domingo, 30 de junho de 2024

O Único Contraveneno da Incerteza Moral, ou tentativa de clarificarmos os modos de discernirmos o que é o real, útil e verdadeiro bem.

Frontispício ou portada do misterioso Contraveneno,,,
Uma alma discreta, que escondeu o seu nome abreviando-o como J. P. de B. B. M., publicou em 1838, no Porto, numa pequena tiragem, na "saudosa" Imprensa Constitucional, o Unico Contraveneno da Incerteza Moral, ou real, verdadeiro e unico Elemento Moral, num in-8º de 43 páginas, e na castiça e inteligente justificação, ou Motivo, diz-nos que no seu opúsculo juntou, para os que não podem ler livros volumosos, muita informação, na ambição de ser útil. Temos nós esta ambição, esta aspiração, esta vontade perseverante e sempre renascendo como uma fénix das cinzas das suas desilusões, doenças, mortes, de sermos úteis?
Vejamos então o que ele leu ("o plagiariato"), cogitou e descobriu, num bom esforço, e as perguntas e impulsões lançadas aos seus futuros leitores, tais nós já no séc. XXI:

                                     
«Este opúsculo que ofereço à Multidão, é fraco no crédito que me dá, por ser um plagiariato; mas forte e de colossal utilidade, para os impossibilitados de ler obras volumosas. Num Professor de ciências positivas seria julgado um grande atrevimento, ou um roubo indecoroso; mas em mim que não sou Facultativo [ou vinculado por formação a uma ciência], é uma curiosidade desculpável pela ambição de ser útil. Muitas coisas úteis deixam de o ser, por não serem acomodadas à capacidade popular [e muitos exploram tais incapacidades, ou são tidos por superiores graças a elas], (...) Arruinadas iam as oficinas [tipografias] Literárias, decorreriam séculos em trabalharem, se as invenções novas com exclusão das cópias das traduções, e dos resumos, somente vissem a luz.
Se um povo se enganou, deverá ele marchar eternamente na estrada do erro, a perdição e da infelicidade? Todo o homem deseja ser feliz. Se não o é com a verdade, não o pode conseguir com o erro. Se a opinião pública é errada, a culpa não é do povo, nem do filósofo que destruiu o erro; mas do legislador que não faz uso da verdade. Se os melhores projectos se quebram contra a opinião popular, ou a multidão, é porque esta é abandonada à influência das trevas.»
O problema, diremos, é que há vários níveis de felicidade - a qual é alegria, sentir-se bem, ter prazer, sentir-se que se está a cumprir a sua missão ou o seu dever, ou ainda que se está a fazer o bem. Por vários níveis causais poderemos sentir felicidade pelo que pode até não ser o verdadeiro bem o que acreditamos e procuramos, ou ser até no erro que nos sentimos bem, justos, deliciados, pelo que há que discernir muito bem o que nos faz verdadeiramente felizes, individual ou colectivamente.
Ora as pessoas abandonadas às trevas que (actualmente) os meios de informação manipuladores, consumistas e sensacionalistas lhes ditam, não conseguem deslindar o que é a verdade nem o melhor para elas, nem conseguem perceber o que deveriam desenvolver da sua própria personalidade e capacidade intelectual e anímica, a qual depende sobretudo «em se lembrar das ideias adquiridas, adquirir outras novas», e assenta na capacidade de atenção, clareza do discernimento, exactidão da memória, vivacidade de imaginação», para cujo desenvolvimento ou educação tão importantes são a firmeza de alma e a perseverança.
Face ao imediatismo, ou à atração do poder do prazer imediato, o melhor é sabermos cogitar, equacionar prazeres actuais e prazeres ou dores que virão como consequências no futuro, e portanto saber sacrificar prazeres imediatos por maiores satisfações futuras, ou sofrer penas ou dores actuais para evitar outras ou piores no futuro, conselho ou regra esta que devemos equacionar com regularidade...
J.P. de B. B. M, considera, por exemplo, que em certas pessoas o amor pode ocasionar inveja, ódio, antipatia contra os que podem colher a fruição do objecto agradável no lugar delas, sendo tal posicionamento uma forma errada do sentimento do amor exagerado se erigir em regra da utilidade ou justiça dos nossos sentimentos e actos.
Ora a Utilidade é o poder ou tendência duma qualquer coisa para evitar dor ou conseguir algum bem para nós, sendo o bem o prazer, ou o que o motiva, e o mal a pena, a dor, ou o que a causa.
Discernir onde está o que tem maior valor de utilidade, através da comparação dos bens e males que resultam, é a verdadeira base do que é virtuoso, do que gera o melhor bem pessoal e colectivo.
Porque é que as pessoas não conseguem discernir (ou aplicar e implementar) nas suas vidas e caminhos o que lhes é mais útil e logo mais gerador de felicidade?
Porque as pessoas não se conseguem reger por tal racionalidade e discernimento da utilidade e valor e são influenciadas pelos seus desejos, tendências, vícios e influências exteriores.
Nesses factores estão os falsos princípios, filosóficos, religiosos ou morais que as pessoas estabelecem e que as levam a repudiar o que seria o equilibrado e o justo, ou o mais útil, pensando que assim se valorizam ou glorificam nesta ou noutra vida.
O básico dum princípio arbitrário é a pessoa persuadir-se do que o que gosta ou não gosta, deve ser a sua regra e que pode propor os seus sentimentos ou opiniões, como a regra, aos outros.
O anónimo mas benemérito ou útil autor, numa obra rara pois não encontramos qualquer referência a ele e a ela na bibliografia geral nem no catálogo online das bibliotecas públicas (Porbase), tenta no fundo despertar as pessoas para se autonomizarem de ideias feitas provindas do exterior e de sentimentos e pensamentos subjectivos e antes racionalmente ponderarem onde está a maior utilidade, para si e para os outros, e aplicá-la.
Embora o fim da moral e da lei sejam o mesmo, têm campos de aplicação ou órbitas diferentes, pois é na interioridade pessoal que se registam os valores e utilidades, sendo difícil regê-los por leis, nomeadamente quanto aos sentimentos e actos, tais os negativos de ingratidão e de perfídia, mas mesmo assim conseguiremos discernir três regras de Moral privada: a Prudência, para não se fazer mal a si mesmo, ou não faltar ao seu interesse; a Probidade para se gozar confiança e se poder interelacionar com felicidade recíproca; e a Beneficiência com os mais desfavorecido ou os seres da natureza, obtida pelo desenvolvimento da benevolência.
Saibamos pois discernir constantemente o que de mais útil a nós e aos outros podemos sentir, pensar e realizar, e perseverar no que pensamos poder ser mais útil ao nosso ser eterno e ao dos outros seres...

            
                    Como e quando se resolverá o enigma do nome, verbo, palavra do autor?

segunda-feira, 24 de junho de 2024

In Memoriam de José Teixeira da Mota, e da sua livraria Antiquário do Chiado. E pequena meditação-oração por familiares e amigos que deixam a Terra, em vídeo.

                 

Um dos bons livreiros alfarrabistas de Lisboa, José António de Lencastre Teixeira da Mota, acabou de deixar o seu posto de conselheiro de almas e cuidador e transmissor de livros, funções que exerceu com grande sensibilidade e disponibilidade, gosto e erudição, desde 1990, quanto tomou conta da antiga Livraria Moreira & Almeida, sita na Rua Anchieta, nº7,  perto da centenária Livraria da Bertrand e,  acrescentando-lhe o nome de Livraria Antiquário do Chiado e devolvendo-a à sua traça setecentista, a metamorfoseou luminosamente num espaço acolhedor e harmonizador, com gravuras,  mapas, obras de arte, manuscritos, folhetos de cordel,  e naturalmente  bons livros de Literatura, nomeadamente séc. XX e modernistas e surrealistas, História, África, Oriente, Viagens, Estrangeiros sobre Portugal, Etnografia, Religião e outros temas. Em simultâneo à actividade de livreiro, na qual publicou oito catálogos de notável qualidade de obras, descrições e grafismo, e em que participou em Bienais e exposições, fez investigação histórico-genealógica, editando um Brasonário da Nobreza de Portugal,  inédito, do século XVII, e elaborou um precioso catálogo (ainda por publicar) das edições ao longo dos séculos do mítico Livro das Sete Partidas do Infante D. Pedro.

