segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Robert Needham Cust, um orientalista e pastor bem sábio, fraterno e ecuménico. Transcrições e considerações sobre as suas ideias.

 Robert Needham Cust foi um funcionário público inglês, juiz, linguista, orientalista e missionário anglicano na Índia, para onde foi e saiu várias vezes, regressando por fim aos 46 anos de idade à sua terra natal, após a morte da segunda mulher num parto, e dedicando-se a escrever cerca de 60 obras, várias de temática oriental ou de história das religiões e muitas de proselitismo religioso ou de missionologia. Nascera a 24 de Fevereiro de 1821 e viveria até 27 Outubro de 1909.  Casou três vezes e teve cinco filhos. Sabia oito línguas europeias e oito asiáticas e embora formalmente anglicano estava muito avançado em relação aos preconceitos racistas ou doutrinários que regiam muitos dos seus contemporâneos, nomeadamente  os que como ele faziam parte da Church Missionary Society, ao defender a valorização e liderança de negros cristãos e as adaptações indianas do Cristianismo ou ainda admirando o Islão.

                                          

 Em 1880 publicou em Paris na prestigiada colecção Bibliothéque Orientale Elzeverienne, da editora orientalista Eduard Leroux,  Les Religions et les Langues de l'Inde Anglaise, «dedicada aos grandes sábios da Sociedade Asiática que fizeram tanto pelo Oriente e pela Verdade», agremiação fundada em Calcutá e cuja biblioteca ainda visitei e consultei, para além de ter adquirido algumas das suas eruditas obras, quando estive em 1995 seis meses a estudar no Ramakrishna Mission Institute of Culture. Anote-se que Robert Cust publicou na Royal Asiatic Society  53 artigos, tal como na Calcutta Review.  É sobretudo da leitura do livro citado que vamos fazer algumas transcrições e comentários, mas partilharemos também de outros que estão online.

Das cento e noventa e oito páginas, cento e treze são dedicadas à religião e as restantes às línguas e dialectos mas abordaremos apenas as religiosas em que a visão que transmite e as apreciações são em geral acertadas, embora o conhecimento orientalista ainda estivesse no seu começo e a sua predilecção fosse pelo monoteísmo, latente ou dogmático. Na longa lista dos principais orientalistas  apresentada logo em rodapé na 1ª página podemos ver Coolebrooke, Whitney, Max Muller, H. H. Wilson, Monier Williams e Mrs. Manning. Mas também obras valiosas como a tradução de Adi Granth, por Trump, o Essay on Phallic woship, por Kittel, o Essay on Ghosts worship, por Walhouse,  Essays on Non Aryan worship, por Dalton, e a Tree and Serpent Worship, by John Fergusson.

 É muito provável que além destas fontes tivesse tido contactos com hindus conhecedores dos textos sagrados do Sanata Dharma e por aí adquirisse um conhecimento mais directo e vivido do hinduísmo, já que refere por exemplo os que na época tentavam unir cristianismo e bramanismo e quem em Calcutta estiveram bem activos.

Embora pastor anglicano mesmo  o Islão não foi subestimado, antes pelo contrário constatamos uma boa sensibilidade a ele: «Os sacrifícios humanos, a idolatria, costumes abomináveis, ritos selvagens e o canibalismo desapareceram diante do Islão. (...) Há no Islão uma expressão da verdade eterna, um vivo reflexo desse grande facto espiritual que é, com efeito, o começo de todo o progresso: "a natureza infinita do dever" cuja consequência é que os actos do ser humano jamais perecem, que nunca desaparecem completamente; o ser humano, na sua breve vida, pode ganhar o céu ou merecer o inferno; leva consigo, escondida, uma eternidade maravilhosa ou terrível». Neste aspecto, talvez, exagerando a eternidade das penas, certamente bem longas na sua atenuação, convida-nos a vivermos mais na eternidade, e na fidelidade ao mais altos valores e ideais, já, aqui e agora. Realçará, ainda no Islão, a doutrina da igualdade dos seres humanos,  a abolição do poder sacerdotal e a certeza do dia do julgamento. 

