O culto eucarístico, do sacramento da hóstia e do vinho como corpo e sangue de Jesus Cristo, e como meio de nos religarmos ao divino, ao mestre, ao amor, foram bastante trabalhados nos séculos XVII e XVIII, e desse caudal reproduzimos e comentamos há dias neste blogue uma celebração em 1734 dum Santíssimo Sacramento cinzelado em Braga e entronizado no altar da Sé, acompanhado de festejos populares e religiosos de relevo.Hoje vamos apresentar a Relação do Certame Poetico e Eucharistico que celebrarão os Academicos Applicados no Convento de N. S. da Graça nas duas tardes de 29 de Junho e 4 de Julho, de 1724, impressa em 13 páginas, em quanto não se publicavam as poesias que entraram no concurso ou certame.
Que os académicos e religiosos com capacidades poéticas se empenhassem em burilar em palavras e rimas conceitos devotos e louvores desse testemunho vivo do culto cristão não espantará ninguém, numa época em que muitos dos principais cultores das Letras eram clérigos, religiosos das várias ordens. E será de um jesuíta, que participou até no acto, o P. Cristóvão da Fonseca, o parecer aprovador da relação do certame, bastante instrutivo espiritualmente:
«Li a Relação do Certame Eucharistico quase com o mesmo gosto, com que assisti ao acto, que agora nela se descreve tão vivamente, que ainda me parecia o estava vendo. O certo é que foi esta acção entre as literárias, a mais plausível, a mais pia, a mais heroica, a mais magnifica, a mais religiosa, e a mais divertida que há muitos anos viu a nossa Corte. E se uma relação inteira, e composta de Académicos tão aplicados, como discretos, deve entrar em juízo, julgo digníssimo do prelo tudo o que acordam em Relação tão elegante os senhores Académicos, não menos insignes na prosa que no verso, como veremos no Certame, que esperamos, em que justamente se fizeram credores do epíteto de Adeozados, que imeritamente arrogavam a si os Poetas antigos: Est Deus in nobis, agitante calescimus illo; (Ovídio, Fastos, Livro VI) pois para que o fossem em tudo, escolherão unicamente por alvo dos seus Poemas o Divinissimo SACRAMENTO; e por isso se antes Divinos no Metro [rima], agora também Divinos no Assunto, cujas obras espera já com impaciência uma, e outra Hespanha, e agora muito mais com o reclamo e despertador desta Relação... (...).
Comentemos, só: "Adeusados", isto é, conscientes de que "Deus está em nós". E que os impulsiona no fogo criativo do Amor.

Após os pareceres e as aprovações das autoridades civis e eclesiásticas, segue-se a descrição do local onde se realizou, a Casa Nova do Claustro de Nossa Senhora da Graça, dos Religiosos Eremitas de S. Agostinho, «uma das mais formosas e agradáveis que há neste Reino» que estava toda «revestida de cortinas de Damasco carmezim», e onde «se armou um teatro para os Juízes, em cuja parede estava um grande Quadro do SACRAMENTO...», havendo ainda dois teatro ou estrados e uma «bancada para os instrumentos». Todas as paredes em roda se viam adornadas das discretíssimas poesias, que penduradas em papéis de folha imperial, e comum, era o mais precioso esmalte deste novo, e Católico Liceu [nome da Academia de Aristóteles, em Atenas] (...)»
«Entre outros se viam cinco engenhosos Emblemas do SACRAMENTO, aos 5 assuntos do Certame. O I. era o Amor Divino, dando uma jóia à Alma santa. O II. O Divino Esposo, que estava entre nuvens, dando um cofre à santa Esposa, que tinha uma venda nos olhos. O III, o mesmo Esposo, com insígnias da Paixão, mostrando-lhe as Chagas. O IV. o Amor Divino do alto, disparando o arco, cuja seta penetrava o peito do sagrado Esposo, desmaiado nos braços da Esposa. E O V. o próprio Esposo Divino, dando um pão à mesma Esposa santa, vestida de Peregrina. Nestes 5 emblemas estavam 5 Dísticos, ou Epigramas, que exprimiam os 5 Assumptos, com grande propriedade, e energia, tirados das Obras de Ovídio; não por centões, mas por versos inteiros, extraindo de uma parte o Hexámetro e da outra parte o Pentámetro. Estes Emblemas eram do Académico Paulo Nogueira de Andrada, cujas obras (além dos Emblemas) estavam escritas em 9 folhas de papel imperial, de primorosa letra, e com vistosas tarjas».
