quinta-feira, 16 de setembro de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 4º cap. "Batei e abrir-se-vos-á". Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                                    "BATEI E ABRIR-SE-VOS-Á

«Não é por acaso que em seguida, na antiga promessa,  tem lugar a imagem de  “bater à porta"!

Se “procurar” é um mergulhar em si mesmo, para  encontrar no mais íntimo, na profundeza mais funda, - se “pedir" é querer na firme confiança que se “receberá “-  assim é “bater", -  ou seja, bater à porta para obter acesso, é um comportamento activo no exterior, que  confere apoio a um pedido.

Diga-se aos que querem aprender a orar, que eles têm o direito de exigir, de pedir, - por presunçoso que isto possa parecer, - e que só se activa este insigne direito, quando  eles souberem também orar activamente:- quando  os seus actos corresponderem também às condições da verdadeira “oração “…

Esta deve ser a atitude geral em todas as orações - mesmo as que se relacionam com os assuntos da existência exterior.

- Só será ouvido aquele que “bate" verdadeiramente, - que verdadeiramente bate à porta" – aquele que reforça o seu "pedido" correcto, a sua espera, pelo correspondente comportamento activo graças ao qual deixa desenvolver o pedido, o qual será  satisfeito a partir da necessidade.

Quem ora não se deve espantar de não ser ouvido, ainda que o seu “procurar “ e “pedir" brilhem sem reparo aos seus olhos, se não souber ao mesmo tempo “bater" correctamente.

Ainda falta a terceira condição duma oração perfeita.

Talvez ore por coisas que terão de ser mesmo suas, - mas quando a oração conta com ele próprio, quando  é necessário agarrar precisamente essas coisas, não move uma mão.

Talvez quisesse pela sua oração, enviar auxílio a um outro ser humano, para tentar libertá-lo das necessidades materiais, mas está longe de usar os seus próprios meios para tal, ou em tirar partido das circunstâncias que  poderiam trazer  utilidade prática  ao outro…

Pela oração, queria ver-se a si próprio ou outrem livre da doença, mas  esquece-se do médico e não se mexe para procurar uma possibilidade de cura…

Em todos estes e ainda em mil outros casos falta a terceira condição fundamental duma verdadeira “oração”,  expressa na promessa pela imagem de um homem que não se mantém somente diante de porta, e espera, até ser chamado, mas que “bate", a fim de que lhe “seja aberto".

Mesmo naquela espécie de piedosa suplicação do céu, tomada tão comummente por “oração” , os que procuram ajuda erram na maior parte dos casos ao considerarem totalmente supérfluo o “orar" activamente.

Muitos poderiam ser ajudados, se isto não se passasse assim, mesmo que a  concepção deles não saiba o que significa verdadeiramente a oração; mesmo assim, um ou outro deles consegue, confusa e inconscientemente, pelo seu ardor,  “encontrar" e “receber" imperfeitamente.

Mesmo quando o seu “bater" seja também  incorrecto, pode mesmo assim  não resultar em vão a oração tida por normal e assumida de boa fé.

também ainda, entre os que não compreendem o que significa em verdade “orar", um bom número de seres, que por sentimento interior fazem o que é requerido pelas três condições, ainda que pudessem realizar bem mais se conhecessem todo o segredo da verdadeira “oração”.

Todavia, também na promessa o  “bater à porta" correcto,  não se relaciona somente no “orar” por coisas terrestres, mas deve em primeira linha, abrir acesso ao augusto Templo da eternidade, afim de que aí o que procura vivencie com intensidade o mistério do Ser Humano: a sua saída da Luz, e o seu retorno à Luz…

Ninguém pode ganhar entrada no Templo, se não se tiver mostrado antecipadamente apto a “procurar” e a “encontrar”, - se não tiver primeiro aprendido a “pedir" de tal modo que possa “receber".

No “interior" sabe-se, - e também neste caso o interior deve-se procurar unicamente no próprio ser humano -  muito claramente quem é que bate de fora, e não se lhe abrirá a porta antes que ele tenha sabido cumprir as duas outras condições da verdadeira “oração”.

"Bater" significa aqui, modelar activamente a sua vida de maneira a qualificar-se por cada um dos seus actos,  a ser admitido no interior do Templo, e em verdade: “abrir-se-á” a quem bate deste modo porque as condições requeridas foram geradas por ele próprio.

O ser humano no decorrer dos séculos imaginou e procurou os mais estranhos mistérios por detrás de tais palavras “bater” e “abrir” de tal modo que, aqui e acolá, cabeças  vazias ou então demasiado espertas, inventaram os mais abstrusos exercícios que deveriam representar o pretenso “bater”.

Conheço, mesmo nos nossos dias, certas pessoas que conservam consigo, cheios de veneração, como relíquias sagradas, os oráculos de zelotes extraviados, e que são suficientemente modestos para atribuir o fracasso completo dos “exercícios” deste género ao facto  de não os terem realizado correctamente, apesar de seu zelo. Imaginam que o seu hierofante deve ter obtido para si o resultado prometido, senão – sancta simplicitas! - não poderia ter formulado as suas instruções cheias de asneiras.

