quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A doutrina esotérica de Leonardo Coimbra e da Universidade de Letras do Porto, segundo Álvaro Ribeiro. Uma dedicatória perdida, de 1953. O Orientalismo do Aristotelismo. A Oração como convívio com o sobrenatural.

Dalila Pereira da Costa, Sant'Anna Dionísio e Pedro Teixeira da Mota, na igreja de Rio Mau, vila de Aves, anos 80.

Nos anos oitenta, no Porto, convivi bastante com a Dalila e com o Sant'Anna Dionísio (23.2.1902-5.5.1991), um discípulo dilecto de Leonardo Coimbra (30.12.1883-2.1.1936), ele  já aposentado do ensino e do jornalismo, eu dando aulas de Agni Raj Yoga no Suribachi. Ia visitá-lo, em geral sozinho, mas uma ou outra vez levando alunas ou pessoas amigas, e eram sempre  momentos numinosos, por vezes com silêncios e interrogações mudas, outras vezes com boas comunicações na sua doce e suave voz. É pois grato que  testemunho os nossos encontros e diálogos, dos quais já partilhei no blogue alguns momentos.

 Há dias, arrumando uma prateleira, após uma conversa telefónica com o Alberto Castro Ferreira, amigo sábio de longa data, e que foi discípulo directo de Álvaro Ribeiro (1.3.1905-9.10.1981) no movimento da Filosofia Portuguesa, dei-me com um livro deste, intitulado Leonardo Coimbra (apontamentos de biografia e de bibliografia), um in-8º de 95 páginas, impresso em Lisboa, em 1945  e, ao abri-lo, deparei-me com uma meia folha de papel onde transcrevera, em casa de Sant'Anna dum livro (hoje perdido, pois a sua biblioteca dispersou-se) que lhe fora ofertado por Álvaro Ribeiro em 1953, provavelmente a Apologia e Filosofia, dado à luz exactamente nesse ano algo esotérico (tal como também assinalou Dalila Pereira da Costa, sibilinamente, na sua obra sobre as Margens do Douro) de 1953. Ei-la:

"Ao Sant'Anna Dionísio, na hora de reconstituir a doutrina esotérica da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, oferece cordialmente este modesto tentame o seu colega, leitor, admirador e amigo Álvaro Ribeiro. 1/VI/1953."

Uma dedicatória histórica, mencionando a época à volta do  ano de 1953 como o da "hora de se reconstituir a doutrina esotérica da Faculdade de Letras do Porto", e portanto do ensino de Leonardo Coimbra, de que sabemos algo através dos seus discípulos.  O que houve nessa época seja de publicações de livros ou revistas mais significativo, ou mesmo de celebrações? 

Em 1951 fora dado à luz o esperado e volumoso In-Memoriam de Leonardo Coimbra, organizado exactamente por Álvaro Ribeiro, Sant'Anna Dionísio,  e ainda A. Casais Monteiro e José Marinho, o qual trouxe ao de cima, através de testemunhos de quarenta almas o valor do mestre Leonardo Coimbra e do seu ensinamento. A primeira  contribuição  é  a de Teixeira Pascoaes, confessando: «Leonardo Coimbra era, e é, um espírito das alturas, que, pairando, sobre todas as coisas, contempla para além delas, o infinito. Esse além é uma fonte inesgotável...». Como abordei os vinte primeiros testemunhos no blogue, eis a ligação para o primeiro desses artigos: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/01/leonardo-coimbra-testemunhos-dos-seus.html

Leonardo Coimbra (1883-1936) e Teixeira de Pascoaes (1877-1952)

Sabemos que as tertúlias filosóficas em Lisboa conhecidas começaram nos anos 40 com Fidelino de Figueiredo, e nos anos 50 com Álvaro Ribeiro, José Marinho e Sant'Anna Dionísio, vindos do Norte,  no café Brasileira, no Rossio, de Lisboa, e depois no café Colonial, aos Anjos, como me contou o embaixador e amigo perenialista Jorge Preto que nelas participou. Ora Álvaro faz a sua oferta-dedicatória em 1953, quando as tertúlias já funcionavam. E tanto podemos  então pensar que foram estes três meios (In Memoriam,  tertúlias e livros) de se estar a reconstituir a doutrina esotérica de Leonardo e da sua Universidade, como também considerar que o esotérico neste caso não será propriamente referência a um nível mais interno ou iniciático, mas num sentido apenas simbólico de pouco exteriorizada, tanto mais que a Faculdade fora encerrada em 1928, embora até 1931 funcionasse de modo a concluírem-se as licenciaturas já iniciadas.

