quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Do Amor. Reflexões sobre os seus níveis e as suas potencialidades e como estamos e iremos estando face a ele.

Consciencializar-nos mais do estado de Amor em que estamos não é  frequente nas pessoas, pois em geral só nos damos conta de tal nos momentos de maior felicidade-infelicidade, ou então de  convivialidade, de enamoramento ou de sintonia e entrega recíproca grande ou plena. Daí até, e por muitos mais motivos, o famoso dito " O amor é cego", que já desenvolvemos em alguns textos neste blogue.

O Amor é cego, na tradição da olaria de Vila Viçosa. Fotografia antiga de pessoa amiga...

Ao começarmos a realizar mais regularmente esta auto-consciencialização amorosa, como uma forma de auto-conhecimento acerca do que nos impede de sentirmos o amor, de estarmos em amor, de discernirmos as causas que o acendem ou intensificam em nós, damo-nos então conta conta das nossas pequenas tendências, falhas, erros e defeitos que frequentemente nos ensombrecem e enfraquecem ou, por outra perspectiva, nos desviam do nosso eixo e ser interior, do verdadeiro amor, e dos estados ou movimentos  naturais que o apoiam, tais como o respirar e absorver as energias vitais cósmicas e amorosas, o estar direito e ligar bem a terra e o céu, o viver harmoniosamente, o estar grato e o emanar empatia e amor nos ambientes.

