segunda-feira, 28 de julho de 2025

Entrevista a Daria Dugina Platonova, sobre o femininismo na Rússia e no Ocidente e seus contextos e linhas de força, por Tim Kirby. Maio de 2021. Tradução da versão francesa.

 Apresentamos um testemunho da jovem jornalista e filósofa mártir Daria Dugina (1992-2022), sobre a questão histórica do feminismo na Rússia e no Ocidente, sob a visão religiosa ou a laica, e como a polaridade existe no Universo e no ser humano não para ser  causa de competição invejosa ou opressão das potencialidades de cada um dos géneros mas sim fonte de amor,  fecundidade, criatividade e harmonia cósmico-divina, e para o desabrochar  de uma multipolaridade mundial antropológica, económica, cultural e espiritual  renovadora da Humanidade.  Nos seus livros (e em alguns artigos deste blogue) encontrará bastante mais do seu valioso pensamento,  intuições e linhas de força da Tradição Perene...
Tim Kirby [1]: A "bola" está realmente nas mãos dos russos, para nos mostrarem como será a família, como serão as relações entre homens e mulheres no século XXI... A Rússia vai aproveitar essa oportunidade ou simplesmente desperdiçá-la? Ora bem, vamos ver.... Mas para já o que podemos fazer é ouvir Daria Dugina Platonova, que é uma personalidade do feminismo Ortodoxo. Ela vai-nos falar sobre a verdadeira natureza do feminismo na Rússia. Senhora Platonova, de um modo geral, quais são as principais diferenças entre o feminismo na Rússia e no Ocidente?
Daria Platonova Dugina: Vejo  diferenças enormes, porque tudo depende do contexto. No Ocidente, há um processo de secularização, e  a religião está muito afastada do Estado, e portanto os problemas do feminismo não estão de forma alguma [em  geral, pois há países bastantes mais católicos]  ligados à problemática religiosa.

Tim Kirby: É importante saber que a Rússia não pratica a separação entre Igreja e Estado, mas sim a simbiose entre Igreja e Estado, onde as entidades permanecem separadas, mas trabalham muito frequentemente juntas — essa é uma nuance importante e uma grande diferença entre a Rússia e, digamos, os Estados Unidos da América. 
Daria Platonova: Na Rússia, assistimos a um fenómeno muito interessante onde o contexto ortodoxo influencia de certa forma o feminismo. Isso significa que todos os temas que são descritos de maneira geral no feminismo ocidental, como a luta pela igualdade e a luta pelos direitos, têm um outro grau na Rússia, porque a Rússia é mais tradicional e a influência da religião ortodoxa é forte nela. Estamos, portanto, diante de um fenómeno muito interessante no feminismo russo, que surgiu com Tatiana Goritcheva, e que se chama "feminismo cristão".
Tatiana Goritcheva, nasce em 1947
Tim Kirby: Tatiana Goritcheva converteu-se ao Cristianismo  Ortodoxo aos 26 anos, no auge da Guerra Fria e do comunismo na Rússia. Esteve em seguida na origem da ideia do feminismo ortodoxo e foi obrigada a sobreviver como dissidente no Ocidente nos anos 1980. Quando a oportunidade de retornar ao país surgiu nos anos 1990, ela voltou e ainda está ainda hoje cá, embora infelizmente, hajam muito poucos escritos sobre ela em inglês, como é sempre o caso com todas as coisas boas que vêm da Rússia.
Daria Platonova : Penso que isto é um caso merecedor de atenção. É muito interessante falar sobre isto no Ocidente, pois ninguém entende como é que a religião, que, segundo o feminismo ocidental, é um meio de instalar a dominação do homem sobre as mulheres, possa estar ligada ao feminismo, como é o caso aqui na Rússia.
Tim Kirby: Sim, é interessante, pois no Ocidente parece quase natural que o feminismo e o cristianismo estejam sempre opostos. Mas será que é realmente assim? Poderão talvez trabalhar juntos e encontrar um terreno comum?
Daria Platonova: Na verdade, a própria Tatiana Goritcheva observa que, no cristianismo, não há uma relação hierárquica entre a mulher e o homem, mas um diálogo. Ela cita a Bíblia e vê na Virgem Maria o verdadeiro protótipo da mulher, e afirma que não há hierarquia entre ela e Cristo. Ela o deu à luz, ele é seu filho. Não há desigualdade, há um equilíbrio. Existem dois mundos: o mundo da mulher e o mundo do homem. Em seguida, Tatiana Goritcheva faz uma análise das biografias de mulheres santas, destacando que muitas delas superaram uma grande guerra existencial e que esta é realmente similar ao caminho assumido e superado pelos homens santos. Ela afirma que o sofrimento das mulheres desempenha um papel particular na ortodoxia cristã e acredita que nela não pode haver um único mundo, o do homem com a mulher como uma redução desse mundo, mas dois mundos.
Tim Kirby: E aqui está o ponto-chave. Quando a sociedade ocidental passou da monarquia ao liberalismo, quem foram os primeiros a obter seus direitos? Os proprietários de terras, brancos! Eles eram os actores políticos e todo o resto do mundo era um não-actor, você sabe, um pouco como os menores que estão sob tutela hoje, ou, pior, os escravos. Mas com o passar do tempo, outros tipos de homens, outras etnias e os que não eram proprietários foram de certa forma admitidos na categoria dos homens actores políticos. O interessante que aconteceu foi que as mulheres quiseram ser levadas em conta pela lei, pela constituição, mas em vez de terem uma entidade distinta, foram empurradas para a categoria dos homens. O que é interessante é que, quando as mulheres conquistaram seus direitos, elas não os obtiveram passando do status de não-entidade para o de entidade feminina distinta dos homens e de valor igual, mas elas essencialmente se tornaram homens. É provavelmente aí que o feminismo tomou um rumo muito errado e é por isso que há tanto desejo entre as horríveis feministas de hoje de substituir os homens, de tomar o lugar dos homens ou simplesmente de se tornar homens. Considera isso pertinente?
                             