 Todavia, como por mais de uma vez nos seus livros Álvaro Ribeiro considerasse a existência do lado esotérico do aristotelismo, mesmo sem certezas absolutas sobre o sentido do "esotérico" empregado, o melhor será transcrevermos (tanto mais que não se encontra na web) o que Álvaro Ribeiro, aluno e discípulo de Leonardo, escreve na pág. 17, subcapítulo Atitude Religiosa, numa leve aproximação ao esoterismo de Leonardo, e do qual muito mais se poderia dizer, como o fizeram em parte Sant'Anna Dionísio, ou outros, ou como eu posso testemunhar ao ter alguns exemplares de livros ou revistas desse cariz assinados por Leonardo ou endereçados a ele, para além de ter assinalado e comentado em alguns artigos no blogue as passagens mais espirituais presentes nos livros de Leonardo Coimbra, nomeadamente no seu trabalho sobre Antero de Quental e no valioso Luta pela Imortalidade : https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/12/leonardo-coimbra-e-luta-pela.html). Oiçamos então o que diz Álvaro no seu Leonardo Coimbra, 1945.

«A vida religiosa de Leonardo Coimbra consistia principalmente em perscrutar os mistérios do Universo, numa série de interrogações à natureza e ao Espírito [interrogações mas também práticas psico-espirituais], e em admitir progressivamente a revelação de Deus.
Leo
nardo Coimbra afirmara-se sempre cristão; transferindo, porém, o seu conceito de cristianismo, do plano moral para o plano religioso, foi levado a admitir a divindade de Jesus, e a aceitar a teologia católica [parte dela]; o espírito de Leonardo Coimbra não pertencia à família dos impenitentes heterodoxos , como Teixeira de Pascoaes [que sempre foi bastante penitente, e na sua heterodoxia aceitava muitos aspectos da Bíblia...], nem à dos ocultistas lunares como Fernando Pessoa [embora templariamente também fosse mais solar...]: todo ele era alvoraçada procura do sol da ortodoxia [ou do verdadeiro Sol, que a ortodoxia por vezes espelha...] Não teve, pois, mero carácter episódico e sentimental esta discutida conversão religiosa [uns dias antes de morrer de acidente de automóvel, sendo o Padre Cruz o confessor]; tem o correspondente movimento intelectual registado nos escritos de diversas fases, o que garante a profunda sinceridade do pensador; filósofo católico com Maurice Blondel, Edouard Le Roy ou Jacques Chevalier, mas pensador de raiz português, se tivesse podido continuar a sua actividade espiritual, não seguiria o movimento neo-escolástico das Universidades de Lovaina e de Milão», nisto apontando para uma tendência não escolástica, não exotérica, mas afectiva, intuitiva, mística, espiritual de Leonardo Coimbra e logo do seu ensino universitário e que frutificará depois em alguns dos seus discípulos de 1ª e 2ª geração.

Álvaro Ribeiro explica depois  como a conversão religiosa de Leonardo não fora inesperada e, entrando em seguida no subcapítulo O Orador e professor, diz-nos que o seu discurso «era gradualmente transcendente (e logo esotérico, interiorizando para a imanência transcendentalizável, direi...] e nunca superficial ou pragmático», e caracteriza-o: «Leitor infatigável, abrangia todos os domínios da cultura humana, desde as matemáticas superiores aos romances de visão poética ou de intenção messiânica; à prova de todos os assuntos resistiam a sua inteligência penetrante, a sua assimilação completa, a sua exposição exacta e brilhante. Dotado de imaginação poderosa [nado e criado entre o rio Tâmega e a serra do Marão], familiarizado coma paisagem e o além, Leonardo Coimbra transfigurava os seus conhecimentos nas mais belas miniaturas de expressão verbal que encontramos frequência nos seus escritos.»...

Será na penúltima página que Álvaro Ribeiro aponta de novo para o permitia a ressurgência esotérica: "Intitulando o seu esboço de sistema filosófico "O Criacionismo", Leonardo Coimbra não procedia por mero arbítrio. Opunha-se ao materialismo e ao formalismo em que via agrupadas as teorias do conhecimento dominantes, porque nem a matéria nem a forma são princípio explicativos de uma actividade. Confiava na espiritualização crescente da sociedade humana e postulava um optimismo transcendente, como garantia da ação moral". 

