quarta-feira, 5 de junho de 2019

"O Exotismo Japonês". Apontamentos orientalistas e biográficos de Wenceslau de Moraes no livro "Ó-Yoné e Ko-Haru"..

Postal enviado por Wenceslau de Moraes para a sua irmã Francisca Paúl...
Numa valiosa reflexão intitulada O Exotismo Japonês, escrita exactamente há cem anos, em Tokushima, Junho de 1919 e inserto como o VI capítulo, de 18 páginas, no livro Ó-Yoné e Ko-Haru (o nome das suas duas sucessivas amadas japonesas), publicado no Porto, em 1923, com 279 páginas, Wenceslau de Moraes valoriza o amor que se tem desenvolvido em alguns seres "pelos países estranhos e distantes, pelas civilizações exóticas" e interroga-se sobre essa "misteriosa atracção" que leva uns quantos a fugirem dos seus meios e a "identificarem-se quanto possível com o meio novo", e que "transcendentais, incompreensíveis influências hereditárias terão amassado, durante milhares de séculos sem conto, o barro humano em que esses amorosos do exotismo são moldados;" deduzindo logo que "jamais se chegará a conhecer, ou mesmo a presumir, a essência subtilíssima de tais influências", e conclui reconhecendo que é a insatisfação com a dose de felicidade que o seu meio lhes pode dispensar que os incompatibiliza e os leva a buscar o pão do espírito noutras regiões...
                                     
Acrescenta a tal misteriosa hereditariedade e capacidade de felicidade, a causalidade estética e traça mesmo um quadro da valorização da religião da beleza como a futura: «O amoroso do exotismo, geralmente um intelectual, vindo de classes cultas, é também geralmente um esteta, conseguintemente um místico, um apaixonado da forma, da cor, do perfume, do som, de tudo o que é beleza e arte. O culto estético vem criando prosélitos, que aumentam de dia para dia. As religiões caducam, desfazem-se, - está-se vendo, - certos temperamentos mais sensitivos, que deveriam ser, se tivessem vindo a este mundo a alguns séculos atrás, fervorosos adeptos da igreja dos papas, hieráticos povoadores de mosteiros e tebaidas, são hoje simples místicos estéticos; é no meio da hipocrisia, do egoísmo e da indiferença geral da época, o advento de uma religião que substitui outra religião, dentro do circulo restrito de certos cultores do ideal».
Se é um facto a decadência das religiões, nomeadamente qualitativamente na sua capacidade de religarem as pessoas com o espírito e a Divindade, com o bem e a beleza, já numericamente tal não sucede e basta ver os milhões de crentes semi-alienados para não dizermos fanáticos cristãos (em múltiplas seitas, algumas verdadeiramente sinistras), judaicos e islâmicos. Em contrapartida, a estética tem sido de tal forma manipulada e desfigurada que não se ergue como religião senão em alguns raros seres, tendo sido antes ocupada ou substituída pelo mundo dos espectáculos visuais e auditivos, pelos desportos e pela ciência, sem dúvida hoje as pseudo-religiões do neoliberalismo que rege ou tenta reger, informando, deformando e contra-informando, a sociedade moderna.
Com efeito, se olharmos para as razões dadas por Wenceslau para o desenvolvimento do orientalismo no Ocidente, a primeira causalidade, a hereditária no ADN, também deve ser complementada pela dimensão espiritual, ou seja, pelas forças anímicas que entraram na constituição do temperamento e personalidade, as quais são certamente ainda misteriosas pela sua subtileza e tanto provindas dos pais como do ambiente, exemplos e educação, e pelo pão espiritual que tais almas procuram noutros meios, já a segunda linha de força ou causalidade, a da estética, como nova religião, também de reconhecer que ainda que crivadas de contradições e legendas tornadas dogmas opressivos as religiões e seitas tentam criar e partilhar certo tipo de beleza ou de entusiasmo captando assim muitas pessoas ainda no séc. XXI, embora haja alguns seres que conseguem verdadeiramente demandar e viver sobretudo a religião da beleza em si e sendo cultores da beleza de tradições, costumes, povos e até aspectos das religiões que se notabilizam em tal qualidade estética ou de harmonia...
Ora para Wenceslau de Moraes a Europa estava a ficar desfigurada, referindo já os fios de electricidade por toda a parte, e só em alguns recantos do Oriente "se dá fé de recantos pouco acessíveis aos intrusos onde a natureza é magnífica e onde a arte é primorosa." E mesmo ao nível da beleza física afirma ousada e libertadoramente «que qualquer negra nua, destacando-se de uma nesga qualquer de um palmar do acaso, ostenta mais beleza em seu perfil e mais arte em seus requebros do que a mais formosa dama que pisa as avenidas das grandes cidades europeias, caricatural e repelente no seu aspecto do seu trajo, que a moda hoje lhe impõe."
Quanto ao exotismo japonês, Wenceslau de Moraes, com a sua experiência de então de 25 anos de imersão no Oriente, valoriza muito o «Japão, o país de exotismo, o enlevo dos estetas; possuindo uma natureza eminentemente prodigiosa, em caprichos de forma e cores (...) e uma velha civilização requintada, que criou uma arte tal, nas pequenas e grandes coisas, - talvez principalmente nas pequenas coisas (...) Quanto à mulher japonesa, é um deslumbramento o seu encanto; deslumbramento que provem da sua graciosidade física, da sua arte de agradar e também do seu kimono, que é o mais harmonioso trajo que os costumes do mundo inteiro hão inventado».
                                 
