segunda-feira, 3 de junho de 2019

Ramiro dos Santos, um anteriano, "Rhytmas e Rhytmos": o Amor e as causas misteriosas do final de Antero.

    Ramiro dos Santos, publicou o seu primeiro livro, e de outros não sabemos, de poesia, em 1897, no prestigiado editor Manuel Gomes, à rua Garret, em Lisboa, dedicando-o ao Dr. António Augusto de Carvalho Monteiro, o famoso Milhões, dono do palácio neo-manuelino da Regaleira. E, intitulando-o Rhytmas e Rhytmos, Ramiro dos Santos foi original, cantando e valorizando muito o ser feminino, tão importante na vida humana e social, pesem os machismos ou agora trangendrismos que se abatem sobre a mulher e que não lhe reconhecem a sua própria identidade e a primazia  no Amor. Por isso mesmo talvez, um dos seus mais conseguidos e belos poemas, se intitula Hyno a Vénus.
                                   
O livro, impresso no Porto na Typ. A. J. da Silva Teixeira, não se encontra (ainda) na lista da Porbase, da Biblioteca Nacional, e é raro,  a tiragem não devendo ter ultrapassado os quinhentos, ou menos, exemplares. Encontramos contudo uma crítica a ele, na revista Ocidente, de 30-III-1898, assinada pelo académico algarvio António Cabreira (modestamente "célebre" pelas suas obras acerca da quadratura do círculo, a data da morte de Jesus e genealogia), na qual refere conhecer Ramiro dos Santos, desculpando alguns defeitos formais da  obra pela sua inexperiência e avançando numa hermenêutica psicológica e espiritual do autor e da obra, que realiza bem, nomeadamente ao discernir-lhe o fundo psíquico, o seu veio de "cepticismo temperado com bom senso", e os tons ora melancólicos ora irónicos nos poemas, oscilando entre o epicurismo do presente e a contemplação e imobilidade  referida em poemas como  Ataraxia e outros.
Depois de tentar corrigir ou diminuir a falta de confiança ou cepticismo na evolução ou avanço espiritual dos seres,   manifestada por  Ramiro dos Santos no seu desalento e relativismo, António Cabreira transcreve alguns poemas e concluiu o artigo com este parágrafo: "A lógica de aço, a elevação dos conceitos e a beleza do estilo, acusam toda a limpidez de inteligência de Ramiro dos Santos, a quem desde os bancos das escolas dedicamos particular estima e sincera admiração».
Ora se nos embrenharmos na leitura do livrinho, encontramos descrições muito conseguidas de ambientes rurais, estranhos, ou nocturnos, e valiosos conceitos e imagens, em poemas notáveis pelo amor sentido, desejado e idealizado, embora alternem  com o tal desalento ou melancolia, tão cultivado na época e que terá no Livro do Desassossego de Fernando Pessoa o seu avatar máximo. E assim logo no primeiro poema, Melopeia, Ramiro dos Santos lamentar-se-á do estiolamento ou morte em vida de almas, e da própria centelha da vida se poder apagar, verdadeira tragédia de almas isoladas ou não amadas. 

A influência de Antero de Quental, mestre de grande parte da sua geração,  sente-se mais nos sonetos em que aborda a morte, tais como o Post Lucem Tenebrae, Morte e o Incerteza, ou quando cultiva a indiferença, a letargia, a inconsciência, tais como Ataraxia, Fadiga, Fatalismo, Canção Mortuária. Mas a reacção amorosa a realizar-se na terra, e humana e carnalmente, acentua-se em vários sonetos, com um mais perfeito, intitulado Paramnésia, bem aberto (e que perpassa por outros poemas) à tão difícil quão valiosa reminiscência da Luz espiritual, ou de já terem conhecido anteriormente, misterioso, que desabrocha e une dois seres que se aprofundam no olhar e sentem que verdadeiramente se amam:

«Hoje quando em teus olhos reparava,
Cuidei reconhecer no teu olhar
Uma luz, que há muito me iluminava
Doce e esplêndida como o luar.
 
 Como em tua voz flébil, maviosa,
O eco de uma voz em tempo ouvida
Algures, uma voz misteriosa,
Como não ouvi outra em minha vida.

Decerto já te vira, e me parece
Que há muito que eu andava a procurar-te:
Já te vira e perdi-te, é certo, vê-se,
Pois a mim não me surpreendeu achar-te.

Não me surpreendeu, pelo contrário:
Chegaste e estava tudo preparado:
Em minha alma já tinhas um sacrário,
Que o amor já te havia consagrado.»

Será sensívelmente a meio da sua obrinha de 213 páginas, mais precisamente na pág. 115, que encontramos um soneto precioso, confirmando a nossa intuição da influência de Antero de Quental em Ramiro dos Santos, ou se quisermos, o diálogo dele com o ideário de Antero, exactamente intitulado Antheriana, o qual nos desafia bastante pela profundidade com que Ramiro dos Santos questiona o mistério da morte de Antero de Quental, a qual já vimos  bem poetizado iniciaticamente ("Morrer é ser iniciado") em Joaquim de Araújo, que deu mesmo à luz numa plaquette o seu poema Na morte de Antero.