Há sempre novos crentes para tais aberrações e surgem sempre de novo mistagogos que, ora porque se enganem a si mesmos, ora  porque  não saibam fazer de outro modo os seus lucros,  com gestos cheios de mistério, distribuem ao vento as piores tolices.

  Que tal seja possível, só se pode compreender porque para numerosos seres na demanda o que em realidade lhes é exigido  parece-lhes - demasiado simples e pouco extravagante,  porque a sua vontade de crerem só desperta quando se lhes pede para crerem no absurdo.

A pessoa que quer fazer bem  fica chocada quando vê tais aberrações, e desejaria com todas as forças salvar os enganados, porém toda a vontade de ajuda fica aqui em lugar falso.

Pode-se somente advertir aqueles que não estão ainda perdidos, e chamar pelos seus próprios nomes as coisas de que eles já ouviram falar. Pode-se somente procurar mostrar que a promessa não tem nada a ver com todos esses abstruso “exercícios” que foram nitidamente inventados .

“Bater”, no sentido da promessa, significa “orar” pelos actos e pelas “obras”, e quem não consegue compreender isto esperará em vão que se lhe “abra”…

Todavia não deve cair na falsa ideia de que tal “abertura”,  no sentido da nossa promessa, é uma uma revelação súbita  de insuspeitada glória espiritual,  uma desvendação imediata da mais secreta sabedoria, uma abertura  de todas as portas do Templo e um afastar  instantâneo do véu ocultador que protege o santuário mais sagrado dos olhares não preparados!

O Templo de Eternidade têm também  os seus átrios e o neófito poderá verdadeiramente congratular-se com felicidade quando, - falando metaforicamente -, o seu pé pode pisar  o mais exterior destes pórticos.

Quem chega com grandes ambições, e se julga digno de entrar , senão logo directamente no santuário mais elevado, pelo menos num dos santuários que o ladeiam,  não se deparará com a porta aberta,  de tal modo que só verá os pátios.

Contudo, ninguém é aqui tratado como que “injustamente”!

Nada aqui depende de qualquer arbitrariedade! 

Tudo é ordenado através de uma lei espiritual, e esta lei não é nenhum trabalho planeado, mas um efeito consequente da vida espiritual, imutável como a própria Divindade,   cuja  forma e essência (art und weisen) se revela aos Conhecedores, depois de eles se tornarem “conhecedores” através da sua realização!

Certamente está a Divindade  também no próprio ser humano, - certamente tem o seu templo mais sagrado  nas profundezas do ser humano, - e também sem dúvida “Deus”, qualquer que seja a interpretação dada a esta palavra não é que senão no mais profundo da alma humana que pode ser alcançado e sentido.

Mas a maioria dos humanos não pressente as infinitas extensões que  a sua alma abrange, continuamente vibrando no seu ritmo eterno.

A maioria dos seres não suspeita das distâncias incomensuráveis que separam o seu estado de consciência do Ser consciente de Deus, ainda que “Deus” os encha e que só tenham a sua existência em “Deus”---

Na sua imaginação estão num “ tu cá, tu lá” com Deus, sem tomarem a mínima consciência do sacrilégio que uma tal concepção encerra…

É na verdade difícil de lhes fazer perceber que Deus sem dúvida como vida divina não pode estar mais perto delas , - mas não pode estar mais longe delas como ser divino consciente, - que é necessário erguer nelas uma “escada de Jacob” sobre os degraus da qual as hierarquias espirituais de todos os graus de luz devem antes de mais descer dando-se a mão, para que a consciência humana terrestre possa fazer experiência de entrar conscientemente em comunicação com o ser consciente divino, eterno e inconcebível, sem ter de temer o aniquilamento…

Uma arrogância espiritual estupidamnte orgulhosa pensa que nada se deve interpor entre Deus e o ser humano, - mas a única resposta adequada a esta pretensão é: “Senhor, perdoai-lhes, pois, eles não sabem quão vos injuriam”.

Quem, portanto, quer verdadeiramente que se lhe “abra”, e quando  ousa  “bater” por toda a sua vida, por todos os seus actos e obras terrestres, que  não  espere que “Deus” - qualquer que seja a forma com que possa crer em Deus -, esteja como Ser original eterno à porta para “lhe abrir”.

Quem quer "bater à porta" correctamente, deve antes de mais sentir tanta reverência para com a Divindade que se sentiria feliz para além de todas as medidas, se - numa linguagem metafórica - mesmo o último dos servidores do Templo de Deus o quisesse “abrir” para ele...

Nunca se abrirá de outro modo para quem ora verdadeiramente,  o que só se pode “abrir”  nele próprio!»

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 3º cap. 3ª p. "Pedi e recebereis". Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

«A promessa, de que  quem pede “receberá”, certamente não deve  ser tomada como aplicando-se só às coisas da existência terrestre, e os que virem a promessa apenas pelo ângulo terrestre, devem consciencializar-se que ela pode ser cumprida mesmo quando o que pede recebe algo diferente do que pedira.

