domingo, 16 de junho de 2019

Antero de Quental. "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares..."; uma hermenêutica psico-espiritual do preâmbulo.

                                   
O discurso da primeira sessão das Conferências Democráticas (ou Conferências do Casino) pronunciado por Antero de Quental, então com 29 anos e licenciado em Direito, numa das salas do Casino Lisbonense, em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871, sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos, é ainda hoje uma obra-prima da prosa portuguesa e um contributo valioso para a história da cultura e das ideias em Portugal, e embora muito reeditada e citada, há aspectos importantes dela que que não têm sido realçados pelos comentadores, em geral gostando muito dela por uma instauração da modernidade histórica em Portugal (tal Eduardo Lourenço), ou então inversamente preocupados em encontrar defeitos ou em considerarem infundadas as três principais causas destacadas por Antero de Quental: a influência opressiva e repressiva da Igreja Católica, o centralismo e absolutismo estadual, sem as liberdades municipais e individuais e uma economia baseada nos proveitos dos Descobrimentos em vez de assente no desenvolvimento da indústria e comércio.
Numa curta Advertência preliminar, em geral não referida ou transcrita, Antero de Quental explica a impressão tipográfica em folheto rápida: «foi reconstruído este discurso sobre os apontamentos que serviram para o recitar, os extractos publicados por vários jornais, e as notas de alguns amigos. As ideias e os factos citados são rigorosamente os mesmos: é igualmente a mesma a ordem de dedução. O estilo é que é, nem podia deixar de ser, diverso: fala-se de um modo, escreve-se de outro. (...)».
Anos mais tarde, em Maio de 1887, na carta auto-biográfica a Wilhelm Storck, considerará uma obra juvenil e embora no terreno histórico, sofrendo de algumas ideias preconcebidas e insuficiente estudo profundo, mas que definitivamente fora apreciada e valia como prosa moderna de ideias.

                              
Vamos reproduzir as páginas iniciais e transcrever e comentar o 2º e 3º parágrafos do preâmbulo do discurso, já que ele ainda hoje é um excelente contributo para uma metodologia do diálogo e para a evolução das mentalidades (peninsulares e não só...), graças à consciencialização intelectual, ética e fraterna bem realizada por Antero de Quental, através de leituras, reflexões e sensibilidade.
«Conheço quanto é delicado este assunto, e sei que por isso dobrados deveres se impõem à minha crítica. Para uma assembleia de estrangeiros não passará esta duma tese histórica, curiosa sim para as inteligências, mas fria e indiferente para os sentimentos pessoais de cada um. Num auditório de peninsulares não é porém assim. A história dos últimos três séculos perpetua-se ainda hoje entre nós em opiniões, em crenças, em interesses, em tradições, que a representam na nossa sociedade, e a tornam de algum modo actual. Há em nós todos uma voz íntima que protesta em favor do passado, quando alguém o ataca: a razão pode condená-lo: o coração tenta ainda absolvê-lo. É que nada há no homem mais delicado, mais melindroso, do que as ilusões: e são as nossas ilusões o que a razão critica, discutindo o passado, ofende sobretudo em nós.»
Observamos de valioso neste parágrafo, Antero de Quental nomear a voz íntima, a voz do coração, num registo de defesa do passado, contrária à razão, e tingida ou formada sobretudo por afectividade e emocionalidade ilusórias, que prendem as pessoas ao passado. Antero, nesta altura da sua formação e evolução, não estava ainda a considerar a voz íntima, como a voz moral espiritual, superior, mas sim como refém ou influenciada pelo ego humano, tão condicionado pelas suas experiências, crenças e influências horizontais, frequentemente erradas.
Neste caso, ao não quererem reconhecer os erros e limitações do passado, tais crenças e ideias e defendidas pela voz não permitem as mudanças necessárias ao desenvolvimento de um presente mais liberto, activo, adequado, harmonioso, justo e verdadeiro, de acordo com o que de melhor as pessoas e povos podem aspirar.
E como as pessoas dificilmente realizam ou discernem a carga de opressões a que estão submetidas, não equacionam nem enfrentam bem as más compreensões da vida e os efeitos subreptícios dela. 