Foral de Vila Verde (dos Francos), dado por D. Manuel em 1513 e assinado por Fernão de Pina

 Este catálogo de Outubro de 2008 continha algumas obras extraordinárias, tais documentos reais dos séc. XIV e XV, dois manuscritos de Almada Negreiros e José Régio e uma Iluminura excepcional, assim descrita: «Estêvão Gonçalves. Iluminura sobre pergaminho de 14,9 x 10,0 cm. Assinado "Stepha Gonçalves".
Estêvão Gonçalves foi Abade de Serem e capelão d
o Bispo de Viseu. Nasceu no século XVI e morreu em 1627, como diz Taborda nas Regras da Arte da Pintura. Foi o célebre artista que executou as iluminuras do notável Missal de Estêvão Gonçalves, que se guarda na Biblioteca da Academia das Ciências em Lisboa. Nas palavras de Esteves Pereira, falando deste missal, "Este primoroso manuscrito iluminado, com quanto já pertença ao século XVII, merece o lugar mais distinto, o mais eminente entre os manuscritos iluminados".
Era sobre o missal de Estêvão Gonçalves que juravam os no
ssos reis quando eram aclamados. Do nosso conhecimento é o único [grande] iluminador português que assinava por vezes as suas miniaturas. Muito raro e de grande beleza.» Quem será o feliz custódio?

Já no catálogo de Setembro de 2009, a apresentação dizia: «Cada uma das obras que faz parte deste catálogo, foi cuidadosamente escolhida pelo seu interesse, raridade, estado de conservação. Gostaria de partilhar a sua história, a sua iconografia, ou a beleza da sua composição ou encadernação com todos os verdadeiros bibliófilos.
Quero aproveitar também para agradecer aos meus clientes, colegas e amigos, todos os encorajamentos recebidos, que me incitam a continuar o trabalho começado, esforçando-me sempre por melhorá-lo.
Não me esquecendo que somos todos muito solicitados pelos n
umerosos catálogos que recebemos, dei maior realce à representação gráfica das obras, tendo voluntariamente restringido a descrição das mesmas com apenas um pequeno comentário», mesmo assim razoável e bem esclarecedor...

De destacar foi também sempre a qualidade das suas montras, e no ano de 2013 foi mesmo considerada como a melhor montra livreira do Natal, bem se diferenciando, por exemplo, dos livros cor de rosa, ou romances históricos ou outros repetitivos, presentes em todos os aeroportos e bookstores do mundo. Consagrei-lhe um artigo neste blogue: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2013/12/melhor-montra-de-natal-alfarrabista.html

O ambiente antigo e estético da livraria, os livros e obras nela contidos e a sua sensibilidade e boa bagagem de conhecimentos sobre antiguidades (já que fora antiquário, com a sua mulher, na Clepsidra), livros, manuscritos, cartas pré-filatélicas, cédulas antigas, gravuras e mapas, permitiu-lhe ser um excelente descobridor de obras boas e raras e um valioso conselheiro para investigadores, colecionadores, bibliófilos e colegas de profissão, que o visitavam e conversavam,  e ora lhe compravam ora lhe pediam a opinião (nomeadamente sobre mapas antigos, e gravuras de Lisboa), havendo ainda a registar o convívio durante uma certa época num almoço semanal com alguns dos livreiros.

 Destacar nomes dos que passaram mais tempo em convivência é sempre melindroso, mas António Barreiros (Cardoso), Sigismundo Bragança, Almeida Dias, João Alarcão, Jorge Brito e Abreu, Lourenço de Sousa, Daniel Pires, João Esteves, Filipe Loulé e Sérgio Moreno foram dos que mais apreciaram e desfrutaram a sua alma e livraria. Mas como amigos, visitantes, compradores e dialogantes, houve muitos desde José V. de Pina Martins, Jorge Preto, Mariano Gago, Martim de Albuquerque, Carlos Monjardino, D. Diogo de Bragança, José Simões-Ferreira, Paul Hugo Thiran, Miguel Faria, José Castelo Branco (Fornes), Eng. Melo Mendes, Perry Vidal, Gustavo Andersen, Ricardo Sá Fernandes, Paulo Falcão Tavares, Silvina Pereira,  José Francisco de Noronha, Paulo Waschman, Nuno Rízio e Celestino, aos confrades Isabel Maiorca, Margarida Teles da Silva, Margarida Rebelo, Luís Burnay, Alfredo Gonçalves, Ernesto Martins, Richard Ramer, Comandante Palma, Luís Gomes, Nuno Franco, Carlos Bobone, Freitas e o já mencionado Lourenço de Sousa, e perdoem-me os que esqueço, tanto mais que na rua e quase à porta da livraria realizava-se (e realiza-se) aos Sábados a Feira dos Alfarrabistas. Do livreiro e leiloeiro José Manuel Rodrigues ouvimos hoje a sua afirmação sentida: «era um joia de pessoa. Quantas vezes me ajudou em certas identificações ou descrições mais difíceis...»

Luís, José, Pedro e Francisco, há uns bons anos, aquando dum casamento.

Sendo irmão mais novo, ele o quarto e eu o sétimo, duma família de nove irmãos e irmãs, e de pais e antepassados ligados à cultura e ao amor de livros, logo com boas bibliotecas, dele não poderia deixar de referir como como nos apoiou, seja em estadia na sua casa, já que esteve alguns anos em França, seja ainda em livros e conselhos, tanto mais que trabalhei para ele em algumas feiras de livros ou mesmo na livraria. Do seu grande amor pelos livros falam ainda eles próprios, agradecendo as muitas encadernações boas com que os revestiu, preservou e embelezou, nomeadamente através dos encadernadores Vasco Antunes e Império Graça, este também o preferido do prof. José V. de Pina Martins, que visitava com regularidade as livrarias do Manuscrito Histórico, Biblarte, Olisipo, Arte e Letras,  a Campos Trindade e Antiquária do Chiado, referindo o meu irmão, nomeadamente por adquirir-lhe um dos primeiros manuscritos sobre a livraria real em Portugal, na sua tão erudita quão divertida obra Histórias de Livros para a História do Livro, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde o prof. Pina Martins trabalhou vários anos, marcando a época mais humanista desta tão valiosa e histórica Fundação.

A mulher  Margarida Teixeira da Mota, notável antiquária e empreendedora, foi uma excelente e amorosa companheira, praticamente toda a vida, tal como os dinâmicos quatro filhas e filhos, Maria e Teresa, Filipe e Tomás, e nos últimos anos com os netos e netas. O Zé era basicamente um pater familias, e os seus melhores momentos eram com eles, tendo-lhes dado muito de alegria e lucidez, exemplos e valores. Muita amizade dinâmica e bem disposta viveu ainda com primos, primas e amigos nas casas do Outeiro em Mondim e na casa da Cruz Gagos, nas Terras de Basto dos seus avoengos paternos, e com amigos e amigas em Vila de Conde, Lisboa e Paris, tais os pintores Luiz da Rocha, Cargaleiro, Rodrigo Ferreira e a poetisa Merícia de Lemos, ou muitos dos atrás referidos.

Neste catálogo realçou, num caderno manuscrito de 94 p, intitulado Exterminio da Inglaterra. Trovas alegres por Camilo Castelo Branco, Visconde de Correa Botelho,  «a muito comovente descrição da morte de Camilo Castelo Branco narrada pelo seu filho Nuno», e «as duas maquetas de António Pedro para o Nº3 da revista Variante, mostrando as ligações deste ao surrealismo internacional».