No entanto o que está presente neste caso, e que é muito instrutivo quanto ao ensinamento transmitido, é que o que está reservado por toda a eternidade para o ser terrestre, pode ser "recebido" através da correcta oração.

Deve-se fazer uma coisa, mas não negligenciar a outra por causa dela!

Como para o homem da terra são primeiramente os aspectos da sua vida terrestre os mais urgentes e veementes, ele deve certamente recorrer ao poder da “oração” para aligeirar também o seu fardo terrestre ou para socorrer o seu vizinho, mesmo quando toda a possibilidade de ajuda exterior está esgotada desde há muito ou se verificou insuficiente.

Acima de tudo porém a oração é dada ao ser humano  para que ele possa de novo possuir a sua herança eterna - de modo a que ele possa “receber" o que, na linguagem dos denominados "teólogos" se designa com uma palavra muito melindrosa, a chamada Graça. - - 

O que aqui em verdade se quer significar pelos que ainda sabiam do que se tratava, é tudo menos um dom da arbitrariedade!

Até mesmo o Amor Primordial eterno, donde emana tudo o que está em “Ser" e em "Existência", não pode modificar a sua própria "estrutura" - não pode negar por amor a Lei,  assumida pela Sua própria Essência eterna, e pelo contrário tem de ver se estão cumpridas as condições necessárias para poder acolher de novo no seu seio o que se desviara de si. --

Assim é o verdadeiro “pedido" que abre de novo à corrente do Amor eterno a possibilidade de circular através da consciência do ser terrestre.

O "pedido", que não é mendicidade nem vontade de regatear, mas um calmo dom de si na plena certeza  de que não lhe será recusado o receber a corrente do Amor divino, - não pode ser-lhe recusado.

Trata-se de nada mais do que uma Lei espiritual, que é preciso cumprir, antes que os efeitos aconteçam.

Deste modo, tal como o que procura só encontra em si mesmo o que antes em vão procurava no exterior, assim o que pede recebe agora em si mesmo a necessária corrente vital do Amor. - - 

Anteriormente era comparável a um motor eléctrico verificado cuidadosamente em todas as peças e pronto a trabalhar, mas que não está ainda percorrido pela corrente de energia vinda da central eléctrica.

Agora, o contacto está fechado: - o motor é posto em movimento pela corrente, - mas  aguarda pela utilização da sua potência de trabalho, pois a corrente de energia percorre-lo-ia em vão, se não houvesse qualquer possibilidade de fazer uso do seu movimento.

Nesta imagem mostram-se de igual modo os três requerimentos da verdadeira “oração“.

Procurar" e “encontrar" é comparável à verificação técnica do motor, até às suas partes mais internas.

Pedir" e “receber" reconhecem-se no estabelecimento do contacto e na passagem da corrente eléctrica.

Já o “bater" e “abrir" podem ser correctamente assimiladas por um lado à conexão do motor com a máquina que ele  accionará, e por outro lado à actividade que será assim produzida.

Todavia esta analogia, tomada do âmbito da técnica dos nossos dias, não pretende ser em caso algum mais do que uma indicação que poderá talvez apoiar as minhas palavras.

Quem não tem necessidade desta indicação ou que se sente incomodado por eu não ter hesitado em inserir aqui uma comparação de vida diária, pode calmamente deixar desapercebido o que contudo eu desejei manter incluído na minha narrativa!

Creio ter assim lançado a ponte da segunda para a terceira condição duma verdadeira “oração”, e espero que todos aqueles a quem falo aqui me sigam mais para a frente sobre esta ponte.» 

Fim do 3º capítulo do livro Das GebetA Oração, publicada em 1921, por Bô Yin Râ (1876-1943), artista e mestre espiritual bem valioso e verdadeiro, o que é raro, em baixo numa fotografia.

                                        

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 3º cap. 2ª p. "Pedi e recebereis". Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                                                         

       «Mesmo que toda a narrativa antiga fosse pura ficção poética, o escritor revelou-se como um ser de Conhecimento pois só um desses podia ter posto estas inequívocas claras palavras na boca dos discípulos do sublime Mestre.---

É  então necessário agora ensinar como é que se deve “pedir” para “receber”. 

Com toda a intencionalidade eu repito uma vez mais que cada “pedido”, tal como exige a verdadeira “oração”, deve manter-se afastado de toda a pedinchice e suplicação.

Não se trata de por fim abrandar um coração enfurecido ou de importunar por um dom que não é devido ao pedinte.

Quem por procurar e encontrar correctamente mereceu o direito de pedir, tem só que estar atento a que igualmente - num pedido  compreensível, - mantenha  a atitude correcta que leva a libertar as forças, através das quais o «receber» torna-se realidade.

Este “pedir” é uma modelação plenamente calma e segura  duma imagem representativa precisa,  que pode ser vista como um "modelo" do que se "pede”-

Todavia uma vez que a vontade de quem reza criou esta imagem e a condensou com o máximo possível de solidez, deve entregar, abandonar e confiar totalmente a si e à sua obra à Vontade eterna do Ser Primordial.