Passando a descrever, breve mas argutamente, no capítulo  O Exotismo Japonês, a vida e obra de Lafcadio Harn (1850-1904, filho de uma grega e de um inglês), e de Pierre Loti, destaca como o 1º se adaptou, casou e viveu 14 anos consecutivos no Japão, sendo professor e gerando 14 livros, enquanto que Pierre Loti foi (1850-1923, filhos de franceses, o Loti foi-lhe dado pela rainha do Taiti), mais um diletante que «visita o Japão, a bordo dos navios de guerra, por várias vezes (de uma vez tive eu a boa fortuna de avistá-lo). Loti não gosta do Japão; acha a sua paisagem mesquinha, o seu povo grotesco, a sua arte pueril, os seus deuses horrendos. Todavia devemos ao eminente impressionista algumas páginas, raras, embebidas de vero sentimento e simpatia sobre o Japão».                        
E enquanto «Hearn adora a japonesa», «Pierre Loti diz o seguinte "bem feias essas pobre pequeninas japonesas!". E o seu famoso livro Madame Chrysanthème, onde muitos leitores ingénuos julgaram ver personificado o tipo da musumé, a rapariga japonesa em geral, não é mais do que a descrição humorística, amplamente salpicada de chufas, dos amores do autor com uma esposa a curto prazo, que um lavadeiro de Nagasaki, que lavava a roupa a bordo, lhe inculcou...».
Dirá ainda que «Loti, decididamente, não compreendeu o Japão (...) e porque principalmente, o delicioso boémio já anteriormente se embebera do exotismo de Stamboul, o lago indígena da maravilhosa cidade de Constantinopla, onde se demorou por longos meses e onde amou ardentemente uma mulher de harem... Loti, pelo coração, é talvez um turco; nunca será um japonês.» Todavia, mesmo em Lafcadio Hearn observa uma diminuição do amor pelo Japão nos últimos anos, já que «o esteta é uma apaixonado... e raras vezes se vê o velho a teimar em prosseguir pelas veredas íngremes da paixão» e também porque um certo fosso persiste: «é a barreira racial, é a aversão instintiva irredutível (embora utopias em contrário estejam agora muito em voga), que separa o homem de uma raça do homem de outra raça. No Japão, o europeu será sempre o keto-jin, o selvagem barbudo», algo que Wenceslau de Moraes, apesar da sua notável osmose orientalizante, também sentiu, embora certamente no séc. XXI tal barreira tenha diminuído bastante, como eu me apercebi nos 40 dias no Japão, só uma vez tendo encontrado tal oposição ao atravessar uma estreita ponte sobre o sagrado rio Kamo...
Acrescenta ainda Edmond de Gouncourt, como um bom esteta e exotista-orientalista (destacando La Maison d'un Artiste), tal como no início do capítulo mencionara Fernão Mendes Pinto (e poderia ter acrescentado alguns dos jesuítas que estiveram no Japão), mas hoje temos muitos mais viajantes e conhecedores profundos de vários aspectos do Japão, e mencionarei nos mais espirituais, um, Jean Herbert, com o seu excelente Aux Sources du Shinto. Le Shinto. Paris, 1964, que bem me apoiou para os diálogos com santuários, sacerdotes e pessoas na minha peregrinação nipónica em 2014.
                                    
Sobre si mesmo, depois de interrogar: «Que quer mais o leitor saber sobre este assunto? Quer que lhe conte as minhas impressões pessoais de amoroso de exotismo , aqui neste Japão, onde tantos anos da minha vida têm corrido» confessa «E que poderia eu dizer-lhe francamente? ... A emotividade explode, o coração bate forte, a alma voa ... mas como é difícil encontrar palavras que traduzam tudo isso, a nossa vibratilidade de um momento, o enxame de pequeninos mistérios íntimos, fugidios!... No entretanto, para satisfazer de qualquer modo a curiosidade benevolente de uma dúzia -se tanto - de amigos que me restem, entre conhecidos e desconhecidos, aqui deixo consignadas umas leves notas soltas...
Cedo, muito cedo, me alvoroçou e seduziu o encanto do exotismo. Porquê? Não sei. Penso que, temperamento marcado da tara da morbidez logo ao nascer, não me encontrava bem onde me achava, pedia asas à quimera, para fugir para longe, muito longe...
E fugi, e voei, e fui deixando farrapos de alma (porque a alma se rasga e se dá quando se amam as coisas), por todo este mundo exótico fora: – pelo Oceano imenso – águas e céu, pela África selvática, pelo Egipto, por Argel, por Zanzibar, por Áden, por Colombo, por Singapura, por Bangkok, por Saigão, pela China, por Java, por Macáçar, por Timor e mais nada... - Reservava-me o destino ainda outras emoções: – cheguei ao Japão. – Amei-o em transportes de delírio, bebi-o como se bebe um néctar... 
                              
Todavia, eu nunca experimentei a sensação plena do gozo, o prazer que domina tudo, triunfante. Eu nunca, no Japão como em parte alguma, me senti plenamente feliz, sem dúvida por incompetências e incongruências dos meus dotes afectivos. O enlevo das coisas acorda sempre no íntimo do meu ser um sofrimento ignoto, a impressão de dor por uma catástrofe sofrida ou por sofrer – sofrida, talvez numa outra vida já vivida; por sofrer, talvez em futuros dias da minha vida actual, talvez numa outra vida que há-de vir; ou terei eu o estranho dom de sofrer, por indução, a dor dos males que ferem outros seres?...
Bem. Foram correndo os anos; foram-se sucedendo as surpresas, as maravilhas; e também os reveses, como, em regra, sucede a toda a gente. O Japão conferia-me ainda o privilégio cruciante de assistir, em curtos intervalos de tempo, a duas agonias, aos gestos convulsivos e aos gemidos pungentes de duas mulheres na força da vida e dos desejos, que morriam a meu lado, tendo pedido à morte que as poupasse...
                             
 A minha religião de esteta, a qual já de longe, ia anunciando tendências para me deixar colher dos factos e dos aspectos, principalmente, a noção melancólica da impertinência das coisas, do aniquilamento como lei suprema, a que tudo se submete, transitou então para uma outra crença, a religião da saudade – que é ainda uma religião estética, mas de uma estética retrospectiva, que leva à paixão do belo, do bom, do consolador, pelo que foi e já não é.
O Japão foi o país onde eu mais vivi pelo espírito, onde a minha individualidade pensante mais viu alargarem-se os horizontes do raciocínio e da compreensão, onde as minhas forças emotivas mais pulsaram em presença dos encantos da natureza e da arte. Seja pois o Japão o altar deste meu novo culto – a religião da saudade –, o último por certo a que terei de prestar amor e reverência. Tokushima, Junho de 1919.»
                                    
Realce-se neste texto autobiográfico de Wenceslau de Moraes a sua sensibilidade e capacidade de experiências anímicas e espirituais profundas, difíceis posteriormente de escrever pois "a emotividade explode, o coração bate forte, a alma voa". E que ainda viverá mais dez anos de aprofundamento solitário do amor saudoso pelas suas duas mussumés e da comunhão com a natureza, os costumes e a alma do Japão, realizando bem a unidade das religiões contida no provérbio japonês por ele citado: «iwashi no atama me shinjin kara (até uma cabeça de sardinha, com devoção). - Quer isto dizer que o objecto de culto, ainda o objecto mais ínfimo, pouco ou nada interessa; o essencial é o fervor, é a sinceridade piedosa».
Deixará ainda mais alguns testemunhos valiosos da sua peregrinação sentimental, etnográfica e espiritual nipónica, nomeadamente os contidos no Relance da Alma Japonesa, escrito em 1925 e publicado em Lisboa em 1928, na sociedade editora Portugal Brasil, nos quais perpassam intuições que são ainda hoje misteriosas questões. E sairão já depois da sua partida terrena em 1-VII-1929, em Tokushima, alguns volumes da sua correspondência fiel, num registo bastante anteriano, com a irmã Francisca e amigos...