  Ora nos dois primeiros quartetos Ramiro dos Santos discerne e bem em Antero de Quental o desejo de voltar à misteriosa origem da vida, donde o espírito humano se exilou, e como Antero, não movido pela esperança da glória ou luz cristã, aspira antes e apenas à morte libertadora, Ramiro dos Santos questionará se tal ideia-força-crença não foi uma quimera, uma ilusão anteriana, oposição ilusão-realiade que ele aliás na obra mais de uma vez poetizará?
Nos dois tercetos conclusivos, Ramiro poderia interrogar-se se Antero fez bem ou se poderia ter-se aproximado da morte de outro modo, ou qual seria o melhor meio de religação com a Origem: se uma visão "estilo budista" do nada, ou se uma mística de realização interna, como por exemplo a da centelha em nós, ou mesmo do Deus vivo em nós. Contudo, cingir-se-á à morte voluntária precoce e como isso pode causar aprisionamentos no além. E talvez, como ser ainda bem jovem, talvez pudesse sugerir mais o amor unitivo e divinizante a ser desejado e exaltado, e que faltou a Antero. Oiçamos a transcrição completa do poema:

«Desejando voltar à origem insondável,
Caos misterioso onde a vida foi nada,
Donde a essência veio, êxul inconsolável,
As formas animar, por elas maculada;

Aspirando com ânsia à liberdade, ao nada,
Como um cristão devoto à sempiterna glória.
Outra esperança ainda, e talvez ilusória:
Talvez uma quimera: a Morte abençoada.

Cansado de viver, a seus funéreos braços
Antero se arrojou com alegria insana:
Se tanto lhe queria e tanto a invocava!

Voaria a sua alma, através dos espaços,
buscando as regiões serenas do Nirvana?
... Como se a Morte fosse o que Antero julgava.»


Como vemos, Ramiro dos Santos demarcou-se ousadamente, e com alguma verdade, da autoridade da crença na morte libertadora por parte de Antero, pondo em causa a concepção da morte nirvânica que ele poderia ainda ter ou imaginar no momento do suicídio: era uma concepção da morte errada, ele não se libertaria assim tão facilmente...

 Já um outro entendimento que Ramiro dos Santos sente e exprime nos parece errado: o de que Antero "se arrojou com alegria insana" nos braços da morte, pois os testemunhos da época mostram Antero algo dilacerado pelas dificuldades de estabilizar-se nos Açores e renunciando algo tristemente à vida na terra por mais tempo. 
Quanta tristeza tingia o corpo subtil anímico ou, se quisermos, a psique de Antero, perguntarei antes, e parece-me que seria bastante, em vez da alegria insana... 
Que luta teve ainda  de travar para dar esse passo cortante, decisivo? Estaria muito iludido quanto ao seu destino no além e quanto à licitude de desenlace voluntário precoce? Quanto tempo vai levar Antero para poder avançar mais livre e luminoso nos planos espirituais?
Ramiro dos Santos parece considerar que a demasiada demanda filosófica e ideal de Antero lhe foi fatal, pois no poema seguinte, dirigido precisamente a António Cabreira, intitulado Omnia vanitas, questiona os falsos idealismos, ou as quimeras e sonhos, que acabam por só gerar agonias, dores e renúncias do amor, ideia esta que repete noutros poemas: não desperdicemos ou cortemos as amizades e amores que possamos sentir ou encontrar, sob pressão de causas e idealismos...
Ora António Cabreira na crítica a Ramiro dos Ramos tentara valorizar a procura da verdade, da beleza e os idealismo, embora sem referir Antero de Quental, e com razão, pois toda a jornada de Antero fora um ingente esforço de penetração no mundo das ideias e da Unidade da existência. Donde o seu posicionamento filosófico, metafísico e espiritual no fim da sua vida ser bem harmonioso e profundo, tanto na sua compreensão da vida como uma abertura cada vez maior da consciência ao espírito e ao todo, embora de amores estivesse bastante só, e o Amor não estivesse muito acesso em si, sendo antes a Ética e o Bem Comum talvez as ideias forças mais poderosas ou desenvolvidas nele. Estas são questões que todos nós deveríamos interrogar e desenvolver mais...
Contudo, suicidou-se, talvez porque sem grandes dúvidas e receios quanto à existência do além, do mundo espiritual e do Nirvana, seja com preservação da individualidade ou sem ela, pois o discernimento de tais subtis níveis não tinha sido muito alcançado nem bem vivenciado por ele, estava corporalmente bastante fragilizado e não suportava mais os reveses da gorada estabilização final nos Açores, com as suas duas protegidas a serem-lhe retiradas.
Terminemos esta breve apresentação de um autor e livro, algo anteriano, e continuaremos a demandar, ler, dialogar e reunir elos da Tradição Espiritual Portuguesa e Universal, na qual certamente Ramiro dos Santos se inseriu, tanto mais que também ele, como Antero de Quental, valorizou a comunhão com o corpo místico da Humanidade, com os pais e amigos mortos, tal como dedilha no poema  "A umas imagens que se veneram no meu coração",  e do qual reproduzimos o início:
                     
Dele e de Antero segue o apelo a que os nossos idealismos, sonhos e lutas nos despertem e mantenham tanto justos e interventivos como mais estabilziados e alegres no Espírito, no Amor, na Força, numa vivência luminosa ou harmoniosa do Bem e da unidade com os outros seres, os mestres, a Divindade, pesem os obstáculos e adversidades que nos rodeiem.
Terminemos com outro belo poema de Ramiro dos Santos, não o final Mors (dialogante com o de Antero), nem o Exercícios Espirituais onde tanto exalta o amor humano, mas o Sanctitas, no qual trabalha num sonho uma linha de força espiritual muito importante, a templária, ou do templo espiritual subtil, interior e planetário.
 

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