Agora tudo dependerá do imergir de toda a vontade própria, com o “modelo” por ela modelado, na Vontade do Ser Primordial, de tal modo que nem o mais leve movimento da vontade possa sair do mar da Vontade eterna - que nem a mais pequena parte do “modelo”  deixe de ser enchida e percorrida pelas ondas deste mar.

Se o que é «pedido» dessa maneira é plenamente «dado»  na Vontade eterna do Ser Primordial, e se quem pede tem já o direito de o merecer,  através do seu “procurar” e  “encontrar”, então o pedido é satisfeito no mesmo instante  em que ocorre a imersão total na Vontade Primordial, e só é preciso deixar  o tempo terrestre necessário para que o efeito da oração se possa manifestar, assumindo que quem ora sabe também “bater” do modo certo.

A única e verdadeiramente insuperável oposição, que  tal “pedido" pode encontrar no próprio ser humano, é a dúvida!

Quanto à possibilidade de ser ouvido favoravelmente, quem ora apenas pode pressentir e tatear.

Ele não pode  saber com segurança se o seu pedido faz parte das coisas que de toda a eternidade estão já dadas na Vontade Primordial e só sabe com pouca certeza se já tem direito a que o seu pedido seja plenamente satisfeito. 

Deste modo também não pode saber se em tal caso já foi concedido o seu pedido, e seria presunção temerária esperar tal em todas as circunstâncias.

Todavia não deve portanto duvidar um só instante que terá de lhe ser concedido tudo o que de acordo com as circunstâncias lhe pode ser dado!

Deverá afastar a pergunta: - se "receberá" ou não o que pede -,  completamente  do seu pensar e sentir!--

Todos os desejos e esperanças tem, de certo modo, de em si "neutralizar"  .

Tem de se unir sem reservas à Vontade do Ser Primordial, -  tem de se fundir totalmente com esta Vontade sem deixar germinar a mais leve dúvida quanto à certeza da aprovação, na medida em que a possibilidade de aprovação existe!

Isto também tem de ser "aprendido", e só quem aprende tal, se tornará senhor de todas as dúvidas!

Com o tempo, quanto mais se torna evidente que o «pedido» certo leva consigo a sua aprovação, tal como ela se pode desenvolver, mais  fácil será vencer todas as dúvidas, antes mesmo que elas se possam erguer como obstáculos no Caminho.

Porém, quem tenha conseguido vencer realmente a dúvida,   não deve ao orar tornar-se presunçoso na sua confiança!

Acima  de tudo,  não deve crer que pode determinar o tipo e o modo como o seu pedido será concedido, nem ser levado também a querer de certo modo impor o momento certo para si…

Tudo isto não lhe compete!

Ele deve entregar tudo isto às sublimes potências às quais a eterna Vontade Primordial deu a missão de exercerem a sua influência espiritual sobre os destinos, de tal maneira que o encadeamento dos acontecimentos ligue uns aos outros os elos necessários para produzirem, sem perturbação das leis físicas terrestres, os efeitos originados no reino do Espírito - no reino das Causas originais.

Assim pode parecer que um “pedido” não conseguiu ser ouvido, quando todas as forças estão já postas em movimento para o satisfazer, mas que se podem desenvolver de modo diferente do esperado pelo orante.

Frequentemente, para quem ora, chega após um longo tempo o dia em que acaba por reconhecer que já há muito tempo a sua prece  fora outorgada e de modo melhor do que podia esperar…»

terça-feira, 14 de setembro de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 3º cap.1ª p. "Pedi e recebereis". Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                                                    

                                     “PEDI E RECEBEREIS”  

«Clarifica-se agora neste capítulo se quem procura, chegado à segunda exigência, tem também verdadeiramente direito  de “pedir”!

 “Pedir” neste caso não significa suplicar para obter um dom que viria de certo modo, de fora! "Pedir" consiste aqui em libertar uma força espiritual que causa a entrada em manifestação do que já lhe pertencia por ter “procurado” e “encontrado”.

O ser humano na verdadeira "Oração" não pode pedir senão o que já está dado de toda a Eternidade na Vontade do Ser Primordial.

Contudo só poderá fazer seu, mesmo o que é assim dado, nesta imersão em si mesmo, se  renuncia à sua própria vontade, permitindo a esta última mergulhar na Vontade do eterno Ser.

Assim ao que verdadeiramente «pede» já antes está dado o que ele pode pedir...

A verdadeira “oração” pode sem dúvida ter também um fim definido e muito particular, mas a força operativa do “pedido” não é sem fronteiras!

Esta eficácia é determinada precisamente por parte de quem pede pelo que soube realmente fazer seu - de tudo o que lhe é dado -, de modo que sabia-se em tempos passados que não era um disparate o facto da oração de seres penetrados duma fé ardente levar a certos resultados enquanto  todas as orações de outros  nada resultavam…

Permanece sem importância se aqueles cuja oração era considerada como mais eficaz, tinham  conhecido racionalmente o segredo da verdadeira “oração” ou se eles apenas  pressentiam obscuramente a verdade.

