Manuel Augusto Cardoso Marta (Figueira da Foz, em 1882 e 1958), estudante no seminário de Coimbra e republicano, professor nas Escolas Móveis e na Escola Industrial Fonseca Benevides, jornalista, fundador de revistas (Feira da Ladra, e Nova Gazeta de Lisboa), poeta e etnógrafo, no seu 28º e último livro, Corpo e Alma, inseriu uma carta do "poeta insigne" Eugénio de Castro, de 1941, quando Cardoso Marta lhe enviara o manuscrito, e que se torna o prefácio da obra finalmente impressa na Figueira da Foz em 1957. Eis o elogio de Eugénio de Castro (1869-1944): «é um livro de relevo, de notável avanço espiritual sobre a anémica poesia dos nossos dias (...) e desejava que os Deuses lhe ponham a virtude e selo do triunfo».
A obra contem vários sonetos "magníficos", tais como Menino e Moço, Amor, Ela, Ramaiati (Índia) e Serra da Boa Viagem (Figueira da Foz), alguns dedicados a amigos como Matos Sequeira, Natália Correia, Aquilino, Francisco Lage, Jaime Lopes Dias, e cinco sonetos sobre escritores: Bocage, Camilo, Junqueiro, Cesário Verde e Antero de Quental. E é o deste que transcrevemos, pois assinala um acolhimento bem luminoso da poesia, palavra e logos fulgurante do vate e líder da geração de 70, embora exprimindo-se nas duas quadras iniciais sob uma forma bastante espectrizante, aliás de acordo com muita da poesia do famigerado poeta açoriano. Oiçamo-lo:
A ANTERO DE QUENTAL
«Quando a noite, espalhando o véu sombrio,
esconde em treva a terra adormecida;
quando a razão sucumbe, esmorecida,
ao terror do ignoto e do vazio;
quando surge, num gélido arrepio,
a nocturna visão indefinida;
às horas em que a Morte espreita a Vida
na máscara dum ricto escuro e frio;
abro o teu livro, Mestre. E já cerradas
essas páginas rútilas, vibrantes,
duas auroras, duas madrugadas
nascem e casam-se em abraço estreito:
a que apaga as estrelas cintilantes
e a que acendem teus versos no meu peito.»
«Quando a noite, espalhando o véu sombrio,
esconde em treva a terra adormecida;
quando a razão sucumbe, esmorecida,
ao terror do ignoto e do vazio;
quando surge, num gélido arrepio,
a nocturna visão indefinida;
às horas em que a Morte espreita a Vida
na máscara dum ricto escuro e frio;
abro o teu livro, Mestre. E já cerradas
essas páginas rútilas, vibrantes,
duas auroras, duas madrugadas
nascem e casam-se em abraço estreito:
a que apaga as estrelas cintilantes
e a que acendem teus versos no meu peito.»
Eis um profundo soneto em que Cardoso Marta afirma em si algo que Antero de certo modo vivenciou, batalhou, sofreu:
«quando a razão sucumbe, esmorecida,
ao terror do ignoto e do vazio».
ao terror do ignoto e do vazio».
E nesses momentos de dúvida vividos na noite, em sintonia com a vida e morte do poeta-filósofo, nessas horas de travessia nocturna, sob o tremendo mistério da vida que esmorece a razão, Cardoso Marta, relendo os poemas de Antero Quental, sente dentro de si o milagre da concordância da aurora exterior e da interior pois realiza rutilantemente (de rutilus, cor de fogo, resplandecente, brilhante) as forças luminosas e vitoriosas que certos sonetos de Antero encerram madrugantemente e lhe transmitem num abraço não espectrante mas auroral, fulgurante, cintilante. Não admira pois que o sinta e chame com gratidão e amor:
« abro o teu livro, Mestre. E já cerradas
essas páginas rútilas, vibrantes ...»
essas páginas rútilas, vibrantes ...»
Anote-se que outro soneto, Regresso, tem como epígrafe inicial o verso de Antero "Só quem teme o Não-Ser é que se assusta", e nele Manuel Cardoso Marta dialoga com o espírito-irmão de Antero, muito ascensionalmente e com fé no seu Deus:
«Se acaso é um cobarde quem receia
o Não-Ser, oh meu Mestre e meu Irmão,
eu não n-o temo e tenho a convicção
de um Mais-Além, por que a minha alma anseia.
E tanta vez me alucinava a ideia
da volta ao Nada, sem continuação...
Já não me assusta a eterna escuridão!
Há um Deus que condena e que premeia.
Torne, Senhor, de novo a fé; também
torne a esperança à razão já convencida
e asas que, sendo filho, eu te mereço.
Ó minha ingénua crença antiga! Ó Mãe,
que me ensinaste a crer numa outra vida
melhor do que o desterro em que apodreço!»
Manuel Cardoso Marta era um republicano, socialista no bom sentido, etnógrafo, amante do povo português e das suas tradições (danças, folclore, gravura popular, humorismo), grandes almas (jornalistas e escritores figueirenses, Antero, Camilo, Eça de Queirós) e história consagrando-lhe vários livros e orientando exposições e revistas. Deu-se com muitos escritores, poetas e investigadores e neste blogue encontra um livro que lhe foi oferecido por Carlos Sombrio https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/06/carlos-sombrio-artista-da-figueira-da.html
Sem comentários:
Enviar um comentário