segunda-feira, 29 de abril de 2024

Dara Shikoh, um sufi e mártir portador do Graal da ligação Divina e do comparativismo orientalista e ecuménico.

                   Dara Shikoh, um portador do santo Graal ecuménico.
 
 O príncipe mogol Dara Shikoh, filho primogénito do herdeiro ao trono mogol Shah Jahan (1592-1666) e da formosa persa Arjumand Banu, ou Mumtaz Mahal  (
27 Abril 1593 – 17 Junho 1631), nasceu a 20 de Março, numa segunda-feira, em 1615, junto ao lago de Sagartal, perto de Ajmer, na Índia,
então em grande parte sob o domínio do seu avô, o imperador mogol Jahangir (1569-1627), recebendo o nome Mohamad Dara Shikoh,  e que o estimará muito até  partir da Terra quando ele era um jovem de 12 anos, passando depois a  ter um valioso tutor, Mulla Abdul Latif Saharanpuri
Fora muito desejado, pois o seu pai Shah Jahan ainda não tivera varões, e logo sucessor ou herdeiro, e a sua mãe a mirífica Mumtaz Mahal deu-o à luz em Ajmer, onde se instalara o  casal a fim de se propiciar um nascimento abençoado, tal como de alguns modos sucedeu, pois era uma cidade santa por nela ter morrido e estar o túmulo do grande mestre persa Moinuddin Chisti (1143-1230), diante do qual oraram pelo nascimento de Dara. 
Veio a ter vários irmãos e irmãs, já que Mumtaz Mahal (29.10.1593 a 17.3.1631) gerou tanta descendência, 14 crianças, que veio a morrer mártir de parto, mas pelo imenso amor de Shah Jehan a ela ficou imortalizada numa das sete maravilhas do mundo, o Taj Mahal.  Dara Shikok por sua vez teve grande amor pela sua mulher Nadira Banu Begum, filha do sultão Parvez Mizra (2º filho de Akbar, a quem não sucedera) e ainda sua prima, com quem casou para sempre e unicamente, ao contrário dos seus antepassados que tiveram muitas mulheres, em 1-II-1633, desconhecendo-se que influências ou então génio pessoal se exerceu em tal escolha fiel.
Nadira desenhada pelo seu amado Dara.
Entre as suas  irmãs e irmãos destacou-se a mais velha, Jahanara Begum (23-III-1614 a 6-IX-1681), também alma mística, muito amiga de Dara e autora de uma biografia do mestre fundador da ordem Qadiria, o persa Abdul Qadir Al Gilani. 
Jahanara Begum 1641, she was'nt allowed to rule
Jahanara Begun, a irmã mais velha de Dara
                                  
 Nesta fraternidade ou Ordem Qadria ou Qadiriyya, Dara Shikoh foi iniciado pelo mestre  Mian ou Miyan Mir (11-VIII-1550 a 11-VIII-1635), em 1640,  e depois recebeu ainda ensinamentos e bênçãos do seu sucessor Mullahi Shah Badakshi (m.1661).   Eles davam bastante importância ao desapego do mundo e ao amor a Deus através da meditação e oração, nomeadamente com a repetição duma fórmula, o zikr, a respiração (por exemplo, com a associação na expiração a La Illaha, e na inspiração a Illalah), a concentração interior e a audição do silêncio ou do som interno, prática esta desenvolvida por alguns yogis e sufis, e por Dara Shikoh, que a elogiou como o "Sultão das práticas".
Dara Shikoh, de cor de laranja, dialoga com Mian Mir e Mulla Shah
Dara Shikoh, ardente proponente da Unidade divina (tawid), num direcção até algo pancósmica, e da religião e via iniciática como meios de religação a Ela, grande leitor, praticante meditativo e agraciado místico, teria de começar a gerar obras e assim em 164o dava a luz a sua primeira obra,  a Safinat-ul-Auliya, onde juntou as vidas e os melhores ditos de 33 mestres sufis da ordem Qadaria em que fora iniciado. O prefácio dela é uma preciosidade e traduzimos o início dela num artigo deste blogue, https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2023/03/dara-shikoh-um-principe-mogol-e-faquir.html. 
Seguiram-se mais quatro livros de vidas de santos e de conceitos e ensinamentos  do Islão, o Sakinat-ul-Auliya  em 1643, o Risala’i Haq Numa, em 1647,   o Tariqat-ul-Haqiqat, o Caminho para a Verdade, e o Hasanat-ul-Arifin, os Aforismos dos Santos,  em 1653, no qual ainda que consagrada ainda só aos santos e mestres do Islão, Dara Shikoh mostra o seu lado ecuménico ao citar o mestre indiano Sri Bawa Lal com quem então começara a dialogar: «Bawa Lal Mandiya é um perfeito Arif (místico);  não vi ninguém na comunidade hindu que seja igual a ele em majestade e firmeza. Ele disse-me: "Em cada comunidade há arifs e seres perfeitos (insan-i-kamil) através dos quais Deus partilha o conhecimento libertador ou salvífico".»
 Tal como seu bisavô Akbar (1542-1605), que realizara desde 1567 na Idabat Khan, a Casa da Adoração, em Fatepur Shikri, com os padres jesuítas vindos de Goa,  valiosos diálogos  ou mesmo debates acalorados, tal como os cronistas jesuítas e persas relatam, entre jainas, zoroastros, sunis, shias e cristãos, Dara Shikoh deu-se  especialmente com mestres sufis, yogis indianos e o padre flamengo Henrique Busée, e foi de facto um ecuménico, um pioneiro do comparativismo religioso não só textual mas também frutificador internamente e nisto a sua lembrança será eternamente louvada e acolhida.  
Será partir de 1653 que a linha muito pioneira de comparativismo entre sufismo e yoga surge à luz com o seu diálogo com o Yogi Bawa Lal Das Bairagi, publicado no Mukalima-i-Dara Shikuh wa Baba Lal, onde relata os sete encontros que tiveram e as conclusões a que chegaram
                                           