Mesmo quando através duma crença obscura eram levados a proceder inconscientemente correctamente, eles conseguiam verdadeiramente elevar o poder de realização da sua oração a um grau que parecia aos outros miraculoso.

Todavia também em numerosos relatos desses mestres da “oração” verdadeira narra-se que, em certos casos mesmo a oração deles não tinha poder, fosse por causa da incredulidade ou da insensibilidade daqueles para quem oravam, ou porque eles queriam obter para eles próprios pela “oração”, o que eles não podiam “pedir” para si.

  Seria também verdadeiramente exagerado querer-se denominar a verdadeira «oração» de «toda-poderosa» pois o poder do Ser primordial eterno tem os seus próprios limites, pois a Divindade eterna não pode agir contra si própria.

Por outro lado são extremamente raros nos dias de hoje os seres que ainda sabem pela sua própria experiência o que a  “oração” verdadeira pode ainda realizar.

Alguns tornaram-se porém conhecedores do poder da «Oração», mesmo não conseguindo adivinhar porque é que foram «ouvidos»,  de modo que tentam explicar à sua maneira o que a sua intuição imperfeita não lhes consegue clarificar.

Eles chegaram, numa  necessidade severa dificuldade da alma,  a mergulhar, sem saber como, nas maiores profundezas de si próprio e em consequência a "encontrar", e de igual modo inconscientemente conseguiram "pedir" correctamente,  e da mesma maneira aprenderam o “bater” certo,  de modo que os portões do Templo tinham de se lhes abrir.--

Já que é possível na realidade a todo o ser humano aqui na terra  “orar” do modo certo, plenamente consciente da  acção sublime,quando  ele aprende a “orar”, e não tem que esperar primeiro que um sofrimento físico ou uma angústia moral o ensine por via inconsciente, - assim seria menosprezar a ajuda divina se todos os que receberam o ensinamento correcto não se esforçassem em seguida por agir de acordo com o ensinamento recebido…

A bom número de seres parecer-lhes-á muito estranho que seja necessário aprender a «orar», tal como qualquer coisa que se pode aprender?!

Porém todos, os que outrora aqui na Terra  praticavam conscientemente a “oração” como uma arte sagrada celestial, chegaram a tal através de ensinamento e da sua própria aprendizagem.

Sim: -  o antigo relato sagrado revela-nos que os discípulos do grande Ser de Amor, que lhe pediam para lhes ensinar a orar, já deviam  ter adquirido alguma perspectiva elevada, pois só tal saber de que se pode aprender a orar justifica o pedido feito ao Mestre.

 Já conheciam certamente suficientes fórmulas de oração e   não lhe pediram também: “Senhor, ensina-me uma oração nova “ mas, claramente e nitidamente: 

“Senhor, ensina-nos a orar!”»

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Frei Manuel de Deus, um espiritual do séc. XVIII. A oração mental em grupo, beatos e "onde dois ou três se reunirem em meu nome"

