Entre as obras quinhentistas pioneiras de espiritualidade mais profunda editadas em Lisboa encontramos a dada à luz pelo impressor alemão João Blávio, no ano de 1562 e que leva como título LIBRO de S. IOAN CLIMACO, LLAMADO ESCALA SPIRITUAL: En el qual se descriuẽ treinta Escalones, por dõde pueden subir los hõbres a la cumbre dela perfection y fue agora tercera vez trasladado en lengua Castellana por vn Religioso de la orden de S. Domingo. Añadieronse le vnas breues Annotaciones en los primeros cinco Capitulos, para la inteligencia dellos..., e que foi pelo tradutor e parafraseador frei Luís de Granada dedicada à mulher de D. João III, a rainha D. Catarina, irmã do imperador Carlos V, e que sabemos ter sido uma mulher culta e espiritual, pois era filha de Filipe o Belo, Duque de Borgonha e Arquiduque da Áustria, com a corte nos Países Baixos e onde o humanismo florescia maravilhosamente e tendo assim trazido consigo, qual dote para o seu casamento com Portugal, obras de Erasmo (que era conselheiro de seu pai), quando este sábio perene já era perseguido por certos sectores mais conservadores e "sorbónicos" da Igreja e censurado em algumas obras nos Índices ou listas de livros defesos.
Neste retrato de António Mouro (de 1553) qual seria o livrinho religioso de D. Catarina? |
A dedicatória do sábio místico Frei Luís de Granada (1504-1588, em Lisboa), que viu partes mais místico-quietistas das suas obras censuradas (e logo reimpressas emendadas) e que era admirador de Pico de della Mirandola e de Erasmo, como entre nós José V. de Pina Martins provava (ao inclui-los num dos seus volumes de Sermões) e gostava de realçar, tem mesmo algo de profético, pois a rainha D. Catarina, tendo vivido entre 1507 e 1578, casada com D. João III de 1525 a 1557, e regendo na menoridade de D. Sebastião até 1562, acabaria por retirar-se da vida cortesã ou áulica.
E o que diz a sábia dedicatória à "Sereníssima Senhora", uma caracterização quase impossível nos dias de hoje tão agitados, nas suas linhas finais? - «Receba pois V. A[lteza] com sua acostumada serenidade este pequeno presente: para que quando alguma vez for aos mosteiros da Madre de Deus, ou da Esperança [talvez os dois principais lisboetas de então] a respirar com Deus [que significativa caracterização do recolhimento] dos trabalhos contínuos o governo, tenha com que recrear algum tanto seu espírito com a lição deste divino Livro. Cuja mui alta e poderosa pessoa e estado nosso Senhor amplifique e engrandeça com perpétuos favores do Céu.»
E assim veio a suceder, porque a Rainha, abdicando no seu filho Sebastião, retirou-se para o mosteiro da Madre de Deus e certamente terá lido o livrinho.
Nos seus 220 fólios, e dividido em trinta capítulos, vinte e seis acerca dos vícios e das virtudes e da vida purgativa, e os últimos quatro sendo da sagrada Quietude do corpo e da alma, da bem aventurada virtude da Oração, e da maneira que nela assiste o homem diante de Deus, do Céu terreal, que é a bem-aventurada Tranquilidade; e da perfeição e ressurreição espiritual da alma antes da ressurreição comum, e da união e vínculo das três virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade, está repleto de psicologia ascética, filosofia moral, doutrina teológica e realização espiritual, baseada em grande parte nos primeiros Padres do deserto, nos místicos medievais, e em especial em S. João Clímaco (em grego, escada), o autor da Escada Espiritual (ou Escada Celestial) que, tendo vivido aproximadamente entre 540 e 610, chegando a abade do famoso mosteiro do monte Sinai, veio a ser traduzido para o latim (em 1300 pelo frade menor João Clareno, um franciscano espiritual) e para as línguas vulgares, conhecendo-se muitos códices gregos e várias traduções.
Houve em Portugal antes desta edição (alargada a outros autores e parafraseada, em castelhano e que tal como Frei Luís de Granada menciona já era uma terceira tradução), a tradução manuscrita da versão latina de João Clareno existente num códice em português-medievo, bastante mais pequena, realizada por um Frei Martinho do mosteiro de Alcobaça e que se encontra, desde a extinção das Ordens religiosas em 1834, na Biblioteca Nacional, e que foi citada em parte pelo P. Mário Martins e excelentemente estudada e editada recentemente por Ilma Magalhães Alkima (estando online). Anote-se que houve uma tradução de João Mendes de Almeida Júnior, em 1902, no Brasil, da versão em castelhano de 1562, sob o título Clímax, ou Escada do Céu.
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