O que se poderá mais dizer senão que o José Teixeira da Mota foi mais um amante e sábio dos livros que ilustrou e beneficiou a pátria e a gente lusa e que partiu rumo ao mundo Espiritual, onde já se encontra, no plano de luz e de amor e com a consciência que lhe corresponde e que só os desígnios da Providência Divina conhecem plenamente, restando-nos desejar-lhe ou orar para que a sua alma espiritual esteja numa luminosa ascensão, tal como eu fiz, durante dez minutos e gravei em vídeo, neste interim entre a sua desincarnação física - que foi calma e desprendida, diante da estante dos seus livros preferidos e da qual peguei na altura num do Herberto Hélder, um dos seus autores preferidos e abri à sorte, o istixara persa, uma página lendo-lhe o início dum poema que referencia um dos míticos antepassados de muitos portugueses, Carlos Magno -, e a velada a realizar-se Quarta-feira, 26 de Junho, a partir das 18 horas, e missa a 27, às 15 horas, na Basílica da Estrela, consagrada ao sagrado coração de Jesus, e que encontrará num barro português também no vídeo-áudio (pois é na realidade para se ouvir e sentir), e que desejamos que esteja bem aceso na sua e nossa alma...

Ps.Acrescente-se que na noite anterior à sua partida, recebendo a extrema unção do padre Vasco Magalhães, primo direito da mulher, a propósito deste lhe falar em "descansar na mão de Deus", o Zé recitou de cor o belo soneto de Antero, Na mão de Deus, capacidade que ninguém da família sabia, e que manifesta a sua inserção na tradição anteriana e espiritual portuguesa, tal como eu já referira quanto a este poema: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/07/antero-de-quental-e-nos-na-mao-de-deus.html, e na sua utilização como bom encaminhar em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2022/11/antero-de-quental-um-bardo-thodol-um.html.

                        

Poesia escrita em Sintra à Lua, céu e nuvens, num pôr do Sol. Do diário do Inverno de 1990.

 Da Lua escorre leite levemente.
Todo o céu é um mar de suavidade.
Uma ligeira neblina, como um véu,
religa-nos levemente ao Cosmos
e a Lua parece um planeta misterioso.

As nuvens encavalitam-se
sentindo-se atraídas para a Lua
e desenham raios, réguas, esquadrias
que tingem a Lua ao pôr do sol
dum rosa amarelado tão belo
que parece mesmo a aura lunar.

O céu-se abre-se subitamente
e parece uma imensa vastidão
fecundada por uma fraterna rainha
presidindo a toda a vida e movimento
na esfera lunar, terrestre e sub-terrestre.

Os pássaros chilreiam felizes
enquanto as árvores não abanadas pelo vento
contemplam a acção da Lua nelas próprias
extasiadas com a seiva e o crescimento fortes.

Momentos tão calmos e sossegantes
que todas as dificuldades e limites atenuam.
Parece trazer neve nos seus seios, dona Lua,
e um frio veste a terra ainda nua do Inverno.

Nuvens cinzentas da chuva e da electricidade
transmutam-se em homenagem à Lua
em alvas montanhas ao longe
num desfile vagaroso e majestoso,
conduzido por algum Anjo silencioso.


quinta-feira, 20 de junho de 2024

Amâncio Gracias, notável historiador goês. Vida e pensamentos. A religião do Saber e a comemoração das efemérides e centenários em prol da evolução da Humanidade

João  Baptista Amâncio Gracias nasceu em Loutolin, Salsete, Índia, em 8-IV-1872,  e veio a ser director da Fazenda do Estado da Índia e um dos grandes homens (tal como o seu irmão José António Ismael Gracias) da investigação histórica, arqueológica e etnográfica  na Índia Portuguesa,  pertencendo a  agremiações científicas nacionais e estrangeiras, e deixando uma vasta obra  destacando-se as investigações e publicações sobre os portugueses na Índia, tais Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, D. João de Castro, Jean Begun, mas também Almeida Garret, Akbar, Rabindranath Tagore e vários goeses ilustres, com uma muito extensa  semeadura em jornais e revistas, tais como Era Nova, Horas Vagas, EvoluçãoRevista Colonial,  Boletim da Sociedade de Geografia, o Mundo Português, e sobretudo O Oriente Português e o Boletim do Instituto Vasco da Gama. Viverá até 1950.

  Ao escrever o Esboço Biografico do historiador Filipe Nery Xavier, e de quem foi um dos sucessores, no início da  reedição do seu Bosquejo Histórico das Comunidades das aldeas dos Concelhos das Ilhas, Salsete e Bardez dada à luz em 1903 (já que a 1ª era de 1842), em três volumes, J. B. Amâncio Gracias testemunhou a sua grande cultura e amor à Índia e  valorizou  bastante o culto das efemérides históricas e da celebração dos centenários das grandes almas da humanidade, pois optimisticamente acreditava que o tempo das guerras e das armas findara e que seriam os princípios da Revolução Francesa - Igualdade, Liberdade e Fraternidade -, os livros, os exemplos e a sabedoria a reger os povos.
A propósito do dito "só depois de mortos é que os grande seres são reconhecidos", escreve num belo português: «Sucede isso sempre com os homens de valor. A justiça é para eles tardia, parecendo que é nas trevas do túmulo, como num fundo negro uma projeção de luz, que destacam mais nítidas as irradiações dos espíritos de eleição, cuja obra se engrandece com o tempo, penetrando-os num dilúculo [romper do dia] da aurora da imortalidade e deslumbrando com os sulcos nitentíssimos [de niteo, brilhar] que deixam após si os olhares atónitos das gerações, rendidas de admiração e de respeito, podendo à justa aplicar-se-lhes a sublime frase que nos seus derradeiros momentos proferiu Hércules, quando, não podendo suportar o tormentos da túnica que trazia no corpo, se arrojou à fogueira: Sinto que me vou tornando um Deus.
Sim, a morte tem este condão, o de avultar e purificar tudo quanto é grande, transfigurar a personalidade e ser condição duma apoteose.
É por isso que a religião do saber, de longe a longe decreta as suas gratulações, do mesmo modo como a da Fé sagra, com hinos festivais, os apóstolos da virtude, os que martirizando o corpo conseguem opulentar a sua alma das mais lídimas alegrias.»

Traçando depois uma evolução da humanidade, talvez algo influenciado pela religião positivista de Augusto Comte, de uma 1ª época de valorização dos mais idosos, a que se seguiu a dos mais fortes, e depois a da realeza e o nascimento nobre, acreditou finalmente estar-se a entrar numa época em que os dirigentes ou governantes são «aqueles que não sacrificando as suas convicções às conveniências do momento enveredaram pela estrada real do dever inspirando-se nos princípios da justiça, orientando os seus actos pelo norte da honradez e rectidão.
É assim que se observa em toda a parte, nas grandes terras, como em pequenas agremiações políticas, uma nevrose de esforço, uma impaciência extraordinária em consagrar o merecimento, erguer altares ao génio, porque nem a idade, nem a força, nem o nascimento podem guiar o baixel dos nossos destinos no mar proceloso da vida a salvo dos escolhos que lhe embaraçam a rota.
É assim que se celebram os centenários dos granes vultos que exerceram a sua energia, a sua afectividade e a sua inteligência em proveito não só próprio senão também dos seus semelhantes.
O sentimento de veneração é inato ao homem, é uma das forças coordenadoras da sociedade e sem ele a ordem seria uma violência material e nunca um acordo harmónico das vontades.
Venera-se o objecto que nos vibra de moção a nossa afectividade; venera-se o que nos inspira sentimentos de medo [? Jehova, provavelmente] ou de amor, mas nada se nos impõe mais ao culto do que o génio e a virtude, a majestade da inteligência e a pureza da alma.»