As suas apreciações sobre os vários deuses, grupos, ordens religiosas, livros e místicos indianos são justas e dará esta tradução resumida mas certa da famosa oração Gayatri que todo o sacerdote ou brâmane deve repetir diariamente: «Meditemos sobre a luz sagrada deste Sol divino, e possa ela iluminar as nossas almas.» Destrinçará bem como no sul da Índia o bramanismo é uma camada superficial e a base e  essência é o culto da Deusa (devi, ou a kumari, virgem) ou diremos nós, a Shakti, a contraparte de Shiva, e tão cultuada pelos tântricos. Já a sua aversão aos cultos da Natureza, ao politeísmo, ao shamanismo presentes nas regiões himalaicas e noutras zonas levam-no a profetizar o seu desaparecimento e a sua inserção no budismo, bramanismo ou cristianismo, o que pouco se concretizou, tal como em especial o seu sonho de maior expansão na Índia do Cristianismo, já que o considerava como "o mais alto desenvolvimento que atingiu até agora a sabedoria humana". E interrogava-se, espantado mesmo, porque  não fizera Deus a revelação de Jesus Cristo na Índia, que considerava bem mais merecedora que a Judeia. E, coitado na sua ingenuidade de crente,  fará algumas interrogações que ao longo dos séculos vários seres puseram, e poderei referir no Oriente o padre jesuíta que abjurou e aderiu ao Budismo nipónico, Cristóvão Ferreira, confessando «o amargo pensamento que me oprime: É possível que o Pai Celeste de toda a espécie humana, que sabe o número dos cabelos das suas criaturas [uma patranha enorme...] tenha condenado tantos inumeráveis milhões de seres humanos a uma perdição irremissível; é possível que não só a única fé, que pode dar a salvação, não foi nunca revelada a imensas regiões, como também ela possa ter sido abandonada em regiões consideráveis após aí ter sido conhecida e praticada?»

Também foi curioso ter discernido a proximidade ou analogias das vidas de Buda e de S. Barlaão e de S. Josapahat, escrevendo: «A história de Bouddha, por um singular capricho do azar, é quase a mesma de S. Barlaão e S. Josafat nas lendas dos santos da Igreja Católica Romana», sabendo nós hoje bem que não foi azar mas sim uma bem urdida adaptação e invenção desses santos, tal como entre nós demonstrou num estudo valioso Margarida Correia de Lacerda, nossa professora de sânscrito e de orientalismo.

Em 1881 deu à luz em Inglaterra Pictures of Indian Life: Sketched with the Pen from 1852 to 1881 onde justifica no prefácio os seus escritos dos últimos vinte e cinco anos pelo sincero amor que nutre por ela e o seu povo, e pela vontade de a dar a conhecer a mais pessoas, profetizando ainda que se o Império Inglês não soubesse compreender as línguas, costumes, fraquezas e excelências da nação Indiana teria certamente de findar, tal como na realidade veio a suceder com a Independência da Índia obtida em 15 de Agosto de 1947 pelo Mahatma Gandhi e os seus satyagrahis, os que conservam em si a verdade, ou o que lutam pela verdade, Satya.

                                  

 Em 1895, manifestando a sua grande ecumenicidade, publica a obra  Common Features Which Appear in All Forms of Religious Belief, onde considera completamente despropositado nos seus dias lerem-se partes dos Salmos e do Antigo Testamento cheias de violência e maldade, e busca a linguagem e as doutrinas comuns a todas as religiões e que se fundamentam na demanda e adoração dum Poder superior ao humanos. Esta sensibilidade fraterna e ecuménica, reconhecendo todas as formas de espiritualidade, e valorizando as melhores mesmo de não-cristãos, leva-o a dado momento a criticar lucidamente o nosso, embora basco, S. Francisco Xavier, de facto bastante duro e até aliado da Inquisição no seu afã reformista e evangelizador no Oriente: «Há pouco tempo o Cardeal Vaugham citou a seguinte frase de S. Francisco Xavier: "Quem se pode sentar complacentemente e auto-satisfeito em casa, enquanto o Inferno está a ser enchido por pagãos?"» Isto parece ser uma afirmação muito ousada em relação a pagãos, por um espanhol pela nacionalidade, vermelho com o sangue dos protestantes e judeus, e que pode manifestar uma certa reticência ou reserva quanto às punições futuras de pecados horríveis. (...) Convicções religiosas, palavras e práticas, nunca devem ser ridicularizadas: fazer tal manifesta uma mente irreligiosa. Exibir Ídolos trazidos para casa e expô-los nos Encontros Missionários, para fazer erguer um sorriso no membros ignorantes de uma classe pouco avançada na Escola Dominical, é uma desgraça».  Todavia não soube apreciar os santos católicos nem as suas estátuas artísticas pois considerava que tinham substítuido os deuses e semideuses antigos e que «eram expressões do mesmo desejo supersticioso de conciliar alguém, ou algo, fora da concepção de Deus», não reconhecendo a existência de uma hierarquia de vizinhança com a Divindade e como tais elos intermediários são necessários e funcionam para a Humanidade. Daí o seu erro que tal crença e uso da estatuária com o tempo seria abandonada, com piedade ou rídiculo,  remetidas as peças para museus. E o que pensar do Museu vivo que ainda hoje em dia é a Índia?