Noutros textos, nomeadamente na tão magistral carta de 12-11-1886 a Fernando Leal, Antero de Quental explicitará a voz íntima já bem mais funda e veramente: «Lá no fundo do seu coração há uma voz humilde (...) Escute essa voz, provoque-a, familiarize-se com ela (...) Essa, meu amigo, é a verdadeira revelação, é o Evangelho eterno, porque é a expressão da essência pura e última do homem, e até de todas as coisas, mas só no homem tornada consciente e dotada de voz. Ouça essa voz e não se entristeça».
 No  parágrafo seguinte, o terceiro, Antero de Quental tenta apelar as pessoas a não se deixarem dualizar e prender no nível potencialmente conflituoso de ideias e doutrinas entre nem a prenderem-se nas pessoas que as seguem ou adoptam, mostrando-lhes que existe um nível, uma zona, supra pessoal na qual o que rege os seres é a consciência da procura da verdade, a qual é uma consciência fraterna. Oiçamo-lo:
  «Não posso pois apelar para a fraternidade das ideias: conheço que as minhas palavras não devem ser bem aceites por todos. As ideias, porém, não são felizmente o único laço com que se ligam entre si os espíritos dos homens. Independente delas, senão acima delas, existe para todas as consciências rectas, sinceras, leais, no meio da maior divergência de opiniões, uma fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que une todos os espíritos numa mesma comunhão - o amor e a procura desinteressada da verdade. Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa fé e na tolerância recíproca! Uma região aonde os pensamentos mais hostis se podem encontrar, estendendo-se lealmente a mão, e dizendo uns para os outros com um sentimento humano e pacífico: és uma consciência convicta! É para essa comunhão moral que eu apelo. E apelo para ela confiadamente, porque, sentindo-me dominado por esse sentimento de respeito e caridade universal, não posso crer que haja aqui alguém que duvide da minha boa-fé, e se recuse a acompanhar-me neste caminho de lealdade e tolerância.»
   Antero dá-nos assim a sua cosmovisão dialogante ou convivial do ser humano e da Humanidade: acima dos sentimentos e paixões, ideias e inteligência, que são um primeiro nível mutável, divisionista e conflituoso, existe um plano de laços ou relacionamentos mais harmoniosos nos quais «as consciências rectas, sinceras, leais», sentem-se numa «fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que une todos os espíritos numa mesma comunhão - o amor e a procura desinteressada da verdade», constituindo tal uma região serena da concórdia na boa-fé e na tolerância recíproca, onde  as consciências convictas reconhecem-se como tal e se respeitam! 
É nesta "comunhão moral" no "sentimento de respeito e caridade  universal" ou amor, que os espíritos humanos se podem entender, desvendar e comungar nos seus níveis de identidade e conhecimentos mais elevados, belos e perenes...
                           
Destaquemos do quarto e último paragrafo do preâmbulo, reproduzido na fotografia, a parte inicial: «Já o disse há dias, inaugurando e explicando o pensamento destas Conferências: não pretendemos impor as nossas opiniões, mas simplesmente expô-las: não pedimos a adesão das pessoas que nos escutam; pedimos só a discussão: essa discussão, longe de nos assustar, é o que mais desejamos, porque, ainda que dela resultasse a condenação das nossas ideias, contanto que essa condenação fosse justa e inteligente, ficaríamos contentes, tendo contribuído, posto que indirectamente, para a publicarão de algumas verdades (...) »
Conseguimos nós no nosso dia a dia elevar-nos acima do tal nível conflituoso habitual e, mais do que impormos ideias, antes
a partir de convicções mas de um modo fraternal e "tolerante" com as outras ideias, mesmo que opostas, expormos e dialogarmos em távola redonda e graalica?
Conseguiremos nós nas nossas meditações e contemplações alcançarmos expansões conscienciais de sensação, visão ou comunhão com os níveis espirituais do planeta, aí onde a concórdia e a Verdade reinam e nos inspirarmos? 

Ou mesmo chegaremos a ouvir a voz íntima do Espírito santo, no nosso mais fundo e pacificado ser?
Esperemos que sim, na esteira da realização dos desideratos mais elevados de Antero de Quental...

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