Apoiando-se ainda na profecia de Augusto Comte escrita em carta de 20 de Maio de 1842, a Stuart Mil, a de que se iria dar uma crescente comemoração dos centenários dos grandes seres da humanidade  «para acelerar o desenvolvimento moderno, conjuntamente mental e moral», considera que não será da indústria dos armamentos, mas sim «fundindo balas e canhões para estátuas do saber, da virtude, do altruísmo e da filosofia, demolindo mitos e lendas, abrindo de par em par as portas dos claustros e cenóbios em que o arrogante egoísmo clerical da meia-idades procurava monopolizar a instrução. O livro substituiu já as armas, é no gabinete do pensador, na cela do sábio, no studio do artista, que não no quartel da milícia ou nos arraiais dos generais que se dita hoje a formula para governar os povos.
É por isso que
se vai generalizando o culto dos homens que engrandecera a pátria, engrandecendo-se a si, que universalizaram as ideias e imprimiram à vida social uma acção construtiva, que dinamizaram a energia e o esforço dos seus conterrâneos, que, finalmente, contribuíram para o bem estar social por uma ideia, uma conquista, por uma intervenção oportuna, por qualquer sacrifício.» Bosquejo Histórico das Comunidades, 1903,  5-7 pp.

O Esboço Biographico de Filipe Nery Xavier, escrito por Amâncio Gracias, abrange cinquenta e cinco páginas valiosas, dos quais transcrevemos esse breves excertos iniciais, e nelas sumaria a historiografia portuguesa (e goesa, tais Bernardo Peres da Silva, Francisco Luís Gomes e Bernardo Francisco da Costa) da Índia e descreve os importantes trabalhos de Filipe Nery Xavier, pela «opulência da erudição» e «a cópia de documentos», mencionando ele ter trabalhado lúcida  infatigavelmente até à morte ocorrida em 26 de maio de 1875, com 74 anos de vida fecundíssima.
Anote-se por f
im que o extenso e texto de José Maria de Sá, que são as Notas Preliminares, complementa e corrige, ao ser escrito 50 anos depois, o trabalho de Nery Xavier, fazendo até referências (p. 94) aos livros dos dez munis e dos sete rishis, bem como aos Vedas e à Purana Suta Sanhita. Encontra o Bosquejo Histórico das Comunidades das aldeas dos Concelhos das Ilhas, Salsete e Bardez em linha, no Internet Archive.

sábado, 15 de junho de 2024

A Sabedoria dos cavaleiros do Amor portugueses do séc. XVI: as Sentenças de D. Francisco de Portugal, 1º conde do Vimioso.


SENTENÇAS DO 1º CONDE DO VIMIOSO DOM FRANCISCO DE PORTUGAL
Frontispício, fac-similado por Mendes dos Remédio.

D. Francisco de Portugal foi um dos cavaleiros do Amor que floresceram em Portugal no século XVI, o último em que eles puderam livre, criativa e criticamente manifestar-se, já que a introdução do Tribunal da Inquisição começaria em breve a censurar, prender e castigar quem fosse considerado menos conforme às doutrinas e dogmas da Igreja. Não sendo D. Francisco um cristão gnóstico, menos seguidor escrupuloso dos preceitos e ideias, não teve que recear problemas e tal como ele, ao longo dos séculos seguintes, continuou a haver cavaleiros ou fiéis do Amor, guerreiros, corajosos, esforçados, nobres, dedicados à honra e ao amor, capaz de terçarem armas pela pátria e escreverem ao amor da dama ou à liberdade da Sabedoria.

Nascera filho natural de D. Afonso de Portugal, e de uma descendente de Nuno Álvares Pereira (quando D. Afonso ainda não era religioso, onde chegou a bispo de Évora) e era neto do 1º marquês de Valença. Em 1505 foi legitimado pelo rei D. Manuel, que em 1515 fundou para ele o condado do Vimioso, e desde cedo se destacou pelas suas qualidades, tendo sido um dos cavaleiros que acompanhou D. Manuel a Castela quando este foi jurado príncipe, ou ainda a sua filha D. Isabel à Alemanha quando foi casar-se com o imperador Carlos V. No campo das armas brilhou em Arzila em 1509 e em Azamor em 1515, dirigindo tropas e chegando a dirigir Azamor. Foi depois Vedor da Fazenda e por fim educador ou Camareiro-mor dos filhos de D. João III, D. Manuel e D. João.
Foi casado duas vezes, primeiro com D. Brites Vilhena e depois com D. Joana de Vilhena, de quem teve quatro filhos, e destacou-se, além das armas e no conselho do Estado,nas obras de beneficiência que exercia, e na sabedoria que desenvolveu e que soube concentrar em máximas ou sentenças, escritas tanto em prosa como em quadras, sendo chamado o Catão português. Veio a morrer em 8 de Dezembro de 1549 em Évora bem preparado, pois sempre fora dedicado à oração, onde tinha o padroado da igreja de N. S. da Graça e o da capela mor do Convento de Santa Catarina de Siena, que protegia. A sua memória foi preservada por vários escritores, tais Damião de Goes, Jerónimo Osório, Pedro de Mariz ou Simão Coelho, na sua Crónica da Ordem do Carmo, I, 20: «Foi muito esclarecido em prudência, Cavalaria,  e todo o género de virtudes, pessoa de muita verdade com o seu Rei do qual com grande razão foi muito estimado, e juntamente com isto era muito justo com todos, e piedoso com os pobres». Já Soares Toscano, no Paralelo dos Varões Ilustres, cap. 125, descreveu-o assim: «Foi Varão de muito grande governo, confiança, autoridade, verdade, e cortesia por o qual alcançou grandes cargos, e ofícios nas Casas Reais... era naturalmente eloquente, e cheio de excelentes sentenças».
Em 1605, um seu neto, D. Henrique de Portugal, resolveu publicar a pedido de um amigo, D. António de Ataíde, a obra do varão ilustre e generoso que corria em manuscrito, e assim surgiu a 1ª edição impressa, em Lisboa, por Jorge Rodrigues, que leva dois textos (e bem valiosos) e dois sonetos dos dois amigos a antecederem a obra: D. António de Ataíde, confessa só compreender o atraso da publicação por o primo Henrique «(...) ver o mundo tão descomposto que não merece perfeições, e tão perdido que lhe não aproveitarão estes remédios, mas se Deus dilatara a Redenção até quando universalmente se houvessem os homens de aproveitar dela, eternamente estaria o Céu fechado.» Quanto a D. Henrique explica que introduziu no prefácio a carta encorajora de António de Ataíde «pela honra que a mesma pátria ganha em se saber que houve nela um homem tal sujeito, e para que nos desperte e anime o estímulo da emulação honrada a seguir com mais gosto o difícil caminho do melhor (...)»
Fim da apresentação da obra, pelo neto de D. Francisco de Portugal.
Trezentos anos depois o prof. Mendes dos Remédios resolveu reeditar a obra, no famoso editor conimbricense França Amado, com XIX páginas de um bom prefácio onde considera que «no género paremiológico, a que pertence, o trabalho de D. Francisco de Portugal era entre nós original e novo. Foi ele quem primeiro, entre nós cultivou esse género», e não Pedro Supico de Morais como um crítico alegara, e assim se tornou de novo acessível, num in-8º de XIX-124 p. A obra está dividida na I parte Sentenças, II parte, Outras sentenças em verso, III parte,  Poesias do Cancioneiro Geral, ou seja, colhidas dessa valiosa obra colectiva na qual  lhe estão atribuídas cinquenta e oito, a maioria trovas palacianas, de amor, elogio e sátira.
São inegavelmente as Sentenças o que é mais perene, pois encontramos nelas valiosa sabedoria psíquica, ética, moral, e vamos transcrever algumas delas, sem comentários, tanto mais que ainda  hoje são válidas e actuais:

 «O Bem se deve crer de todos e de ninguém o mal sem prova.

O grande espírito é igual, e rigoroso.

O freio do bom é Amor, e o do mau é temor.

Os bons sabem bondades, e os maus sabem malícias

Os pusilânimes prezam-se do que tem, e os magnânimos das obras que fazem.

Ouvir maus é criar maldades. 

Os fracos morrem após a vida.

O saber sem inteireza é uma roda de vento. 

Os magnânimos tem a honra dos seus por sua. 

Quem segue a alma sacrifica o esforço

A ignorância escandaliza o entendimento.

A desestima dos bons dá ousadia aos maus.

Para aconselhar, e ser aconselhado convém o entendimento nu da vontade.