   Dara Shikoh, pintor e poeta, deixou-nos o seu próprio Diwan, antologia de quartetos e ghazals,  que andou bastante tempo perdido, mas que hoje inspira almas no Caminho, tal como foi o meu caso em dois poemas que estão neste blogue. (https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/10/do-diwan-de-dara-shikoh-em-portugal-ii.html). 
Oiçamos três dos seus quartetos:
 
                     «Não vimos um átomo separado do Sol,
                    cada gota de agua é o mar em si mesmo.
                    Com que nome se deve chamar a Verdade?
                - Cada nome que existe é um dos nomes de Deus.
 
Os que veem Deus no mundo espiritual,
deves saber, vêm-no primeiro neste mundo.
A visão de Deus é uniforme em ambos os mundos,
em cada momento o veem no visível e no íntimo.
 
O rosário falou-me numa língua estranha!
Disse: - Porque fazes a minha cabeça rolar?
Se fizesses em vez disso atenção ao teu coração,
conhecerias o objectivo subjacente à vida humana.»

                                                    Dara Shikoh - Wikipedia
Numa valiosa nota autobiográfica sobre o seu avanço no caminho interior, confessa-nos: «Este Dara Shikoh pertence à classe de devotos que são atraídos naturalmente para Deus, sem a realização de quaisquer austeridades. Ele veio a conhecer os mistérios da Divindade, através da graça dos santos e amigos de Deus. Beneficiou da sociedade desses Mestres, e investigou a verdade dos seus ensinamentos».
Dara Shikoh com sábios sufis...
 Bibliófilo bem diligente viajou e adquiriu muitos livros em persa, em árabe e em sânscrito ligados ao caminho espiritual e religioso, ao científico e poético, tendo mesmo fundado três bibliotecas em Srinagar (com um jardim especial, uma arte muito desenvolvida pelo seu avô), Delhi e Agra, esta com a parede em vidro e servindo de janela para o rio Yamuna. 
 Também o médico italiano, que esteve algumas vezes em Goa, Niccolao Manuci (1638-1717), deixou na sua Storia do Moghor, já que era o médico particular de Shah Jahan e de Dara Shikoh, bastantes dados sobre a época e as duas grandes almas que eles eram, as quais liam muito tanto os poetas persas antigos e contemporâneos como os indianos, já que sabiam hindi, conhecendo-se alguns dos nomes dos indianos que mais privaram com eles, tais como Sundara Das, Acharya Kavindra e Chintamani.
Na sua linha pioneira de orientalista espiritual, Dara Shikoh fez traduzir em 1650 para persa, as principais pérolas da tradição indiana, o Yogavasisha, e a seguir a Bhagavad Gita, o Prabodha Chandrodhaya, a Lua Nascente do Conhecimento, de Krishna Misra, por Banvali Das, e o Ramayana por Ibn Har Karan. 
E ordenou e coordenou em 1657 a primeira  tradução de 50 das 108 Upanishads, denominada Sirr-i-Akbar (O Grande Segredo)  do sânscrito para persa, vindo depois a ser traduzida  na Índia para o latim pelo francês  Anquetil-Duperront (1731-1805), sendo impressa finalmente em Paris em 1801, tradução  que permitiu ao Ocidente conhecer esses textos mais profundos da espiritualidade indiana, sendo então admirados e comentados entusiasticamente por Schopenhauer, Schlegel e outros. 
 A tradução do Yoga Vasistha, um dos ensinamentos mais fortes de Yoga Advaita Vedanta, que ficou denominada em persa Jug Bashist, foi realizada por Dara Shikoh ter uma noite sonhado com o rishi (poeta vidente)  Vasistha e o avatar Ram Chandra (os dois dialogantes do poema), com Vasistha a pedir a Ram Chandra que abraçasse Dara Shikoh, o que ele fez, pedindo depois Vasistha que Sri Rama (ou Ram Chandra) desse algum prasad, ou doces abençoados, o que este ofereceu a Dara, que os comeu. Tratou-se duma "clara" iniciação yoguica recebida nos planos subtis por Dara Shikoh, que sentiu então que deveria traduzir a principal obra do grande e lendário Vasistha, o Ramayana.
Dara Shikoh escreveu ainda a Bússola da Verdade, de ensinamentos iniciáticos e, finalmente, em 1656, o Majma' ul-Bahrain, Acerca da Junção dos dois Oceanos, uma das primeiras obras de religiões comparadas, no caso sufismo islâmico e yoga vedanta indiano, que traduzi do inglês e comentei em vídeos no Youtube.
Entre os sábios ou pandits indianos que acompanhavam Dara na sua meritória tarefa de aproximar Islão e Sanatana Dharma, tais como Jaganath Mishra, Pandit Kavindracharya  Banwali Das, houve um  que quando ele morreu foi contratado pelo famoso viajante François Bernier (1620-1688), e peregrinou com este três anos, apresentando-o a outros brâmanes, de que Bernier dá testemunhos  na sua famosa obra publicada em 1659 Voyages (...) , no fundo continuando a missão ecuménica do seu senhor Dara Shikoh e na qual de certo modo François Bernier colaborou.
Na luta pela sucessão ao trono mogol de Shah Jahan, quando este adoece em 1657, e desencadeada pelos irmãos Shah Sahuja e Murad,  Dara manteve-se calmo, embora fosse  o legítimo herdeiro, tal como seu pai queria, mas após escaramuças e movimentações viria a ser derrotado em 30-V-1658, na batalha Samargad, perto de Agra, pelo irmão Aurangzeb, auxiliado por  Murad,  os quais conquistando Agra, a riquíssima capital,  depuseram o pai, tomando o poder Aurangzeb, em 8-VI-1658. Shaj Jahan recuperará a saúde e viverá preso num pequeno palácio com vista para o sublime Taj Mahal, que se construía em memória da sua mulher, até deixar a Terra a 22 de Janeiro de 1666.
Aurangzeb era
um ambicioso e criminoso, ortodoxo fanático e  cruel, e desde 1752 acusava  de infidelidade ao Islão Dara Shikoh devido ao seu interesse pelo hinduísmo e pelos textos de outras religiões, que de facto ele estudava e valorizava. Após mais algumas batalhas, Dara, o seu filho Sipihr Shikoh e duas filhas e os seus fiéis, já em fuga, foram atraiçoados por um chefe afegão Junaid Khan Barozai (Jiwad Khan), que os entregou ao exército de Aurangzeb em 10 de Junho de 1659. Depois de ser humilhado desfilando com grilhetas em Agra, embora com Jiwad Khan a ser apupado e apedrejado já que povo amava Dara, foi assassinado por quatro dos seus esbirros e mutilada a sua cabeça em seguida pelo próprio Aurangzeb, na noite de 30 de Agosto, terminando assim a sua peregrinação como um mártir... Muita luz e amor para Dara!
 