A pluridimensionalidade do Amor, que se manifesta humanamente como sentimentos, emoções, hormonas, desejos, forças atractivas,  capacidade de entrega e de unidade e ainda, ou sobretudo, abertura  e comunhão com a energia espiritual da fonte primordial do Amor, a Divindade, será sempre uma realidade, por tão profunda, subtil e infinita,  difícil de ser auscultada e sentida na sua origem, sendo por isso necessária uma constante tentativa de nos alinharmos com o Amor, o que se poderá até chamar de "orar sem cessar", com certas jaculatórias ou mantras praticados e por cujo fluxo diário regular tentamos vencer as contrariedades e opressões e religar-nos ou mesmo adentrar-nos pela porta do coração, meio natural de conexão sensível ao Amor.
Como podemos então melhorar a nossa realização do Amor?
Certamente que estando mais auto-conscientes, orando-mantrizando-meditando mais e amando melhor as pessoas, o amado-amada,
animais, seres, livros, coisas, causas, ideias e ideais, o universo, a Divindade. E tal realiza-se por actos, pelo sentir-pensar interior e pela aspiração a tal.
As orações, mantras
e cantos,  exercícios, esforços, sacrifícios, dádivas, peregrinações, osmoses amorosas são pois os modos mais conhecidos e eficazes de tentarmos sintonizar, absorver, ressuscitar, intensificar e irradiar o Amor,  e assim escaparmos à distração e inércia, desânimos e esmorecimento, ou ao pouco entusiasmo (en-theos = em Deus, em amor) que possamos sentir-nos, em geral por estarmos a vivenciar injustiças ou opressões sociais e mediáticas e também uma identificação ilusória ou condicionadora e, logo, não alinhada com ele, ou aberta a ele, Amor...
Mas na realidade que factores são esse que causam mais então essa inércia ou enfraquecimento, que
diminui a chama do Amor em nós?
São sobretudo a dispersão mental, o medo, o receio, o desânimo, o
sofrimento, a doença, os quais,  fazendo-nos identificar com aspectos parcelares ou limitados da nossa pluridimensionalidade, nos tapam aos raios do fogo do Amor ou nos desviam dele. Mas como todos temos de atravessar alguns destes aspectos mais difíceis da vida humana e social (e muito intensificados hoje pela profusão da aterrorização anímica exercida pelos meios de informação a soldo de políticos e financeiros) deveremos saber vencê-los exactamente com o fogo do Amor inteligente, que discerne o que deve e não deve ser absorvido e amado, e que é simultaneamente ainda o fogo da aspiração a estarmos mais religados com a nossa essência espiritual, o espírito ou atman, com o universo luminoso, com a Divindade e com os seres que mais amamos ou reverenciamos...
Embora haja seres que se consagram às religiões e vivam celibatariamente, e melhor ou pior pois há certamente alguma artificialidade e dificuldade nisso,
a maioria das pessoas  casa-se ou vive com alguém, pelo que podemos deduzir que essa é a forma social mais fundadora e preservadora do amor e mais protectora do relacionamento e da família, e das múltiplas possibilidades benéficas que ele gera ou intensifica, sendo até diminuidora (embora por vezes também não dada a imaturidade da relação ou os desequilíbrios psíquicos fortes de alguns), de conflitualidade nas sociedades.
Havendo no passado (por razões de proporcionalida
des populacionais, provavelmente, e estudos antropológicos confirmá-lo-ão), e ainda hoje, tradições e povos com casamentos polígamos e poliândricos, podemos interrogar-nos se  o casamento e o amarmos plenamente alguém diminui quando amamos, a vários níveis, várias pessoas. E como a tendência de pouca responsabilidade do amar fiel e totalmente é  hoje crescente, por diversas razões, será que tal irá enfraquecendo ou destruindo o matrimónio e a família tradicional, pondo em causa uma instituição tão antiga quão insubstituível?
Em princípio, como o amor é a irradiação natural do coração, e ainda
mais se a pessoa estiver num caminho espiritual, não deveria haver conflito entre amarmos mais totalmente uma pessoa e amarmos gostarmos e desejarmos o bem de outros. A diferença está no casamento, ou na relação assumida como tal,  haver a valorização de um ser com o qual tentamos realizar a unidade de corpo, alma e espírito, enquanto nos outros a unidade é cultivada apenas animicamente, no desejar e querer o bem dela, sem se desejar ou haver a fusão corporal, psíquica e espiritual em simultâneo.
A durabilidade do Amor total ou mais pleno com alguém, em que há a entrega plena de um ao outro,  implica uma vontade comum de
querer preservá-lo, cultivá-lo, aprofundá-lo. Ora nas relações matrimoniais ou de amor com mais de um ser, além da divisão do tempo e dedicação amorosa segundo preferências, há uma diminuição ou enfraquecimento das forças ascensionais conjuntas que deveriam elevar o casal até estados de comunhão com a Divindade, em si também contendo a polaridade unidade, em nós, daí que se recomende bastante a fidelidade à tentativa do aprofundamento da unidade polar com alguém.
Frequentemente também, por alguns conflitos, choques, discussões, um bom
relacionamento polar pode esfiar-se, romper-se e logo perder-se uma oportunidade que estava já em andamento de se obterem os altos benefícios da relação amorosa profunda, e que se quer duradoura ou mesmo para sempre, tal como algumas religiões e tradições de diferentes modos tentaram ensinar e enquadrar por conhecimentos, rituais e cerimónias, obrigações e promessas, que constituíram as formalizações estruturantes do referido casamento.
No fundo trata-se dos seres conseguirem na sua assunção, partilha e
irradiação do Amor  ligarem-se bem entre si e despertarem mais enquanto seres e corpos físicos e psico-espirituais e logo trazerem até si as bênçãos divinas, que deverão sentir, ou mesmo ver no olho espiritual, e depois frutificar e irradiar. E neste aspecto a relação amorosa, a fusão corporal e anímica realizada com plena consciência de estarmos a exercer o poder ou a função criativa da Divindade, sob o Seu ver, ou invocação ou bênção, é fundamental para o crescimento espiritual dos dois seres, de tal modo que alguns mestres intuíram e descreveram ou ensinaram a ascensão espiritual à Fonte divina do Amor, nessa polaridade, tal Dante, Marsilio Ficino, Bô Yin Râ...
Na Índia viveu-se, especulou-se e meditou-se muito o Amor, tanto mais que o Yoga do Amor, o Bhakti marga, o caminho da Devoçã
o divina, foi muito trabalhado, mas sempre acompanhado de modos de sacralização dos corpos e da união física, tais como os que se encontram nas escrituras ou agamas tântricas, para além de se ter compilado mesmo um Kama sutra, literalmente os sutras ou ensinamentos do Desejo-Amor, no qual tantos conselhos, posturas e sinais se registaram quanto aos corpos e à união amorosa da polaridade-dualidade seja no simples prazer seja já para se alcançar a unidade, tão tipificada ou arquetipizada em Shiva e a Devi-Shakti-Parvati-Uma-Gauri.
A essencialidade do Amor entre os seres humanos é bem desenvolvida na filosofia Shivaísta, ao contrário da Advaita Vedanta, já que aquela defende que Maya, o poder de manifestação divina, não é uma ilusão m
as sim um aspecto  essencial da Divindade consciente. O mundo não é  uma ilusão pois dentro dele está subjacente a Divindade enquanto Shakti, a energia activa, a qual é  Amor activo e na procura da felicidade (ananda) e unidade. Donde a equação despertante da unicidade de Maya e Shakti e que se  pode tornar, para quem a realiza, a Maha Shakti, a grande energia ou mesmo Deusa infinita...
O grande problema da maioria das pessoas, sobretudo ocidentais algo traumatizadas pelo judaico-cristianismo, é pois não conseguir sentir mais ou
realizar a shakti, a força amorosa e unitiva  em si e no universo, dado  a sua mente estar mergulhada em preocupações e divisões, em rotinas e hábitos, preconceitos e dogmas, e não conseguir erguer-se fisicamente nem psiquicamente acima de tal, ou para fora de tais encadeamentos horizontais limitadores. Para isso teria que se exercitar no despertar e no mais amar, ou seja, no agir com intencionalidade consciente,  vencer a sua inércia, desânimo, medo ou instintividade, limitações obstructoras na Índia designadas ou incluídas-caracterizadas na guna (qualidade da matéria) Tamas, e desenvolver o fogo do Amor pela meditação, a admiração,  aspiração ao Bem, a acção benéfica ou bondosa e a comunhão amorosa, contemplativa ou adorativa.
O Fogo do Amor é então um subtil potencial divino que pode ou não ser actualizado a cada momento da nossa vida e a vários níveis, o que nos convida ou obriga a sermos generosos e criativos, para que tal Lume
dos lumes não fique apenas na instintividade ou egotizado e possa antes atingir a sua entrega máxima no ser complementar ao Divino, ou então sublimar-se na entrega seja ao Mestre ou Guru, seja à Divindade, esta manifestada segundo a forma, concepção ou nome que merecemos ou com que é mais por nós acreditada, adorada, amada, esperada. Ishta Devata é a designação indiana de tal realização pessoal interior da Divindade, algo que  mestres como Ramakrishna, Ranade e  Bô Yin Râ também valorizaram, este último consagrando-lhe o título do seu escrito mais importante, O Livro do Deus Vivo, em nós, que espero em breve reeditar e do qual transmitimos uma das suas tão valiosas pinturas.

                             

Sejamos então capazes  de estar mais unidos à fonte íntima do Amor e vivenciar valiosas realizações nos seus diversos níveis ou campos, para que o Amor, a Compaião e a Harmonia estejam mais vivos e activos em nós e no mundo e nos vão transformando subtil e consciencialmente em seres  espirituais mais despertos e luminosos, corajosos e  plenos.

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