Corrupto governo é usar primeiro do formoso que do necessário.

Se culpa a vida alheia seja com o teu exemplo, e não com o teu entendimento.

Quem muito estima coisas pequenas nunca faz nenhuma grande.

O fiel servidor não deve servir a quem dele senão fia.

Ninguém se fia de quem dele se não fia.

Onde as verdades falecem os enganos prevalecem.

As más suspeitas destroem as verdades. 

Apetito é grande vício.

O coração confiado e a razão desconfiada são para feitos grandes.

Os homens que não sentem são tanto pior que as bestas, quanto neles degenerou a natureza.

Ao bom somente o obriga o que a virtude obriga.

Não há buraco no mundo para escapar do mundo se não Deus.

Onde a razão se não ouve, doido é quem se não cala.

Quem não emudece vendo quem fala com as orelhas dos homens, e não com os corações dos homens.

O primeiro conceito do bom é cuidar de todos bem, e o do mau de todos mal.

As obras sem esperança são como corpo sem alma.

A ambição não ouve a razão alheia.

O coração livre despreza tudo o que errando se ganha. 

Ao ignorante sempre aborrece o sabedor.

Com grandes determinações, não lembram inconvenientes.

A quem não crê verdades dizem mentiras. [Tão actual, pla manipulação geral]

O poderoso deve ser sujeito à razão dos seus, e livre à sem razão dos estranhos.

O verdadeiro, a si mais que a todos deseja satisfazer.

As fracas conversações enfraquecem o forte.  

Quem quiser emendar o mundo seja em si. [Muda-te, que o mundo mudará]

Sem o uso da fortaleza, tudo é perigoso.

A ignorância obra monstros. [Saibamos detê-la]

Aonde a ignorância manda a malícia se assenhoreia.

A boa fortuna não somente faz as obras mas autoriza as palavras

O Y pitagórico, ou o bívio do discernimento: "Ao bom somente o obriga o que a virtude obriga."   Outro texto sobre o Y: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/04/reflexoes-sobre-y-pitagorico-com-um.html

sexta-feira, 14 de junho de 2024

A espiritualidade e a santidade na Rússia, e em especial na Igreja Ortodoxa. 1ª. Breve introdução. Com imagens de S. Serafim de Sarov.

Os Filósofos (Sergei Bulgakov and Pavel Florensky). Pintura de Mikhail Vasilyevich Nesterov (1862-1942)
 A espiritualidade russa pode ser apreciada, estudada e comungada por áreas ou subcampos, como o paganismo pré-cristão, o cristianismo ortodoxo, a música, as artes plásticas, a literatura (por exemplo, em Gogol, Dostoievsky, Tolstoi), a filosofia (bem notável em Soloviev, Berdiaef, Florensky, Bulgakov), o orientalismo (muitos estudiosos, e Nicholai, Helena e Svestolav Roerich) e a espiritualidade e gnoses fora da Igreja ortodoxa. Em  todos estes campos houve e há grandes seres e obras.
Se aproximar-nos da espiritualidade mais conhecida e forte, a da Igreja Ortodoxa russa, vemo-la tanto nos fiéis e monges como sobretudo em alguns dos mestres, ou starets, como são chamados, os seres que por vida e características especiais alcançaram uma ligação espiritual ou divina mais viva, mais evidente, e que foram reconhecidos como santos pela comunidade dos fiéis e canonizados pela  hierarquia eclesial, alguns tendo sido autores de obras, teólogos.
Pode-se reconhecer, denominar ou apontar em tais seres a acção do Espírito, a de Jesus Cristo, de Maria, da Santa Sabedoria ou Mãe Divina, do Pai, e ainda dos Anjos, Arcanjos e espíritos mais santificados mas, basicamente, na Igreja Ortodoxa o que se sente e reconhece principalmente é a acção do Espírito que espiritualiza, ilumina e aperfeiçoa o ser humano e lhe dá a luz, amor e glória, considerando-se tal como uma deificação. E que poderemos ver como uma radiação crescente do espírito divino na sua alma, seguindo o arquétipo do Cristo em corpo de glória, e que se manifesta na sua vida verdadeira ou verdade vivida (pravda), chegando a haver casos de tal intensificação do espírito que a transfiguração interna se torna visível, tal como aconteceu com um dos mais famosos starets, S. Serafim de Sarov, e que o livro do seu discípulo Motilol, narrando a iluminação, ainda mais popularizou, sendo muito cultuado em belos ícones em várias partes do mundo.
Pode dizer-se que a canonização dos santos, que por vezes nasceu do povo, dos fiéis, que a reconhecem e veneram independentemente da hierarquia religiosa, é causada ou justificada pela verdade vivida (pravda), ou seja, a vontade Divina que é discernida e cumprida, e pela união do seu corpo ou natureza corporal com a natureza espiritual, e ainda com a Luz espiritual Incriada, sendo este o factor de canonização essencial a partir de S. Simeão (949-1022), o Novo Teólogo, havendo só  três com este título na Igreja Ortodoxa: o apóstolo S. João, o patriarca Gregório de Constantinopla e S. Simão.
  Natural da  Galácia (e logo de origem celta provavelmente) na Anatólia, depois de ter sido educado em Constantinopla, só aos 27 anos se tornou um monge e praticante do hesicasmo, da oração do coração,  e foi um ser de mente e gnose profunda, como podemos deduzir da sua ascética, sofrida  e iluminada vida, e da sua obra, tal como podemos apreciar na primeira sentença do seu Tratado sobre a santa Eucaristia: «A Palavra ou Verbo inacessível, o pão que desce do céu, não é contido sensualmente, mas antes contém e toca e, sem mistura une-se aos merecedores e bem preparados para o receber.»
Segundo Elizabeth Behr-Sigel, na sua valiosa obra Oração e Santidade na Igreja Russa,  três critérios entram na canonização dos santos: 1º os feitos espirituais ou seja o carácter heróico das suas virtudes, chamando-se  podvig, ao acto heróico, tal como o de se vencerem tentações, pecados, medos. A ascese é considerada o meio principal, mas também a fé e a caridade são outros meios para as pessoas se abrirem ao Espírito Santo, permitindo-lhe habitar nelas. A graça desce assim para quem a invoca e a merece e será depois a açcão, o sopro ou a inspiração do Espírito que faz com que a pessoa  aja bem, ou mesmo heroicamente.
 O segundo critério de canonização são os milagres que a pessoa realizou na vida, ou que se atribuem à sua intercessão, e que resultam da sua religação ao Espírito, ou da sua amizade com o Divino, que lhe permite pedir ou agir na, ou como intermediário da, Vontade salutar ou salvífica Divina.
 E, finalmente, o terceiro critério é o estado do seu corpo depois da morte, em geral sendo a incorruptibilidade no todo, ou em parte do corpo, porque a espiritualização em vida acabou por impregnar o corpo.
Estes critérios são naturalmente muito parecidos com o da Igreja Católica, com pequenas diferenças, tal o valorizar-se o estado do corpo no momento da morte, a sua flexibilidade, o sangue que circula ainda, os perfumes que emana, como deparamos bastante nas místicas portuguesas dos séc. XVI a XIX.
Devemos considerar estes critérios de santificação, mais humildemente, ou sendo mais humildes e sem pretensões a sermos santos,  como meios de aperfeiçoamento, ou de espiritualização ou ainda de religação espiritual e divina, e assim de quando em quando devemos realizar algum acto mais difícil, mais heróico, mais sacrificial, na escala que podermos ou que nos surgir ou desafiar. Podem ser actos de abster-nos, tal de comida, ou bebida, ou descanso, ou conversa, ou desanimo. Ou actos de dinamismo, de coragem, de perseverança, seja na acção, nomeadamente de abnegação ou sacrifício, seja na oração ou meditação, seja na inspiração da escrita ou criatividade artística. 
Somos todos chamados a desenvolver o corpo de glória, ou de luz, a partir dos nossos esforços ou feitos mais ou menos heroicos.
Somos todos chamados de quando em quando a segurar a cruz e a fazer desabrochar nela a rosa e, portanto, no sofrimento, intensificarmos a compaixão e o amor, ou a aspiração à luz e ao Espírito santo. 
Saibamos morrer e, com paciência e perseverança ressuscitar constantemente, na esperança de mais ligação à Luz incriada espiritual.
S. Serafim de Sarov alimentando bem o já santo urso...