 Em 1898 publica   Essays on religious conceptions, em que ainda que citando novas obras publicadas e estudadas, e afirma mesmo conhecer todas as religiões, preserva  basicamente as mesmas ideias acerca delas, ou seja, crê firmenente que Deus falara em todos os tempos em todos os povos e que se encontram dispersas neles antecipações e prenúncios da Verdade, isto é, das doutrinas do Cristianismo, pois só então com Jesus teria sido manifestada plenamente. Prenúncios segundo ele «da Trindade, Deus na forma humana sofrendo pelos humanos, presença do Espírito santo na voz da Consciência, a Paternidade de Deus expressa abertamente, a Imortalidade da Alma, um estado futuro de recompensas e punições e fé num Poderoso que salva».

Pouco antes de morrer em 1906, publicou em 1901, com 80 anos, o seu sexagésimo volume The Last scracht of an Octogenarium Pen,  trancrevendo alguns textos inéditos, distinguindo os ensaios dos livros e resumindo a sua vida e lições, nomeadamente com a metáfora de que a vida é como um cesto que se vai enchendo até chegar a hora de partirmos: não nos contentemos pois apenas em evitar negatividades, mas  enchamo-lo das melhores realizações ou coisas possíveis.

A sua abordagem à cultura, religião e espiritualidade da Índia, no Les Religions et Les Langues de l'Inde, à parte certos exageros puritanos na condenação de aspectos dos cultos shivaitas e vaishnavas, revela uma lúcida e desmistificadora apreciação, nomeadamente dos mais antigos textos sagrados indianos (entre 3 a 2 mil anos a. C.), os Vedas, da qual realçaremos este excerto: «Os Vedas são compostos de hinos, acima de mil. São tal o que devíamos esperar, e tais que ninguém das gerações posteriores poderia tê-los composto. Há uma simplicidade antiga de pensamento; os sentimentos são como de criança, os primeiros soluços, os primeiros grito  queixosos da família humana para o  Pai poderoso, que os fez, e para a natureza e os elementos, a grande Mãe, que os alimentou. E esta  infância da nossa raça e religião deve atrair as simpatias de todos os corações sinceros. Não há tentativas de cosmogonias e de conhecimento universal; não há consciência de si mesmo, e não se encontra nada que poderia de algum modo suportar as "gigantescas abominações" do Vaishnavismo e do Shivaismo. Não há menção de Rama ou de Krishna. O nome de Vishnu é de facto mencionado como aquele de um deus, que dá três passos, simbólicos do sol nascente, do meio dia e do poente ou, por outra interpretação, significando luz na terra como fogo, luz na  atmosfera como o clarão do raio, luz no céu como o sol. Shiva supõe-se ser idêntico com Rudra, mencionado em alguns hinos. Não há alusão à grande tríade hindu, nem  à  transmigração das almas, ou às castas, ou à filosofia panteísta dos sábios ou ao politeísmo vulgar dos ignorantes; não se faz menção de templos nem do monopólio do sacerdócio dos brâmanes. Não se encontra a menor alusão ao lingam. O Sol é adorado, mas não se faz menção dos planetas, a Lua está assinalada, mas nunca as constelações.»

É bem curiosa esta apreciação, chã, dos Vedas como poesia religiosa naturalista e deísta simples, talvez algo forçada ao designar por Pai poderoso, projectando-o como católico, o qual considerava o Deus único e substrato dos outros no politeísmo védico. Valiosa a constatação da simplicidade religiosa nesses tempos, mas bastante  exagerado é chamar gigantescas abominações às escolas filosófico-religiosas dos adoradores e seguidores de Vishnu e de Shiva, certamente pelo culto do phalus e do yoni, pelo tantrismo (do qual reconhece ainda se saber pouco, pois só uns anos depois John Woodrofe começaria a publicar as suas tradições comentadas) com a sua sacralização da sexualidade enquanto meio de elevação energética, de iluminação e de união, esta tão representada pelas esculturas dos deuses e deusas nos templos, e por alguns costumes mais liberais ou nus. 