Em 1728 saía à luz simultaneamente em Lisboa e Coimbra uma obrinha devocional intitulada Pecador Convertido ao caminho da verdade, instruido com documentos importantes para a observancia da Ley de Deos, dedicados ao Rey da Glória & Redemptor do Mundo, Jesus Christo nosso Senhor. Em Lisboa imprimi-a Miguel Rodrigues e em  Coimbra era o Real Colégio das Artes, da Companhia de Jesus.
 O livro levava no frontispício três garantias ou chancelas protectoras: o reputado convento do Varatojo dos missionários franciscanos, fundado por Frei António das Chagas, o Real Colégio das Artes, antigo bastião do Humanismo mas  entregue depois por D. João III à Companhia de Jesus, vulgo Jesuítas e, por fim, a invocação angélica, numa bela vinheta que, com outras do livro, ilustram esta pequena revisitação bloguiana, na unidade da Tradição Espiritual Portuguesa....
Do seu autor, Fr. Manuel de Deus, diz-nos o notável bibliógrafo Barbosa de Machado na sua incontornável Biblioteca Lusitana: «nasceu na Vila da Amieira do Priorado do Crato no Arcebispado de Évora a 25 de Fevereiro de 1696, onde teve por pais a António Pires Ribeiro, e Maria de Moura. Estudou as letras humanas, e divinas na Universidade desta Cidade com tanta viveza de engenho e felicidade de memória que foi Colegial do Colégio da Purificação. Movido de superior impulso deixou o século em idade varonil abraçando o Seráfico instituto no reformado Seminário de Santo António do Varatojo, no ano de 1715. Onde exercitou o ministério de Missionário Apostólico por várias terras do Reino devendo-se à veemente energia dos seus discursos, e suave atracção das suas vozes, a conversão de muitas almas para o caminho da eternidade. Ao tempo que estava fazendo Missão no Campo Grande, arrabalde de Lisboa, faleceu piamente a 6 de Outubro de 1730, quando contava 35 anos de idade. Faz dele honorífica memória Fr. Joan. a D. Ant. Biblioteca Franciscana. Tom. 1. p. 329. col. 1. », dando em seguinte a lista das suas cinco obras, onde se destaca a Luz, e methodo facil para todos os que quizerem ter o importante exercicio da Oração Mental acrescentado com a Via-sacra, e Ladainha de Nossa Senhora.
Vemos assim que o autor praticava, pregava e ensinava a polémica oração mental, que desde o séc. XVI, por causa de alguns místicos, alumbrados e quietistas tinha despertado a repressão  da Inquisição, à qual consagrou tanto o livro referido como muitas referências e apologias neste Pecador Convertido, no exemplar que estudamos encadernado em pergaminho, sobrevivendo dois atilhos dos quatro que o encerravam e protegiam, qual escrínio secreto. A lombada deixa ainda ler a um olhar treinado no discernimento Pecador convertido numa tinta muito sumida, escrito pelo encadernador ou pelo seu primeiro possuidor, mas quem os discernirá no Oceano da manifestação em material perecível?
O plano da obra é simples:  necessidade de conversão, a importância da oração mental e do amor de Deus, resistência às tentações, meditações breves sobre temas como morte, glória, conhecimento de Deus e, finalmente, a defesa da oração mental pública, ou seja, de meditações colectivas. Transcrevamos algumas partes significativas:
Na pág. 349, no capítulo onde demonstra e conclui que "mais agrada a cada um a Deus, orando publicamente com muitos, que orando ocultamente só", e no qual dá grande cópia de passos dos Evangelhos e comentários dos padres da Igreja para explicar que o orar a sós recomendado e vivenciado por Jesus em geral era com o consórcio dos discípulos e,  portanto, o estar só refere-se mais a estar livre das multidões e suas turbulências; e depois de apontar que a noite é bem propícia para a oração mental e por isso é que nas comunidades religiosas se levantavam três vezes para rezar, finaliza o capítulo de um modo bem instrutivo quanto a certos ambientes e mentalidades da época, e com uma consciência bem perenizante: «Porque este livro pode passar por mãos de algumas pessoas ignorantes, me é necessário declarar-lhes bem, que ainda que me empenho tanto a favor da oração pública de muitos juntamente, não quero dizer que a oração oculta não é boa: digo que é muito boa, mas a outra melhor. Não se escuse alguém de ter oração por nenhum pretexto: se não se atrever a ir à oração pública, por não lhe chamarem beato, tenha oração oculta; e se continuar, não lhe durarão os temores muito tempo».
Realçamos esta advertência destinada a encorajar a participação na oração mental pública, em igrejas, capelas ou sacristias sem recearem ser chamadas de beatos, expressão popular que adquiriu sentidos irónicos, visíveis por exemplo já no séc. XVI, na peça Olissipo, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, em que personagem "Beata",  da 1ª edição (hoje desaparecida...) foi substituída na 2ª edição pela "Viúva", por ordem dos censores da Inquisição, como diz o genro de Jorge Ferreira de Vasconcelos na apresentação dessa 2ª edição, de 1618.
Vejamos outras indicações de interesse para a História do Livro e da Espiritualidade Portuguesa: 
«Se tens comodidade, recomendo-te, que busques mais alguns livros, que te dêem documentos e luzes, se não és pobre, procura os Exercícios do Padre Alonso Rodrigues, a Diferença entre o temporal e eterno [do P. Juan Nieremberg]. Se és pobre, procura o livrinho Combate Espiritual [do P. Lorenzo Scupoli] e a Escada Mística de Jacob [do P. Manuel Guilherme]. Se nenhum poderes procurar, e te chegar este às mãos, faz propósitos firmes de obedecer a Deus, observando, o que aqui te disser; e quando sentires as utilidades da observância destas doutrinas, e lembra-te sempre de rogar por mim a nosso Senhor, em cujo nome começo a dirigir-te.» p.33. 
Vemos nesta passagem alguns livros recomendados, vulgares na época, os primeiros volumes grandes e logo mais caros, e os outros pequeninos, tal como também o era o famoso Enchiridion Milites Christiani, Manual do soldado cristão, de Erasmo, protótipo da devotio moderna, e que se pode traduzir tanto por Manual como por Punhal, como bem mostrei no meus comentários ao Modo de Orar a Deus, de Erasmo, que publiqueiComo  homem sensível e pragmático, Frei Manuel de Deus recomenda o seu livrinho, certamente barato, e escrito, diz-nos, em nome do mestre. 
Registe-se, todavia, que no paratexto inicial, na aprovação pela Mesa do Paço, o mais que sábio D. Manuel Caetano de Sousa (1658-1738), que privou com o autor, valoriza, parecendo ecoar Erasmo, a oração mental vivida e ensinada por Frei Manuel: «tão sublime exercício, para o qual dá breves mas certísimas regras, e arma aos soldados da milícia cristã contra todos os vícios», acrescentando a  conformidade da doutrina do livro com a dos mestres da vida espiritual.  Registe-se ainda, segundo a aprovação do mosteiro da Graça (um alfobre de místicos, para outros um conventículo de semi-heréticos) por Frei Manuel de Cerqueira  e Frei Manuel de Boaventura,  que  o autor queria publicar a obra anonimamente, sinal da sua modéstia e domínio do ego (ou "argumento eficaz o fervor do seu espírito", mas não foi autorizado porque: «será o estampar-se o nome do Rev. P. Frei Manuel de Deus no frontispício do seu livro uma singular carta de recomendação, para que se aproveitem deles os fiéis, e pela grande fé que nele têm, frutifique muito mais a sua doutrina».
Iniciando a sua instrução da oração mental, fala de um modo bastante visual, real e directo:«Criou-te Deus para te fazer bem-aventurado... Mas não te pôs teu amoríssimo Pai, para conseguir a suma felicidade, mais que uma lei suavíssima, que te servisse de asas, com que voasses... Abre os olhos, caríssimo irmão meu, prepara-te para receber um raiozinho de luz, que te desperte ao amor do sumo bem, que menosprezaste. Oração mental é o remédio que o Senhor te aplica, e com tanto empenho que não se contenta com persuadi-lo uma vez só, mas muitas vezes o repete nas Escrituras; repara bem, conversar com Deus é o remédio...» Quanto tempo de escuta silenciosa recomendaria para depois de tal diálogo ou solilóquio, que no fundo é mais uma útil confissão e por vezes um auto-sugestionamento, não sabemos...
Ainda assim, interroga-se como é possível tal: «Oh eterno amor da minha alma! Que gosto tendes de ouvir um bichinho vil por natureza, e mais vil pela culpa? Que consonância faz a vossos ouvidos o canto de uma cigarra entre as suaves músicas dos Anjos?» Estaria Frei Manuel de Deus conhecedor ou atento à audição subtil interna, usada por místicos gregos e indianos, e na qual o canto das cigarras nos campos e de noite parece uma sinfonia planetária?
Recomenda depois a consideração do famoso e eficaz "mantra" (quando se pessoaliza..) Amarás a teu Deus, e Senhor, de todo o teu coração, com toda a alma, com todo o entendimento, e com todo o esforço. Este é o máximo, e primeiro preceito.»
Já na parte final, na Demonstração da excelência da oração mental pública de muitos juntamente, introduz uma obra de outro dos mais ardorosos defensores da oração mental ou de quietude, tão atacada por alguns e no caso, uma décadas depois, proibida mesma pelo Marquês de Pombal: «Há pouco tempo saiu à luz um livro, cujo título é, Vindícias da virtude, obra do grande Padre, e ilustrado Mestre, o Doutor Frei Francisco da Anunciação, que desfaz com tanta eficácia, sagrada erudição, e evidência todos os argumentos, de que se vale a impiedade para fazer guerra à virtude, que lendo-o, não poderão deixar de emudecer os malévolos e confirmar-se os pi[edos]os». E valorizando de novo a oração mental em grupo, explicita com experiência e originalidade o paradigmático passo do cap. XVIII de S. Mateus:«De dois modos se costumam ajuntar os fiéis para a oração, ou para pedirem todos a mesma coisa, ou para orar cada um particularmente segundo a sua devoção, e necessidade. Mostra nosso Senhor nestas palavras a grande eficácia da oração de muitos, como dizem todos os Santos Padres, e faz especialíssima promessa de serem ouvidos. E sendo tão admirável o motivo: "Onde estiverem dois ou três congregados em meu nome, eu estou aí no meio deles". Diz Cristo Senhor nosso, que está no meio dos que estão juntos por seu amor, e sua glória na oração, e que esta é a causa de ser a oração  de muitos congregados eficacíssima; porque está no meio deles, como penhor dos que hão-de ser ouvidos, como mestre ensinando, como Pai defendendo, como medianeiro rogando, como alma daquele corpo místico animando-o».
E fiquemo-nos por aqui, dando graças a Frei Manuel de Deus, e rogando à Divindade que nos fortifique a todos nesta peregrinação rumo à Verdade e à Fonte, no amor, na sabedoria e no bem, ou ainda no corpo místico da Humanidade por onde correm os veios e as graças da verdadeira oração...