Fiquemos com este ensinamento do  luminoso Dara Shikoh extraído do Acerca da Junção dos Dois Oceanos, que traduzi e li, encontrando-se no Youtube: 
«Todo o que adormece, e vagueia pelo mundo de Malakut (o mundo subtil ou imaginal), quer esteja consciente dos seus ambientes, ou inconsciente, faz isso porque a sua alma assume um corpo muito refinado, que é a exacta contra-parte do corpo físico, com olhos, ouvidos, língua e todos os órgãos de sentidos e órgãos funcionais internos, sem contudo ter os órgãos físicos externos de carne e sangue. 
Quem quer que tenha o seu coração refinado, e despertou, vê neste mundo subtil ou imagina, Malakut, formas refinadas e belas, ouve música maravilhosa e come deliciosos alimentos. Mas aquele cujo coração está carregado de grosseria e não está desperto, vê formas horrorosas e ouve sons desagradáveis, durante os seus devaneios no sonho. 
 Portanto, ó amigo! Se praticares com diligência e perseverança, os métodos de meditação descritos mais à frente, a ferrugem do teu coração será removida, e o espelho da tua alma tornar-se-à brilhante, e verás reflectido nele as formas dos profetas, santos e anjos. (...)». 
E eis-nos com uma boa descrição da meditação conseguida, quando diminuídos ou dissipados os véus, poeira, dureza ou ferrugem do coração  os olhos e espelhos da alma se abrem às visões, visitações e locuções luminosas, que tanto abençoam seja os místicos persas e mogóis, seja as sorores místicas portuguesas, certamente conforme o mundo imaginal e os santos ou mestres a que estão ligados.
 Concluamos com alguns ensinamentos resumidos do seu concentrado manual acerca de várias doutrinas do Islão, o  Tariqat-ul-Haqiqat: 
 «Como o mundo é transiente e ilusório, o desapego ou desprendimento é fundamental. Mas como a vida terrena é curta é importante a boa utilização do tempo, para se vencer a ignorância e atingir-se o conhecimento e a felicidade. 
Para que a fonte do coração seja preservada das ambições e ilusões mundanas, convém que a mente e alma  não estejam sempre desassossegados mas que sejam antes espelhos calmos e puros.
Para se chegar ou estar mais no Eu verdadeiro há que renunciar-se aos impulsos e obstáculos egoístas, às hipocrisias e dúvidas e ser-se o mais sincero possível de modo a ver-nos e aos outros como seres de luz, seres iluminados.»
                                          

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