Algo discutível a ideia de que o auto-conhecimento esteja ausente dos Vedas, quando neles já há ascetas e austeridades, os shramanas, nos povos que já habitavam na Índia e procuravam uma libertação o que implica portanto auto-conhecimento e um discernimento do que é essencial e ilusório. As hermenêuticas altamente simbólicas, espirituais e metafísicas realizadas por diversos intérpretes ao longo dos séculos, um dos últimos Sri Aurobindo, inclinam-se noutras direcções mais espirituais quanto às mensagens dos rishis ou videntes, os autores dos hinos dos Vedas.

Também discutível é a ideia de que não é apresentada a transmigração das almas nos Vedas pois na parte mais antiga até dos quatro livros dos Vedas, a  Rigveda Mandala 1, Sukta 24, Mantra 20, encontro por exemplo o passo seguinte: «acreditamos certamente num eterno e imortal Deu que é o dispensador do fruto das boas e más acções feitas por nós e de acordo com cuja leis nós obtemos o renascimento. Deveis saber também que o Deu único é o doador do renascimento, ninguém mais pode fazer isto. É também ele que dá nascimento às pessoas emancipadas, também através dos pais no fim do Maha Kalpa [o grande período ou éon de manifestação, ao qual alguns tolos têm tentado estabelecer limites temporais.]

Como de facto os seus escritos cobriram praticamente todas as religiões, ainda que na forma frequente de pequenos ensaios, são de se registar também algumas caracterizações que fez do Budismo, tal como a de que «Buddha inventou ou pelo menos praticou e propagandeou aberta e universalmente, através de argumentações,  destruindo as Castas, pondo de parte os sacerdotes, ignorando os Vedas e todos os livros sagrados, abolindo sacrifícios, destronando os deuses do Céu, apelando ao mais elevado ideal de moralidade, estendendo como um incentivo a absorção no nirvana. Ele foi de facto o apóstolo do niilismo e do ateísmo; pois por detrás do preceptor não há nada, e para além da morte não há nada a não ser extinção.»

Acrescentemos a sua compreensão do aparecimento do Amor espiritual (Bhakti - Prema), extraindo do mesmo livro a parte em que explica como se foi processando: «a concepção da Fé ou Amor, é largamente desenvolvida, e com ela vem o Amor, o amor espiritual tal como o terrestre. Se a penitência é o traço distintivo do Shivaísmo, se o dever é o traço distintivo de Rama, o amor, um oceano do amor, é o elemento no qual reina Krishna. Ele é o Deus presente, omnipresente, objecto de amor de milhões adoradores, aquele que satisfaz esse amor de todos, enquanto que cada um crê ter somente para si o seu amor partilhado [um característica que encontrei descrita em algumas sorores místicas do séc. XVII-XVIII em Portugal]. Não se pode ler o Gita Govinda, o Cântico dos Cânticos indiano, e a Bhagavad Gita, o maior esforço do espírito humano entregue a si mesmo, sem que não entremos numa nova ordem de ideias, já que se avançou no diapasão da Inteligência humana, bem para além dos períodos védico, filosófico e heróico [Vedas, Upanishads e Puranas].
Finalizemos com as referências que faz a uma seita shivaísta pouco
conhecida, e ao seu fundador, um mestre que foi também ministro em Karnataka, Basava, que desenvolveu com características bem nítidas de despertar do coração e da visão fraterna e libertadora espiritual, erguendo-se assim acima de dogmas e costumes: «uma das mais notáveis é a dos Lingaitas, pois ela mostra a espantosa plasticidade que assume a comunidade religiosa bramânica. Foi fundada no século XII por Basava, nativo do Decão. Os seus membros não reconhecem as castas nem a autoridade bramânica; repudiam toda a idolatria, excepto o culto do Lingam, do qual trazem uma imagem debaixo do braço e dependurada do pescoço. Nos seus templos, nenhum bramâne oficia; não acreditam na transmigração da alma, não queimam os seus mortos e permitem às viúvas tornarem-se a casar. Uma das particularidades, é a consideração que testemunham às mulheres. Eles chamam-se Jangamas [os que se movem e procuram] e são pouco apreciados tanto por Shivaístas como Vaishnavas. Vivem seja em comunidade nos conventos, seja errantes seja mendicantes. Nos censos [e hoje em dia são 6 milhões e meio], são contados como Hindus. A Basava Purana e outros livros enumeram as suas doutrinas».
Saibamos expandir a nossa con
sciência e abraçar as várias religiões e metodologias nos seus melhores aspectos e ensinamentos, práticas e realizações. Aum...

Sem comentários: