Actualizado em 13-II-24, e em 11-IV-24
Em 1922, Carlos Sombrio, nome literário de António Augusto Esteves, publicava um livro de esboços naturalistas e psicológicos intitulado Sombras, já que, pintor e escritor, sentia humildemente que eram apenas sombras e esboços o que conseguia realizar, como nos confessa no preâmbulo humilde "Aos que me lerem". Recolhia nele cinquenta apontamentos publicados semanalmente no jornal A Voz da Justiça, da Figueira da Foz, durante o ano de 1920.
A capa leva uma sugestiva pintura da margem de um lago com alto arvoredo, assinada com o seu nome António Augusto Esteves. O exemplar que me serve para esta espécie de janela vitalizante da sua alma e obra tem uma bela dedicatória rodeando uma fotografia sua: "Ao ilustre homem de letras, meu patrício e meu amigo, Manuel Cardoso Marta [1882-1958]: ao seu elevado e culto espírito; à nobreza da sua alma, homenagem do autor, Carlos Sombrio. Figueira, 5-5-922." [Acrescente-se que ambos tinham um grande amor a Antero de Quental, e que recentemente publiquei dois sonetos de Cardoso Marta, em diálogo com Antero: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/04/da-perenidade-de-antero-de-quental-num.html]
O exemplar não é vulgar, pois a Porbase das bibliotecas públicas ligadas à Biblioteca Nacional, não o regista, embora assinale outras obras de autoria de Carlos Sombrio, algumas bem valiosas tal como a Figueira da Foz: das suas tradições populares, dos seus encantos, 1942, ano em que publicava também O Meu Romance, na novel Livraria Latina Editora, que daria à luz o valioso ensaio biográfico-ideológico de Antero de Quental, por António Ramos de Almeida. Mais conhecido foi o seu trabalho Florbela Espanca, publicado já em 1948. De destacar ainda as Aguarelas da Beira: crónicas da serra da Estrela, de 1935. Ou mesmo ainda o belo prefácio, em 1940, ao livro Ao Alto da fremente poetisa Vitória Régia com a sua «sensibilidade delicadíssima, inquilina duma alma onde o sofrimento da inquietação, a exaltação do próprio amor, os gritos do submisso anseio, são feitos silenciosamente, em segredo, em pensamentos de oração» e, acrescentamos, do coração...
Nascera em 29 de Julho de 1894 na Figueira da Foz, onde se destacou como ourives e cinzelador, jornalista e escritor, tendo deixado a Terra com 55 anos, ainda hoje sendo lembrado e comemorado pela sua arte, fraternidade e culto da beleza.
Em 1936 fundou o grupo Coração, Cabeça e Estômago, em cujo Livro de Actas se explica, talvez por ele: «Coração, porque todos os seus componentes vivem afectiva, paternal e socialmente por essa víscera, amando, sofrendo combatendo os duros combates da vida. Cabeça, porque todos são indivíduos votados ao culto das letras, artes e ciências. Estômago, finalmente porque sem comprometerem aquelas qualidades espirituais, não desprezam os prazeres com que a mesa favorece os apreciadores da boa cozinha portuguesa, entre todas a mais excelente». Entre os convivas anuais estavam o poeta e etnógrafo Cardoso Marta, o pintor Mário, Augusto Salinas Salgado e o notável professor e anteriano Joaquim de Carvalho, seu companheiro de infância, como narrará em 1987 José Pires Lopes de Azevedo, na sua Lembrança do Doutor Joaquim de Carvalho, transcrevendo mesmo parte da homenagem que Joaquim de Carvalho lhe prestou em Junho de 1949, quando partiu da Terra: «Carlos Sombrio foi um autodidacta no mais denso sentido da palavra; não frequentou escolas e não teve, sequer, o estímulo inicial de um camarada mais velho. O que foi, a si, e a só a si, o deve, à sua vontade tenaz e admiravelmente voluntariosa. (...) O que singularizou Carlos Sombrio foi a afectividade, o dom de captar o colorido e de exprimir o sentido pictórico da Natureza e, sobretudo, o amor à gente simples da nossa terra, em cujo mundo sentimental penetrou com alma romântica e comovida».
Também Manuela de Azevedo, em Alguns Homens das Cartas a João de Barros (1972, Jornal Mar Alto, Figueira da Foz) mencionando ser Carlos Sombrio «um escritor menor que foi um carácter maior, autor de uma série e devotada biografia do Poeta» João de Barros, diz dele: «Era uma alma e um carácter ricos de todos os dons superiores», partilhando mesmo uma caricatura sua:
O João de Barros, Ensaio Literário e Bibliográfico. Prefácio do Doutor Joaquim de Carvalho. Tipografia Popular, Figueira da Foz, 1936, é na realidade uma obra merecedora de releitura e reimpressão, e «o que lhe falte em brilho, sobra-lhe na sinceridade, e na alta e merecida admiração com que o meu esforço e o meu coração quiseram servir a obra maravilhosa, fecunda e formosíssima, do eminente Poeta que legou à Pátria páginas que ficarão eternamente aureoladas pela beleza impressionante duma veemência esplenderosa, dum optimismo salutar - e dum entusiasmo que, por ser perpetuamente juvenil, é admiravelmente fervoroso.»
Passemos então às belas páginas das Sombras:
Não vamos analisar ou interpretar a obra, nomeadamente o breve e belo excerto aqui reproduzido:«Do céu parece caírem pétalas de malmequeres inocentes e de rosas brancas/ A Natureza vestiu o seu véu de noiva abençoando a terra», mas apenas transcrever e brevemente comentar um dos textos contidos nestas Sombras, passadas da alma à perenidade do papel quando Carlos Sombrio tinha apenas 26 anos de idade, por ser anteriano, por transmitir a sua visão de artista e de ourives da vida e obra, em geral e de Antero de Quental ficando-nos a interrogação quanto a diálogos anterianos que terá tido com Joaquim de Carvalho e Manuel Cardoso Marta...
É o VI capítulo e diz-nos assim:
«Encontrei hoje na estante da minha humilde biblioteca, quase esquecido, o pequeno volume dos Sonetos de Antero.
Joia preciosa da literatura, letras tristes onde existem cansaços duma vida que finda lentamente, como uma luz frouxa de candeia que se extingue a nossos olhos, que morre, sabendo que morre!
Foi um presente; uma letra esguia de mulher descrevia um oferecimento leal - tão leal, apesar de tudo! - e uma data.
............
Numa tarde cinzenta e enevoada de Abril, quando a perturbação invadira e fizera estremecer um rosto levemente afogueado, umas mãos leves, muito leves pousaram nas minhas esse bouquet de saudades. Abri-o receoso, e li:
«Encontrei hoje na estante da minha humilde biblioteca, quase esquecido, o pequeno volume dos Sonetos de Antero.
Joia preciosa da literatura, letras tristes onde existem cansaços duma vida que finda lentamente, como uma luz frouxa de candeia que se extingue a nossos olhos, que morre, sabendo que morre!
Foi um presente; uma letra esguia de mulher descrevia um oferecimento leal - tão leal, apesar de tudo! - e uma data.
............
Numa tarde cinzenta e enevoada de Abril, quando a perturbação invadira e fizera estremecer um rosto levemente afogueado, umas mãos leves, muito leves pousaram nas minhas esse bouquet de saudades. Abri-o receoso, e li:
"Aqueles que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo que os não vejo...
Estendo os braços e nas trevas beijo
Visões que à noite evoca o sentimento..."
....................................
Depois, foi meu companheiro de horas de insónia, e um dia, com dó de mim mesmo, escondi-o entre outros que possuem bocados da minha alma e da minha mocidade!...
Eu quis esquecer os «Sonetos»!...»
O apontamento é pequeno, mas é algo misterioso e chama por algum cinzelamento, em três aspectos: como Carlos Sombrio sentia ou via os Sonetos de Antero, como recebeu o exemplar carregado de afecto e como cuidadosamente o abriu ou desfolhou e depois por algum tempo fielmente o acompanhou, até por fim o arrumar e querer olvidar....