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Dia da Mãe-Pátria Russa, 12 de Junho. Homenagem à sua história e missão e com as breves palavras de Putin acerca desta celebração.

                              
O povo Russo, pela sua sede
e demanda da verdade (pravda) e da justiça, de certo modo santificou-se, pelo menos em muitos dos seus seres mais heroicos martirizados ou iluminados, e comemora hoje 12 de Junho o  dia nacional da Federação Russa (o que faz desde 1990), e a tal celebração da sua grande alma e missão nos associamos nestes tempos de tão dramática fase da sua existência, desejando longa, próspera e feliz vida às suas gentes, um bom desenvolvimento da sua co-liderança no BRICS e um rápido estabelecimento da paz e concórdia entre os povos.

                                     

Uma história sacrificial imensa  tem na realidade caracterizado a santa Rússia: primeiro as lutas com os povos em volta, segundo entre os czaristas e os vermelhos, terceiro as mortandades que Lenin e Estaline geraram, quarto os 27 milhões que morreram na 2ª grande guerra batalhando contra a Alemanha e o nazismo, e quinto (em prol das sociedades naturais e tradicionais, religiosas e éticas, e de uma multipolaridade justa e fraterna), a actual luta  de resistência contra a agressividade do  imperialismo excepcionalista anglo-americano, a NATO, a oligarquia globalista ocidental de Schwab e Soros, Rothschild e Gates, e os os governos membros da  União Europeia anti-russos, tal como ainda e sobretudos os extremistas anti-russos que tomaram conta da Ucrânia.

Iremos abordar num próximo texto comemorativo da data a santidade e espiritualidade russa e que, tal como a sua história, está bastante desconhecida entre nós (embora em 1935 o genial Leonardo Coimbra escrevesse em 484 páginas o tão valioso A Rússia de hoje e o Homem de sempre), Portugal que desde o século XVIII teve  boas relações com a Rússia, mas que hoje, devido à perda de independência do Estado Português e a  subjugação dos governos neo-liberais ao imperialismo norte-americano, da NATO e da UE, se encontram muito diminuídas oficialmente, embora haja um crescente número de pessoas que apoiam a sua luta contra a oligarquia globalista, o imperialismo norte-americano e  o fascismo de alguns extremistas, e se interessam pelos seus artistas, criadores e pensadores, tal Aleksandr Dugin e sua filha, uma esperança filosófica martirizada, Daria Dugina Platonova.

  Neste dia, o que o sábio Presidente da Rússia Vladimir Putin disse num breve discurso, foi assim resumido pela Tass.com, um dos poucos  meios de informação da santa Rússia não proibidos no Ocidente pseudo-democrático:

MOSCOU, 12 de junho. /TASS/. «O Dia da Rússia deve ser celebrado como um símbolo de firmeza e sucessão do Estado do país, afirmou o Presidente Vladimir Putin na cerimónia de entrega de prémios aos Heróis do Trabalho e aos laureados com prémios estatais para 2023.

                              

"Este é o feriado em honra da nossa Mãe-Pátria", disse o Presidente da Federação Russa. "Celebramo-lo com respeito pelo nosso país, com reverência pela sua longa história de séculos, pelos testamentos anímicos dos nossos antepassados, pelas suas conquistas e vitórias", disse Vladimir Putin.
                           

Todas as fases do Czarismo da Rússia, do Império Russo e da União Soviética são um todo integral com a Rússia moderna, observou o Chefe de Estado. "Por conseguinte, considero necessário e historicamente acertado celebrar o Dia da Rússia como o símbolo da continuidade da forma milenar da nossa Pátria", acrescentou Putin.»

Evocação da Santa Sophia, inspiradora e protectora, por Nicholai Roerich.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

A Ilha dos Amores ou do Amor, da Deusa e de Camões. Hermenêutica da sua espiritualidade perene. Nos 500 anos do seu nascimento.

Heliogravuras de Alfred Bramtot, para a bela edição parisiense d' Os Lusíadas, de 1890.
No canto IX dos Lusíadas Luís de Camões introduz a utópica "ínsula divina", a  ilha do Amor,  que a deusa Vénus, decidira aparelhar  no Oceano  para premiar os navegadores portugueses com descanso, deleite e alegria, após os seus esforços e feitos, que culminam com a vitória sobre o Adamastor (o guardião do umbral), e os inimigos dos nautas e a abertura da circulação e corrente pelo  mar entre o Ocidente e o Oriente.
Conta com o seu filho Cupido, ou Eros, que tem ao seu serviço muitos Cupidos preparadores e lançadores de flechas,  para inflamarem o amor nas ninfas ou nereidas com que povoa a Ilha Namorada levada pelas ondas,  até ficar firme na rota dos portugueses, a fim de se juntar o "ardente amor lusitano com a flama feminina". São uma núpcias especiais que se preparam, a coroação da demanda lusitana da união do Ocidente com o Oriente e que se realizou pluridimensionalm
ente e como fruto da história de uma terra e sua gente, com tantas esforçadas, corajosas e engenhosas almas.
A descrição da ilha e o episódio de ensino ético, amor e iluminação
congraçaram  os comentadores em hermenêuticas diferentes quanto ao seu simbolismo, ideologia e intencionaliade, pois a genial epopeia e este riquíssimo episódio são os de um experimentado viajante e cavaleiro, infatigável fiel do Amor, de certo modo um humanista, formado, presume-se, que em Coimbra e com um tio sacerdote,  em grande parte na tradição greco-romana, em especial Homero, Virgílio e Ovídio, e logo conhecedor do orfismo e pitagorismo, platonismo e neoplatonismo, ainda que sobretudo por antologias, oficinas e florilégios, e pelos mestres italianos do dolce stil novo, tal Dante, Guido de Cavalcanti e em especial Petrarca, e talvez ainda pelo teorizador do Amor Marsilio Ficino e o seu seguidor Leão Hebreu, além dos poetas citados na sua obra: Pietro Bembo, Garcilaso de la Vega e Juan Boscán. 
Conhecia ainda tanto a historiografia portuguesa, nomeadamente de  André de Resende, Damião de Góis, João de Barros (que refere a Utopia de Thomas More, de 1517), Fernão Lopes de Castanheda e Diogo de Teive (tendo sido grande amigo do então jovem  Diogo de Couto, o continuador das Décadas, de João de Barros, as III primeiras bastante usadas  por Camões), como a tradição literária, satírica (quem sabe se o Elogio da Loucura, de Erasmo) e visionária portuguesa, castelhana e europeia (tais as medievais viagens às ilhas Afortunadas e das Mulheres), para além do que acolhera na sua universal experiência, sobretudo oriental, persa e indiana, pois por tais terras e gentes esteve uns dezassete anos seguidos, extraordinariamente ricos e sofridos, seja em expedições e batalhas, amores e inspirações, perseguições e prisões, pobreza e naufrágio, e assim pode cantar o peito ilustre lusitano, e o saber feito de experiência.
O episódio chave acolheu he
rmenêuticas frequentemente conflituosas quanto à localização da Ilha dos Amores (Bombaim, Angediva, Zanzibar, S. Helena, Mediterrâneo, Chipre, Atlântico ou antes  utópica), quanto às fontes literárias clássicas (Argonautas, Odisseia, Ilíada, Eneida, Metamorfoses de Ovídio), ao erotismo carnal ou terrestre e o urânico ou metafísico, ao platonismo e ao aristotelismo, ao  esoterismo  e ao catolicismso,  e ao cabalismo, neste último aspecto destacando-se três pessoas que conheci, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Antonieta Soares Azevedo e António Telmo, mas sem conseguirem contudo fundamentar tal hipótese.
É bem m
ais simples e cristão o que  nos é transmitido, certamente com influências do paganismo clássico e renascentista, e com passos mais elevados e sublimes de ressonância neo-platónica (também assimilada pelo cristianismo), os quais metaforizam  num mundo paralelo, ou intuem do mundo espiritual, o que merecem e alcançam os seres que lutam ardorosamente pelo bem, a verdade  e o amor. Há assim estâncias com ideias valiosas acerca do Amor,  Divindade e do ser humano, para além de uma história de Portugal, retrospectiva e futurante, onde Camões pode exercer  os seus vastos conhecimentos de geografia, etnografia, história, mitologia greco-romana, cosmografia e teologia, e exercer a sua missão de vate, de poeta vidente, tal como os rishis dos Vedas, capazes de discernirem Rita e Dharma, Ordem e Dever, o mundo da ideias e valores perenes, e poder ser   um guia, um crítico social e ético , dirigindo-se tanto aos rei e governantes, como aos religiosos, guerreiros, comerciantes  e povo para que despertem do seu sono e lutem como esforçados seres desejosos da beleza, da virtude, do conhecimento, da verdade, da liberdade, do amor. 

Constituem um subreptício testamento autobiográfico  algumas partes dos discursos do episódio, seja na personagem ardorosa em busca do amor, Leonardo, seja quando Camões fala, através da ninfa Téthys, aconselhando o Rei e a Grei, sentindo-se bem confessionalmente nos dois cantos finais o seu alto amor e engenho artístico, alem de esforçada capacidade luta, de sacrifício, de aprendizagem e de síntese, e que todos nós devemos desenvolver.
Sem entrarmos no simbolismo possível das árvores, fru
tas, flores (onde a obra do Visconde de Ficalho é ainda referência), minerais e pedras, ou nos feitos, virtudes que os mais heroicos portugueses manifestaram,  destaquemos então os principais ensinamentos espirituais, começando no canto IX, onde observamos a alegria dos nautas encetando finalmente a viajem de saída da Índia e regresso à Lusitânia, assim descrita de modo a assinalar o culto dos antepassados e da família (os "penates") e  a importância do coração espiritual como um graal que se expande tanto que o coração físico é diminuto:                                  
                                               17-18 e 19
O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Pera contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito,
Que o coração para ele é vaso estreito.

Porém a Deusa Cípria, que ordenada
Era, pera favor dos Lusitanos,
Do Padre Eterno, e por bom génio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A g1ória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhe andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhe nos mares tristes, alegria. (...)

Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,
No Reino de cristal, líquido e manso.

Para isso conta a deusa Cípria, ou do Chipre, com o seu filho Cupido e os seus servidores cupidos, mais eficazes "quando as setas  acertam de levar ervas secretas" e por "palavras subtis de sábias magas", agora para frecharem as nereidas ou ninfas, e que assim inflamadas esposarão os argonautas portugueses:

«quero que sejam repousados,
Tomando aquele prémio e doce glória
Do trabalho que faz clara a memória.»

A "formosa ilha alegre e deleitosa" com  "o cume,  que a verdura tem viçosa" ou esverdeado, é um paraíso terrestre, o local ideal para o amor se manifestar plenamente, no qual um cipreste é um eixo entre o mundo físico e o espiritual, apontando ao "etéreo paraíso", e em tal "insula divina" os nautas portugueses deslumbram-se, extasiam-se e buscam a união com as ninfas, o que acaba naturalmente por acontecer, destacando-se a extensa descrição dessa busca da reciprocidade fusional do amor,  até então não encontrado no, por isso magoado, marinheiro Leonardo, identificável com Camões, até que por fim a ninfa: 

                                                                                 82
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
 

Essa aceitação e comunhão geral é bela e elevadamente descrita na estância 84, pois tais uniões são para eterna companhia, ecoando seja a teoria da alma-gémea platónica, seja talvez mais a anterior, dos persas, das fravashis, as mulheres-anjos que cada homem encontra em vida ou ainda, se o merecer, na ponte da passagem para o além.

 «Desta arte, enfim, conformes já as fermosas
Ninfas co'os seus amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro e de ouro e flores abundantes.
As mãos alvas lhe davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia
Em vida e morte de honra e alegria


Em seguida surge a apresentação, amor e união de Vasco da Gama com a deusa ou ninfa principal Téthys : 

                                                                                86
Que, depois de lhe ter dito quem era,
Cum alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por alta influição do imóbil fado,
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia,
87
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual uma rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contínuo.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.

Em seguida a este amor natural e total, e descrito extensa, e ora detalhadamente ora mais secretamente ("doces jogos e em prazer contínuo"), numa certa apoteose do amor pleno entre "a formosa e a forte companhia",  introduz Camões, por si ou por pressão dos censores e familiares do Santo Ofício, um passo hermenêutico que reduz o perigo de suspeita de paganismo ou de uma ilha paradísiaca (do persa avéstico, pairidaeza, jardim protegido) erótica algo influenciada pelo Islão:
                                                     88
«Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Téthys e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preeminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha:
Estes são os deleites desta Ilha.

e assim tais deleites ou estados mitificados de deuses ou semi-deuses correspondem a seres humanos que tal alcançaram:
                                                      90
Por obras valerosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso.
Há então que lutar e esforçar-nos por sairmos da nossa condição de adormecidos, manipulados, enfraquecidos, escravizados:
                                                       92
Por isso, ó vós que as famas estimais,
«Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo.
e após ter aconselhado a pôr-se  «na cobiça um freio duro, e na ambição também», e a dar-se «na paz as leis iguais, constantes, que aos grandes não deem o dos pequenos», termina  magistralmente o canto, perenizando o estado de habitante da ilha do Amor para os que vierem a ser heróis esclarecidos:
  95
E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora com os conselhos bem cuidados,
Agora com as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos
.
 
 O canto X e último começa com a descrição do banquete dos casais conformes, unificados e reluzentes, ou espiritualmente desvendados, ou mesmo de almas gémeas, se é que esta complementaridade existe mesmo na primordialidade descrita no Banquete por Platão com as imaginações formais que ele pode intuir ou imaginar: 
2
Quando as formosas Ninfas, com os amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d'altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

Segue-se a descrição profética e órfica, por uma Ninfa dos sucessos futuros dos Portugueses no Oriente, heróis que receberão a glória, as honras e os gostos da Ilha, segredos ques ela soubera do sábio e auto-metamorfoseador Proteu, filho do Oceano e de Téthyis, que os vira clarividentemente numa espécie de órgão, taça ou globo transparente, interior ou exterior, uma boa imagem operativa religante para se contemplar: 
                                                         7
«Com doce voz está subindo ao céu
Altos varões, que estão por vir ao mundo,
Cujas claras Ideias viu Proteu
Num globo vão, diáfano, rotundo,
Que Júpiter em dom lho concedeu

Em sonhos, e depois no Reino fundo,
Vaticinando, o disse, e na memória
Recolheu logo a Ninfa a clara história.

Após esta valorização duma clarividência profética outorgada pelo Supremo Deus, Jupiter Optimus Maximus, ainda que com um recurso a uma taça ou globo, narra a heroicidade doutros lusitanos, tal Duarte Pacheco Pereira, e não se esquece de referir mais uma vez a ajuda da santa guarda Angélica, pela qual a fundamental Providência divina do mundo se exerce, no caso fortalecendo a alma e intensificando o coração espiritual: 
                                                      20
Ou que os celestes Coros, invocados,
Descerão a ajudá-lo e lhe darão
Esforço, força, ardil e coração
 
Nomeia e sumariza a vida no Oriente de outros heróis, tais D. Francisco de Almeida e seu filho D. Lourenço, dando ainda conselhos e bênçãos a Camões que os pedira face aos poucos apoios que recebia.
Vem por fim
o ponto alto da comemoração do Amor e da demanda unitiva dos navegadores, sendo apresentada a capacidade de  se alcançar a visão beatífica da Ordem do Universo, da máquina do mundo e do que da Divindade ou Bem supremo se pode captar, pois após os longos e prazentosos momentos do amor venusiano terrestre, a Vénus Celestial, através de Téthys como guia, qual Beatriz para Dante na Divina Comédia, gera o momento mais sublime dos Lusíadas, quando chegados ao cume do alto monte do Amor Vasco da Gama pode contemplar o uniforme e perfeito globo, gerado "pelo Saber alto e profundo, que é sem princípio e meta limitado".
Avancemos na aproximação à Sapiência Suprema
, com que Camões nos inicia com estas visões (mais subtis que físicas) e palavras, ou logoi, outorgadas pela Vénus celestial ou urânica através da revelação da deusa Téthys a Vasco da Gama, com quem já se unira amorosamente e que se comove agora com a desvendação clarividente da grandeza do Cosmos, que significa um todo harmonioso:

                                    

        76
–«Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.»
Assi lhe diz e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
79
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.

Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas

80
«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

 Após esta primeira focalização no mistério da Divindade e na máquina ou ordem do mundo fabricada segundo o arquétipo  dela, criado pelo Saber alto e profundo, incognocível e só Auto-cognoscível, isto é, Deus, sem princípio nem fim, e que a Deusa apresenta a uma escala humana mas que permite a orientação futura para o que se deseja ela explica ao olhar de Vasco da Gama, humano e na Terra e, logo, correctamente geocêntrica, os níveis sucessivos das dez ou nove orbes,  e das causas segundas ou anjos da celeste companhia ou ainda  "espíritos mil" com que a Providência divina governa e sustenta o universo, e é nas estâncias 81 a 85 que se descreve o nível mais alto do Universo, o Empíreo, onde as almas  puras ou mundas (não imundas) contemplam e regojizam-se com o Bem supremo ou Sumo Deus e a sua Mão providencial, dinamizada universalmente por mil espíritos. Oiçamos então as estâncias 81, 83, 84 e 85, com sublinhados do mais valioso:

Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando
Que a vista cega e a mente vil também,
Empireu se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança
,
De quem não há no mundo semelhança.

E também, porque a santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil que têm prudência
Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,
Em muitos dos exemplos que apresenta);
Os que são bons, guiando, favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem;

Quer logo aqui a pintura que varia
Agora deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
A seus Deuses já dera, fabulando;
Que os Anjos de celeste companhia
Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.

Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda,
Debaixo deste círculo onde as mundas
Almas divinas gozam
, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro
Que não se enxerga: é o Mobile primeiro.»

 Após esta notável visão do Empíreo, o plano mais elevado das orbes que circundam a Terra, seguindo a concepção astronómica plotemaica (a tradicional geocêntrica, já que a heliocêntrica de  Copérnico ainda pouco se afirmava), e  as descrições das nove orbes do humanista e cosmógrafo Pedro Nunes, passa à caracterização sumária do Primeiro Móbil, do Céu Cristalino e do Firmamento, neste nível se movendo as Estrelas fulgentes e as doze Constelações animais ou zodiacais, e depois  as sete Esferas, orbes ou círculos dos Planetas clássicos, onde se inclui o Sol, e por fim os quatro Elementos. Aterrará na Terra, com as suas diferentes partes, gentes e  e costumes, dentro de uma certa unidade benigna ou universalidade fraterna e multipolar ainda que algo ainda eurocêntrica e cristocêntrica, conforme o pioneirismo e missionarismo lusitano da época.

 Narrará, após a descrição da Arábia e da Pérsia, bem mais extensamente a da Índia, desenvolvendo longamente (da est. 108 à 118) a história do provavelmente mítico fundador do Cristianismo na Índia, S. Tomé, e em contrapartida não refere o missionário jesuíta do Oriente S. Francisco Xavier, e que tanto sacralizaria Velha Goa, quem sabe se por alguma rivalidade da ordem dominicana com a Companhia de Jesus. A est. 118 merece ser transcrita porque  ecoará em outros autores e pregadores (tal Sebastião Toscano, a propósito de Afonso de Albuquerque) e porque mais uma vez enaltece a fraternidade inspiradora e providencial angélica, além da, detestada pelos Protestantes, intercessão dos santos, uma forma de fé activa no corpo místico da cristandade e humanidade:

 «Choraram-te, Tomé, o Ganges e o Indo;

Chorou-te toda a terra que pisaste;
Mais te choram as almas que vestindo
Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.
Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Te recebem na glória que ganhaste.
Pedimos-te que a Deus ajuda peças
Com que os teus Lusitanos favoreças.

E  lança ousadamente uma advertência contra o laxismo ou falta de espírito evangélico exemplar e logo missionário dos religiosos, que abreviará porém logo no primeiro verso da est. 120: «Mas passo esta matéria perigosa», muito provavelmente mencionando veladamente com tal o líder dos humanistas Erasmo, que por mais de uma vez propusera esse tipo de reforma, e muitas censuras e oposições recebera.
Será só após descrever brevemente Benares - a cidade sagrada onde os hindus acreditam que se morrerem e forem banhados nas águas santas e purificadoras do Ganges ao Céu se encaminham -, Bengala,  Pegu, Samatra, Sião, as zonas budistas do Cambodja,  China, Japão Timor,  Ceilão, Madagáscar e  Brasil, que regressa às núpcias carnais e alquímicas e às realizações espirituais dos argonautas portugueses, com estâncias bem valiosas, pois a ninfa Téthys reiteira a eternidade do feito histórico e espiritual dos nautas, e o acesso perene à ilha angélica, e permite-lhes embarcarem de regresso à Pátria e ao Tejo ameno, deixando a Ilha alegre, namorada:
                                                                                142
Até 'qui Portugueses concedido
Vos é saberdes os futuros feitos
Que, pelo mar que já deixais sabido,
Virão fazer barões de fortes peitos.
Agora, pois que tendes aprendido
Trabalhos que vos façam ser aceitos
Às eternas esposas e fermosas,
Que coroas vos tecem gloriosas,
143
«Podeis-vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, pera a pátria amada.»
Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

A Deusa, da ilha do Amor, capaz de penetrar no tempo eterno, ensinar-lhes-á ou desvendar-lhes-á as missões futuras e enaltecerá tais cavaleiros e marinheiros dirigindo-se ao rei de Portugal em versos valiosos (e extensos, pois Camões sabia bem quão desamparado fora tantas vezes e defendia o seu e o bem comum), estimulando-o a favorecê-los (e ainda os religiosos que oram, jejuam se disciplinam e não têm ambições), pois estão prontos a servir o rei, a pátria, a virtude, as musas,  com a sua abnegação e experiência, coragem e sabedoria, que harmonizam e religam a terra e o céu.
Quando já regressados às Tágides e a Por
tugal o que sobreviverá da visão do Cosmos divino e da união com a ninfa Téthys na alma e memória de Vasco da Gama, bem como das uniões dos marinheiros portugueses com as suas contrapartes femininas, ninfas eternamente jovens, ou formas espirituais conhecidas, pois não sabemos a que níveis as quis e projectou Camões: como virtudes, como amadas, como musas, como almas-gémeas, como ligação espiritual?  Talvez se possa dizer que tais potencialidades vibram desafiante e benignamente no mundo imaginal e espiritual para os que tentam subir ou estabilizar-se no alto monte do Amor ou no seu cume.

E quantos portugueses, ou mesmo descendentes dos nautas, conseguem hoje actualizar os seus feitos, recuperar a vivência da Ilha do Amor, seja consortemente seja íntima e clarividentemente, e lutar para que ela não seja tão sangrada ou impedida no mundo pelos governos e fóruns mais insidiosos e criminosos, assim alcançando  a intuição comungante com a Ordem e Providência Divina, Rita e Dharma na Índia, e manifestando-a criativa e fraternamente com os animais, os humanos, os espíritos, os santos e santas, mestres e Anjos?
Avancemos em invocação e comunhão corajosa com Luís de Camões, Vasco da Gama, Nicolau Coelho e os outros portugueses que pelos esforços e feitos, arte, gentileza e engenho se alinham com a Providência Divina e as Causas segundas e se tornam merecedores da ilha e monte do Amor...