Fiquemos por aqui, pois nas restantes páginas em que se transcrevem os epigramas, os premiados e as interacções rituais, tudo concluído com o discurso (não transcrito) do sábio Rafael Bluteau (1638-1734, e sem dúvida um mestre da Tradição Espiritual Portuguesa), nada há de tão substancial e espiritual como o que já transcrevemos dos cinco Emblemas ao Amor, e do Parecer inicial do Padre Cristóvão Figueiredo, com a tão importante frase de Ovídio, que desdobramos agora na sua versão completa, «est deus in nobis, agitante calescimus illo; impetus hic sacrae semina mentis habet», «Deus é ou está em nós, e pela sua impulsão inflamamo-nos; este ímpeto tem as sementes sagradas da mente»... Que bela ideia a de trazer a sabedoria greco-latina antiga, do Paganismo, mostrando no fundo que há uma Filosofia e Teologia Perene, que se pode estabelecer uma analogia entre a divindade oculta interna antiga e o Cristo oculto interno no santíssimo Sacramento. E que oração tão condensada, quase mantra: Deus está em nós... Ou ainda: Deus está em nós e faz-nos arder numinosamente.

Quanto aos cinco emblemas de amor em correspondência à comunhão, ou ao Santíssimo Sacramento, como os poderemos compreender?
"O
I. "O Amor Divino, dando uma joia à Alma santa". Que joia é esta? O Espírito? A alma espiritual renascida de novo? A consciência da ligação com o Mestre, com o Cristo, com a Divindade? O fogo do Amor? O que é que a nossa alma lhe pediria de valor?
O II. "O Divino
Esposo, que estava entre nuvens, dando um cofre à santa Esposa, que
tinha uma venda nos olhos."
O Mestre Jesus, ou o Cristo, abre os olhos da alma para a verdade interna divina e a sua presença realizável na adoração de todo o coração. O cofre pode ser também o sacrário, ou o ostensório
O III, "O mesmo Esposo, com insígnias da
Paixão, mostrando-lhe as Chagas."
O mestre Jesus, mostra à alma apaixonada ou entregue a ele, as cinco chagas por onde o seu sangue e amor se derramou e derrama para purificar e fortificar os que o adoram
O IV. "O Amor Divino do alto, disparando
o arco, cuja seta penetrava o peito do sagrado Esposo, desmaiado nos
braços da Esposa."
Eis o emblema mais difícil de ser bem interpretado. Talvez: o amor em si, o Amor Divino, do alto, movido pelo amor aspiração da alma religiosa devota ou esposa de Jesus ou do Cristo nele, desfere a seta dos raios da energia psíquica amorosa que fazem com o que mestre se entregue à alma esposa. Amor vincit Omnia. Desmaiar, ou entrar em êxtase, explicarão algumas das nossas sorores mais místicas dessa época...
E O V. "O próprio Esposo Divino, dando um pão à mesma
Esposa santa, vestida de Peregrina."
O Mestre, o mundo espiritual, o amor divino, Jesus na Eucaristia dando o pão, a hóstia, a força e amor, para que alma consiga avançar bem sua peregrinação, por vezes difícil, ou per aspera ad astra.
Eis-nos com algumas mensagens espirituais que pensadas, sentidas, expressas, representadas, impressas e partilhadas há precisamente trezentos anos continuam activas neste grande corpo místico da Humanidade em que estamos todos entretecidos,, e, nesta época digital, mais ainda em termos de acesso à informação e logo consciencialização.
Est Deus in nobis, agitante calescimus illo.
Deus está em nós, inspiramo-nos ardentemmente pela sua acção.
Deus é em nós, pelo seu movimento inflama-nos.