "anacoreta", que embora com laivos algo exagerados aponta o eremita, o génio, passada a fase inicial dos amores e lutas juvenis em que tanto se destacou, e agora longe da dispersão e superficialidade mundana, em busca do íntimo, do sagrado, da verdade, e solitário ou com um ou outro companheiro, como ele se reconheceu ou desejou, nomeadamente falando de uma Ordem dos Mateiros, recolhidos nas matas, apesar do seu forte amor e ardor revolucionário sendo ingénito, permanecer de algum modo  perene, tal como vemos mesmo um ano antes de desencarnar vir ao de cima no episódio da repulsa ao imperialismo inglês do Ultimatum e na aceitação da presidência da Liga Patriótica do Norte. 
Em segundo, a descrição da doença nervosa como um círculo de ferro que lentamente se estreita num martírio lento sobre tal inteligência notável, e em que há quase como que uma antevisão do suicídio cinco anos depois, o qual, por exemplo, entre outros dessa época, Manuel Laranjeira também cometerá, mas que antes em alguns artigos Antero criticara pelo que tal significava de ausência de ambientes que acalentassem as almas mais sensíveis.
Todavia, mesmo na treva da doença (talvez exagerada por Forjaz) e da fraca inserção social, ressalta ou é pressentida por Augusto Forjaz e outros a extraordinária a luz que fulgura de uma alma (e não um cérebro apenas...) plena de cultura e idealismo, sensibilidade e bondade, luz ou clarão divino que continuará para além do poente do horizonte terreno...
Possam a luz e o amor Divinos brilharem sempre no ser anímico e espiritual de Antero do Quental e em nós...

Sem comentários: