quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Do Amor Primordial e dos seus mistérios e poderes. E dos seus portadores e desafios actuais. Com texto de Pico della Mirandola.

O Amor, dito todo poderoso por almas místicas, amantes e iniciadas, jaz nas nossas profundezas e se não o encontramos permaneceremos incompletos, semi-mortos.
Há então que tentar com persistência encontrá-lo e trazê-lo ao de cima, pois é fundamental como alimento e substância no corpo e na alma, já que é quem mais nos pode fortalecer e libertar de muitas limitações, medos e prisões.
Onde demandar e encontrar então o Amor? Como chegarmos ao seu lume na profundidade e gruta?

Sabemos que ele é mais sensível e realizável no peito e coração. Que se manifesta nos olhos e sorriso. Mas bastará sermos bons, alegres e irradiar vibrações e sentimentos de amor?
Mas se amor é cósmico e fundamenta constitucionalmente os seres e coisas, para o realizarmos mais precisamos de nos abrir ao Alto, à sua Fonte Divina e recebê-lo, purificando-nos, para só depois o podermos transmitir e vivenciar.
Como tanto um nível como outro são reais, o íntimo e o cósmico, quando amamos verdadeiramente alguém o nosso coração religa-se mais ao Amor e irradia directamente, plenificando, harmonizando e curando tal pessoa e indirectamente as outras. E quando estamos conscientes de nos abrimos à Fonte Divina, ao Amor Divino, então o fogo do Amor em nós ainda é mais forte, e somos Amor independentemente de amarmos alguém em especial. Não é contudo fácil mantermos esta união do fogo interno acesso com o fogo Cósmico e Divino, o qual, como vimos, podemos sintonizar e receber seja do alto e do cosmos, seja do íntimo e da imanência divina. Portanto, esteja mais irradiante do seu corpo espiritual, ou pelo menos lembre-se mais dele e do Amor no dia a dia, activando-o até por orações, mantras, gestos, actos e ir-se-á transformando e aperfeiçoando na ligação ao Amor.
Há quem pense que o amor é o mesmo que a libido e que jaz no fim da coluna como energia nervosa e de vida e sexualidade, e que quando mais desperto, orientado e elevado, mais torna a pessoa alma em amor e feliz. Contudo, o amor é mais elevado e fundo que a dependência da libido ou das hormonas, pois enquanto corrente e lei da atração universal e divina, enquanto energia criativa divina primordial, permeia-nos, constitui-nos, manifesta-se mesmo independentemente do desejo sexual, da libido, da química neuro-fisiológica, mais dependendo da nossa vontade, interiorização sintonizante e irradiação.
Por muitos níveis pode o Amor irradiar ou manifestar-se: pode ser apenas pelo coração e peito, tal como pelo sentir e os sentimentos, pode ser pelo 3º olho, tal como raios, pensamentos, forças, pode ser pelas mãos e gestos que limpam, transmitem e curam, acariciam e abraçam, pode ser pela voz e as palavras que clarificam, curam, deliciam, reconfortam, serenam, entusiasmam, elevam e certamente pelos órgãos sexuais e a boca, nomeadamente nos momentos de mais intima comunhão e fusão.
O amor manifesta-se sobretudo pela irradiação do coração e graal da nossa alma e corpo espiritual, na sua intencionalidade de empatia e unidade. Este coração subtil é um órgão bastante mutável nas suas filigranas irradiativas pois ressoa com tudo o que vemos e sentimos, e está ainda ligado aos outros órgãos corporais conforme cada pessoa.
Nuns está mais adormecido, noutros mais desperto. Pode-se pensar que a vida em parte se destina a despertar e purificar, fortificar e aperfeiçoar o coração, pois em muitos ele está estreito ou fechado, insensível ou empedernido, ou mesmo maldoso e cruel, e já noutros bem mais aberto e largo, artístico, fraterno, compassivo, espiritual. Nuns está muito ligado ao ventre, noutros ao sexo, noutros ao dinheiro, ao poder, à vaidade, e neste sentido o amor é na nossa alma um proteu, pois faz-nos assumir as formas do que desejamos ou amamos, tal como Pico della Mirandola no início do Renascimento expôs bem na sua Oração da Dignidade Humana, dignidade hoje tão oprimida, degradada e assassinada: 

Pico della Mirandola, na pintura quinhentista que foi do prof. José V. de Pina Martins, na sua Biblioteca de Estudos Humanísticos, e que tantas vezes saudei e toquei. Segue-se versão minha da Oratio.
 «Ò suma liberalidade de Deus Pai, suma e admirável é a felicidade do Homem! A quem é dado ter o que opta, de ser o que quer (...). Ao ser humano nascente, todo tipo de sementes e gérmens de vida foram dados pelo Pai. As que ele escolher e cultivar farão os seus frutos nele. Se vegetais, planta se torna; se sensuais, afogar-se-a; se racionais escapa celestialmente do animal; se intelectuais, será um anjo e um filho de Deus, e se, não contente com a sorte de qualquer criatura, se recolhe no centro da sua unidade, o espírito tornado uno  com Deus, na sombra solitária do Pai que foi constituído acima de todas as coisas, estará acima de todas. Quem portanto não admirará o nossa camaleão, ou duma maneira quem poderá admirar mais outrem? Asclépio não errou ao dizer que nos Mistérios devido à sua natureza mutável e susceptível de se transformar, se designa este ser por Proteu.» 