Neste sentido estava com o que escreveu e desenvolveu a filósofa russa platónica Daria Platonova Dugina, nomeadamente no seu Optimismo Escatológico, que Leonardo Coimbra certamente apreciaria muito, e hoje só podemos desejar que nos planos espirituais possam conviver, dialogar e nos inspirar.

                                           

 Quanto ao livro Apologia e Filosofia publicado  em 1953 e donde terei copiado certamente a dedicatória, encontramos nele (como noutros) valiosos contributos do Álvaro Ribeiro para a elucidação do emprego do adjectivo "esotérico", nomeadamente no capítulo 18º e final, que mereceria até ser todo transcrito, que  começa assim: "A filosofa aristotélica é uma filosofia da razão intuitiva, embora tenha sido muito interpretada como filosofia da razão discursiva. Filosofia de compreensão mais do que filosofia de apreensão, o aristotelismo indica, através do Organon os exercícios espirituais que adormecem na alma humana a vontade de contradição dialéctica e militante e que nela despertam a adoração da verdade. Mas para entender o aristotelismo convém reflectir sobre o significado autêntico da compreensão. (...) Compreender é prender [ligar] mentalmente o meio com o fim, o efeito com a causa, o acidente com a substância [actividades que culminam em intuições], acto simbólico que se traduz no logismo, na tese ou na proposição. Compreender não é, pois, relacionar ou compor noções do mesmo plano de entendimento".

Eis-nos com uma boa partilha de Álvaro, mostrando que o esoterismo do aristotelismo reside na dinâmica ascensional da consciência, na importância da razão intuitiva,  buddhi da filosofia Vedanta, e no facto de propor "exercícios espirituais" que "adormecem" ou acalmam a mente irrequieta ou dialéctica"  e despertam nela a aspiração ou "adoração da verdade". Terá Álvaro Ribeiro lido os Yoga sutras de Patanjali, onde encontramos esta mesma visão e caminho, nos aforismos iniciais, yoga citta vritti nirodha, a união é obtida pela acalmia, adormecimento ou extinção das ondulações mentais?

Mais à frente vai mais longe na aproximação (numa unidade do platonismo e aristotelismo) ao esoterismo: "Nos livro reunidos sob o capítulo de Metafisica é que o platónico Aristóteles nos diz ter a filosofia origem no sentimento de admiração, e nesses mesmos livros aproxima a filosofia da filomitia, pelo que nos convence  de que o sábio não pode limiar-se ao estudo do que nasce e morre, ao estudo da Natureza, mas deve fazer por que a sua inteligência ascenda à intelecção do sobrenatural."

Quanto ao estudo e conhecimento sobrenatural, Álvaro Ribeiro parece estar a par dos perigos de certas práticas (mágicas, yoguicas), advertindo "que o convívio com o sobrenatural exige predicados delicadíssimos, os quais se resumem no que a doutrina cristã estabeleceu serem as virtudes teologais", a Fé, Esperança e Caridade, esclarecendo, com certa originalidade, que os exercícios espirituais visam obter essas virtudes, e que o magistério da Igreja se deveria exercer no sentido de defender tais virtudes. 

Os dois últimos parágrafos são bem valiosos quanto ao seu modo de ver o esoterismo e a ligação com o sobrenatural, com o divino, e neles afirma a sua confiança na persona, dotada de cabeça e de coração: O espírito finito que é o homem está em relação com o espírito infinito que é Deus, e por misteriosa que seja essa relação de transcendência não podemos deixar de a [meditar e a] conceber na ordem do pensamento e do sentimento (...) 

O último parágrafo é riquíssimo de sugestões interiores, e faz-nos pensar como seriam as orações do Álvaro Ribeiro, e lamento, tendo ainda visitado a sua afável mulher em sua casa em Campo de Ourique, não lhe ter perguntado por tal:

 "A oração, que nos incita a ascender da Letra para o Verbo, e do Verbo para o Espírito, é, por isso, um processo de culto  que rejuvenesce a cultura. A oração mental é o mais puro convívio com o sobrenatural. Elevando assim a palavra, o pensador cumpre o primeiro preceito da arte de filosofar."

Possamos pelas nossas orações-meditações comungar com o Espírito e com estes nossos amigos que já estão mais religados a Ele... 

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