"Jóia
preciosa da literatura [Aum Mani Padme Hum, a jóia do espírito está na flor de lótus, diremos nós com os mestres orientais], letras tristes [graves] onde existem cansaços duma vida
que finda lentamente, como uma luz frouxa de candeia que se extingue a
nossos olhos, que morre, sabendo que morre!" Eis Carlos Sombrio discernindo, ou vendo, a luz da genial e forte auto-consciência de Antero de Quental diminuindo lentamente, qual chama de vaso precioso, ao longo da sua sofrida e desgastante odisseia.
A jovem amiga ou amante que lhe oferece com pudor perturbado e mãos muito suaves o ramo de flores saudosas que os Sonetos eram e, para o caso particular transmitiam. A abertura à sorte, o istixara persa, e a resposta provinda do soneto da página aberta à sorte: - os seres amados e partidos para outras margens só poderão por visões misteriosas ser ressuscitados.
Depois, a familiaridade com os Sonetos, seu companheiro de momentos de intensidade energética, das noites que se tornam dias inextinguíveis, insónias ou ardências...
Por fim, o afastar-se dele e da associação amiga ou mesmo amorosa que o gerara e infundira, escondendo-o, com "dó de si mesmo" no meio de outros livros, embora este carregado de afectividade agora a não ser mais vitalizada. A sua confissão é algo dramática, culpabilizando-se: "Eu quis esquecer os Sonetos"
De que se arrepende mais Carlos Sombrio, o de não ter mantido a relação com a jovem afogueada de amor, ou de a ter querido esquecer, ou ainda de menosprezar os Sonetos e seus transes difíceis mas de ensinamentos perenes e desafiantes?
- Eu quis esquecer que a Vida é Amor? Eu quis esquecer uma alma amorosa que de si me partilhara os Sonetos de Antero?
Que fuga dramática ou negação escapa da alma de Carlos Sombrio e paira no ar ?
Talvez o apontamento XXXX dê a resposta: descrevendo o abandonar de uma relação (e da amada o nome só numa ondulação muito subtil e ténue se poderá ouvir intuitivamente), e a tristeza que sentiu anos depois ao voltar ao pinhal onde «lemos os dois, sílaba por sílaba, um poema frágil»...
Talvez o soneto Mors-Amor, de Antero de Quental, sobretudo nos dois tercetos finais, seja bom para concluirmos com claridade maior este diálogo de Carlos Sombrio e a amada, com Antero de Quental e as almas de Amor, na sua perenidade, onde quer que estejam, já que nele Antero sonha, visiona, ou apenas personifica, o resultado da grande luta entre a morte que derrota a vida e o amor invencível que a cavalga bem e imortaliza:
Um ás de copas, o graal no coração do cavaleiro Antero de Quental |
Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,
Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
«Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"»
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"»
2 comentários:
bravo!
elevação e enlevação da pura sensibilidade, própria e do Poeta, por via da feliz e nobre evocação de outra alma ardente, a de Mestre António Esteves, cujo pseudónimo artístico a cidade da Foz do Mondego perpetua em toponímia e lembranças de arte e espírito
em comum, ainda, o amor aos livros, à leitura e à escrita, expressão também de cultivo das faculdades intelectuais e espirituais, fonte de purificação e busca de beleza - tal como a fraternidade, é alimento do ânimo e fortalecimento dos laços com seres e cosmos, fórmula de auto-regeneração e graal
Graças pela apreciação ou comentário. Sem dúvida uma plêiade de grandes seres e figueirenses que muito e bem se esforçaram pela cultura, a fraternidade e a liberdade, deixando-nos um exemplo que deve ser relembrado e continuado, nomeadamente nestes tempos de tantas compressões da convivialidade e da disponibilidade, tão necessárias ao florescimento da arte, da ciência e da espiritualidade e, portanto, à melhoria das almas, países e Humanidade...
Enviar um comentário