Foi também dito que para as pessoas despertarem e se metamorfosearem é necessária a descida da Graça e por tal creio entender-se que o amor nas pessoas surge, brota ou irradia mais se há ligação psico-energética com o Amor Divino, com a Fonte do Amor, com a sua Graça, o tal fazer-se um com a Divindade no seu íntimo, no dizer de Pico della Mirandola, pois sem dúvida a oração, a meditação, a contemplação, a adoração diária, e uma vida justa e corajosa, alinham-nos mais com o Amor e abrem-nos às suas graças ou dimensões livres e divinas....

Perguntam alguns, mas onde está mesmo a Fonte do Amor? No céu, algures lá no centro do Infinito, qual palpitante Big Bang perpétuo, derramando, qual Sol dos Sóis, partículas, raios e centelhas-seres emanados e constituídos em Amor?

E a Lua, sobretudo quando Lua cheia, não é também uma fonte do Amor, ainda que indirecta, onde nos podemos inspirar, e o amor recolher e absorver, e nos dias seguintes mais irradiar?

Tal como é no Macrocosmos assim é no Microcosmos, e na realidade o Homem e a Mulher devem tornar-se também sóis centrais e luas reflectoras, anímica e espiritualmente, irradiantes das poderosas energias do Amor, que jazendo dentro de cada um potencialmente só pelo nosso dinamismo meditativo e activo despertam, irradiam criativamente, clarificam libertadoramente.

Assim o segredo da operatividade do Amor não é tão difícil: há apenas que querer manifestar o Amor Divino primordial e poderoso perseverantemente, e em certos momentos mais intensificadamente, seja na aspiração à ligação à Divindade e ao Amor, seja vivendo-o e partilhando-o em compaixão, paixão, adoração, cuidado.

O Amor é um fogo devorador, foi dito e sentido por alguns, pois é uma energia ígnea expansiva que se quer comunicar, dar, receber, ligar, unir, clarificar, iluminar. E onde há afinidade e receptividade, ele arde com intensidade e durabilidade, podendo em certos casos tornar-se uma paixão transbordante dos limites da saúde normal e logo devoradora, seja dos egos e limites, seja das reservas energéticas e obrigações gerais.

Saber discernir o que damos e que nos devora, que combustão estamos a realizar e se as forças do Amor Divino estão a ser invocadas, mantidas, contactadas, é certamente um tomar do pulso necessário seja na entrega a activismos e altruísmos, seja ao amor pleno entre dois seres.

Os antigos filósofos da Natureza animada, e não só Natureza, como querem alguns esotericistas,  designavam a correnteza  do Amor mais elevado como a Vénus Urânica ou Celestial, e assim Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Giordano Bruno, ou mesmo os nossos Camões e Faria e Sousa enalteceram-na e nela se exaltaram, à alta montanha e contemplação se guindando. Assim também nós devemos aspirar interiormente ao Amor divino e sabiamente o  manifestar humana e socialmente, sem cairmos em excessos destrutivos ou em medianias burguesas, antes sendo fiéis e cavaleiros do Amor, vencedor do ódio, da ignorância e da morte, tal como Antero de Quental e Sampaio Bruno dedilharam.

Sim, mantermos acesso o fogo poderoso da Vénus celestial encontra muitas vezes obstáculos da Vénus Terrestre, com as suas exigências de conveniências, aparências,  confortos, receios e excessos. A que se junta toda a dispersão consumista e alienante que a sociedade moderna tão mediatizada e manipulada derrama sobre os seres e os envolve e densifica. Face a tal temos de saber discernir, o que rejeitar ou então apoiar, atentos a como deve ser manifestado o Amor em nós, com justiça, coragem, inteligência.

Seria muito útil e necessário que se desenvolvessem famílias, grupos e comunidades, citadinas e rurais, que face aos conflitos crescentes que dilaceram as sociedades, vivessem e comungassem em Amor sábio, que fossem verdadeiros canais do Sol Primordial Divino suas energias e bênçãos e as exemplificassem e ensinassem.

Homens e mulheres que atravessem a vida como irradiantes espirituais, portadores do fogo do entusiasmo e da boa vontade, capaz de o manter acesso face ao terrorismo, ao globalismo neo-liberal autoritário e ao insensível e cheio de hubris imperialismo anglo-americano, capazes de quebrar os gelos das insensibilidades, egoísmos e distâncias, e acabar com os ódios e inimizades da ignorância, do egoísmo e do fanatismo.

Tais seres são os que avançam melhor no caminho e vão talhando o corpo espiritual, ou esculpindo a pedra bruta, por vezes sendo mesmo corajosos títans do arrebatamento instático-extático e prometaico-crístico, dispensador de Luz e Calor, verdadeiros fogos acessos na noite obscura, regatos de Compaixão e de Amor nas sociedades sem Harmonia e Justiça, tão menosprezadas pelos poderes públicos e as grandes fortunas mundiais.

     Oh Amor, arde e irradia mais e sempre em nós e no Cosmos!

1 comentário:

Maria de Fátima Silva disse...

Que o Amor Primordial esteja sempre presente em todos nós e permita alcançar e superar as grandes adversidades e desafios que nos são colocados no caminho...Belíssimo texto, Pedro. Muitas graças.