                                            Simone de Beauvoir (1908-1986)
Daria Platonova: Si
mone de Beauvoir diz que a mulher é outra, uma outra, ela é a figura de uma outra e essa outra é criada pelo mundo do homem, pelo que então as mulheres devem fazer uma revolução contra o mundo do homem. Simone de Beauvoir é a segunda onda do feminismo na história. Tatiana Goritcheva, por sua vez, observa que é fantástico que a mulher seja uma outra e que essa outra não tenha sido criada pelos homens, mas por Deus. E aí, ela observa que essa outra tem um outro mundo e não há nenhuma possibilidade de hierarquização entre o mundo dos homens e o das mulheres, pois esses mundos são diferentes. Aqui, o que Tatiana Goritcheva diz baseia-se na religião cristã: quando vão a Deus, o homem e a mulher são iguais. Mas eles não são iguais quando uma mulher tem os mesmos direitos que um homem, e um homem não é igual a uma mulher e não tem os mesmos direitos que uma mulher. Eles pertencem a dois mundos que não se cruzam, a dois mundos separados.
                                                       
Tim Kirby: É irónico constatar que o facto de homens e mulheres sejam de valor igual, mas de naturezas completamente diferentes, seja uma versão demasiado radical  do feminismo para a sociedade ocidental de hoje.
Daria Platonova: Esta ideia existe não apenas no feminismo cristão, mas também no feminismo não ligado à religião, e está amplamente presente no Ocidente.
Mas eis o ponto principal: o mundo das mulheres não tem nada em comum com o dos homens. Eles são diferentes. É muito paradoxal, pois a ideia é bastante evidente: nós somos realmente diferentes, mesmo ao nível da consciência, da psicologia ou da aparência física somos diferentes. Mas o problema é que o feminismo liberal, o feminismo que domina o Ocidente, se concentra na igualdade entre mulheres e homens, considerando que a igualdade real entre mulher e homem será atingida quando eles tiverem a mesma aparência psicológica e física, tal como a figura do andrógino.

Tim Kirby: A tendência actual para a androginia, forçando os homens a serem um pouco insípidos e passivos ao mesmo tempo que  elogia as mulheres que são dominantes fortes, realmente mergulhou a sociedade ocidental na confusão. É como se todos nós fôssemos peões quadradas inseridos à força em buracos redondos. Porque deveremos nós fazer isso e porque é que tal não acontece na Rússia, que está aberta às grandes tendências cool  [ou aparentemente certinhas, descontraídas] dos filmes de Hollywood? Porque é que a Rússia tem uma espécie de imunidade estranha?
 Daria Platonova: Bem, para a Rússia, é um caso muito interessante, porque quando olhamos como o feminismo se desenvolveu no mundo, vemos que na Rússia o voto das mulheres foi aceito logo em 1906, ou seja, no início do século XX, enquanto na França, isso só ocorreu em 1944. É uma situação incrível e isso significa que já vivemos no mundo feminista e que agora estamos passando para a nova estratégia desse feminismo cristão, o feminismo ortodoxo. Quanto à Rússia de hoje, a Rússia contemporânea, eu acho que ainda tentamos copiar o Ocidente. Nós ainda tentamos ser liberais como o Ocidente, mesmo que na geopolítica vejamos o desenvolvimento do início da multipolaridade, mas ainda estamos nesse mundo onde há a dominação dos homens e onde a mulher é uma espécie de uma outra criada por um homem. Portanto não acho que já tenhamos superado o feminismo liberal na Rússia. Penso simplesmente que estamos ainda no paradigma liberal. Mas devemos sempre entender que a Rússia estava na vanguarda do feminismo. Hoje, temos uma regressão desse liberalismo. Portanto, temos um feminismo soviético de vanguarda, como um cyborg, com a ideia da resistência real da mulher contra os liberais burgueses e contra a hegemonia totalitária, e estamos de certa forma diante de um discurso de modelo liberal, que está em regressão, e ao mesmo tempo diante desse feminismo cristão que nasce.
                                                             
Tim Kirby: Mas porque é que as próprias mulheres russas, sem mesmo qualquer coerção, escolhem voluntariamente rejeitar o feminismo?
Daria Platonova: Na verdade, eu acho que é por causa do contexto. Nós somos mais clássicos e as mulheres talvez tenham decidido salvar o patriarcado, talvez tenham começado a sentir que os homens estavam perdendo um pouco de terreno e decidiram salvar os valores do patriarcado. Talvez possa ser essa a explicação.
Ao mesmo tempo, o facto é que a Rússia era comunista mais no plano geopolítico do que em outro plano e não tenho certeza que possamos dizer que conhecemos o marxismo cultural. O Ocidente não sofre com o comunismo. Quando leio os meios de comunicação conservadores dos Estados Unidos, vejo muito discurso anti-comunista, mas, na realidade, eles não são anti-comunistas, mas opostos ao marxismo cultural. Tínhamos um comunismo que era principalmente económico. Mas a política cultural comunista, nós não a sofríamos, não tínhamos o foco no feminismo, nos direitos LGBTQ e em tudo o que vemos actualmente no Ocidente. O nosso comunismo era realmente diferente.
                                            
Tim Kirby: é interessante, mas então porque será que a Rússia, outrora nação marxista, parece estar a salvo dos efeitos da cultura marxista?
Daria Platonova: É possível que o comunismo nunca tenha podido existir na Rússia e que ele só pudesse florescer lá na forma de socialismo cristão. O que se passou foi que a nossa mentalidade não aceitou o com
unismo como ele fora concebido no Ocidente, e fizemos então uma pequena revisão. O fato é que, por enquanto, para os russos, é bastante interessante ver as feministas ciborgues que podem existir nos partidos comunistas ocidentais e que são a favor da destruição da mulher, enquanto nós não vemos o comunismo como a destruição das mulheres.
Tim Kirby: Em conclusão, existem diferenças fundamentais entre as mentalidades das mulheres ocidentais e das mulheres russas de hoje, diferenças nos desejos, esperanças, sonhos e opiniões políticas?
Daria Platonova: Eu só acho que não temos essa obsessão. Penso que gostamos do diálogo e da harmonia entre os homens e as mulheres. Pensamos que quando um homem nos ajuda na rua, para carregar algo, por exemplo uma mala pesada, isso não é uma forma de dominação sobre nós, é apenas uma ajuda e é normal. Isso significa que uma pessoa ajuda-nos dessa maneira e nós ajudamos os homens de outras maneiras.
                                                               
Se constituímos uma família, então criamos um equilíbrio psicológico, ajudamos com nossa "magia da cozinha", você sabe que existe esse tipo de magia; você pode até encontrar livros no Ocidente que falam da bruxa no jardim ou da bruxa na cozinha! Então, ajudamos de todas essas diferentes maneiras, e eu acho que na Rússia essa ideia de um diálogo entre os dois sexos, as mulheres e os homens, é amplamente aceita, enquanto no Ocidente, o diálogo entre o homem e a mulher é problemático, porque as mulheres no Ocidente pensam que se podem ser dominadas pelos homens, então elas serão dominadas por eles, e elas têm esse problema na cabeça, o que não cria um diálogo, mas uma guerra. O feminismo no Ocidente concentra-se na guerra contra os homens, enquanto o feminismo russo, como tal como eu e os meus amigos o vemos, concentra-se na felicidade da mulher.
As mulheres no Ocidente que lutam pelos seus direitos e sobre o modo de os obter não são felizes, porque vivem em um paradigma no qual não há diálogo, apenas uma guerra sem paragem. Tornam-se mulheres instrumentalizadas. O problema é que o Ocidente politizou o problema da mulher. O feminismo liberal está a tentar instrumentalizar as mulheres e apresentá-las como únicas, mas há várias mulheres. Se devemos criar um feminismo, precisamos de um feminismo multipolar, onde todas as mulheres de todos os países teriam o direito de se expressar. Penso que há um diálogo e uma guerra permanentes entre mulheres e homens, e não creio que seja necessário eliminá-los. Nesta guerra, os dois sexos se constroem. Portanto, se ganharmos esta guerra, isso significará que os dois sexos terão perdido, porque não haverá mais dinâmica. A vitória está no diálogo, de uma maneira suave como o tango. A dança do tango é um óptimo exemplo, porque por um lado é agressiva e por outro é uma história de amor. É um compromisso.
Estes mundos nunca serão os mesmos, pois a guerra entre um e outro não criará um mundo, mas destruirá os dois, como se passa no Ocidente. Quando a mulher luta contra o homem, ela destrói o homem, e no fim não haverá mais nem mulheres nem homens.»
                                                    
[1] O presente texto é uma transcrição abreviada e revista de uma entrevista em língua inglesa concedida a Tim Kirby para o canal do YouTube Tim Kirby Rússia, em maio de 2021.
[2] Dari Dugina Platonova faz aqui referência à lei de 1906 do Parlamento da Finlândia que concedia o direito de voto aos homens e às mulheres em que era então um território do Império Russo. O sufrágio universal foi instituído na Rússia como um todo pouco tempo depois da Revolução de 1917, dois anos antes dos Estados Unidos (nota do editor).
 Saibamos  prosseguir com coragem e criatividade o caminho do Amor Sabedoria que  Daria Dugina trilhou e aprofundou...

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