sábado, 11 de setembro de 2021

Biografia de Antero de Quental, cronológica e resumida, nas comemorações dos 130 anos de sua partida.

                                         

Tal como muitos dos grandes seres, Antero de Quental, ainda que tendo alguns amigos bem próximos, acabou por se consciencializar da sua impossibilidade de fusão e união com alguém e, tendo atravessado a vida com a ardência e a sinceridade dum idealista da justiça, da verdade e da liberdade, mas sem o coração em maior desabrochamento, acabou por se lançar voluntariamenteao mar da misteriosa Morte, por ele sempre muito cultuada, a 11 de Setembro, na sua terra natal, ao final da tarde.  Nascera em 18 de Abril de 1842, em Ponta Delgada, na ilha vulcânica de S. Miguel, Açores, de família com tradições religiosas e poéticas marcadas (o P. Bartolomeu Quental era parente, e o seu avô fora poeta, companheiro de Bocage),  matriculando-se na Universidade de Direito de Coimbra em 1858, onde cedo o seu génio convivial, poético, filosófico peripatético e contestatário brilha: é preso em 1859 por oito dias (cumpridos em duas vezes) por ordem do Conselho dos Decanos, em 1861 funda com José e Alberto da Cunha Sampaio, António de Azevedo Castelo Branco e Frederico da Silva Filemon, uma  associação secreta e iniciática, a Sociedade do Raio, contra o despotismo na Universidade e pela modernização do ensino, e refere-a numa carta:«irmãos e adeptos nesta grande maçonaria da inteligência e da poesia e um pouco também da dor.»  A partir dela, em 1862, lidera  a pateada ao reitor Basílio Alberto de Sousa Pinto e redige o manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Opinião Ilustrada do País, subscrito por 314 estudantes. Será de 1861 o seu primeiro livro Sonetos, contendo vinte e um, mas fá-lo-a desaparecer imediatament tornando-se uma edição raríssima. Estavam antecedidos da sua teoria poética, mostrando nela os principais elos da tradição espiritual do soneto em Portugal: Camões, Bocage e João de Deus, seguindo-se os seus sonetos. Porém em Outubro e Novembro de 1863 retoma a saga e publica os livrinhos  Beatrice, e Fiat Lux onde de certo modo se filia ou se identifica com os Cavaleiros de Amor, de Dante, Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Bocage. Beatrice, com quatorze poemas e o belíssimo soneto, "Pôs-te Deus sobre a fronte", escrito sob a égide de Dante, tem uma valiosa citação inicial de Lamennais, na linha dos Fiéis do Amor de Eugène Aroux, acerca da Beatriz, musa e símbolo da demanda da Verdade do Amor humano e divino, infinito e perene. 

Em Março de 1864 começa a  assinar como Bacharel José, o seu terceiro "heterónimo-pseudónimo", o 1º tendo sido Vasco Vasques Vasqueanes e o 2º Raimundo Castromino, Correspondências coimbrãs semanais muito irónicas no jornal O Século XIX, de Penafiel, fundado a 19 de Março pelo seu amigo Germano Vieira Meireles e o pai do seu futuro amigo Joaquim de Araújo (1858-1917). Estas correspondências, quarenta e nove escritas até 5 de Julho de 1865, espelham uma época muito criativa de Antero.

Em Abril de 1864 lidera a revolta e a saída dos estudantes (a Rolinada) até ao Porto, em protesto contra o presidente do Governo, o duque de Loulé, Rolim de Moura, e em Julho termina a sua formatura em Direito.  Poeta nato,  irreverente, caminheiro, filósofo e revolucionário, interessa-se ainda pelas literaturas, mitologias e religiões orientais, em especial persas e indianas. Os seus primeiros versos são românticos, religiosos e filosóficos, editados em folhas volantes, revistas, jornais ou em pequenos opúsculos já mencionados mas será só em Agosto de 1865, com as Odes Modernas, que transmite ou manifesta publicamente com mais impacto os seus ideais revolucionários de justiça, verdade e liberdade: a Revolução era a nova Religião... 

É nesse ano super-movimentado de 1865, iniciado em Janeiro com a publicação magistral e irónica  da Defesa da Carta Encíclica de Sua santidade Pio IX contra a chamada Opinião Liberal, e continuado em Abril com o Sentimento de Imortalidade, que em Novembro inicia a polémica do Bom-Senso e  Bom-Gosto com António Feliciano Castilho, o principal mestre literário de então, que criticara e ridicularizara a nova escola moderna coimbrã de poesia, polémica na qual participarão vários escritores, e tendo até de vencer num duelo em Fevereiro de 1866 o conservador e algo farfalhão Ramalho Ortigão, que se erguera em defesa do patriarca Castilho. Era o começo da Literatura moderna a despontar em Portugal

Embora já formado em Leis, e hesitando quanto ao seu futuro, tal como alistar-se nos exércitos autonomistas de Garibaldi,  decidiu-se por entrar na realidade social como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional de Lisboa, e parte em Novembro para Paris a fim de ser um operário numa tipografia, mas também para assistir a palestras no Collège de France, vida que contudo não aguenta muito tempo (dois meses e pouco), pelo que regressa em Janeiro de 1866, recuperando na quinta dos seus condiscípulos José e Alberto Sampaio, em Guimarães. Persistente, em 1867 regressa a Paris, e  encontra-se em Agosto com um dos seus mestres (tal como Proudhon) ou inspiradores,  Jules Michelet, não se desvendando porém como o autor do livrinho que lhe oferece. Quando regressa a Lisboa em Novembro de 1868, após quase um ano em Ponta Delgada,  valoriza as ideias iberistas de Emílio Castelar, que o chega a convidar a ir para Madrid, e escreve o Portugal perante a Revolução de Espanha - Considerações sobre o Futuro da Política Portuguesa no ponto de vista da Democracia Ibérica, bastante atento às linhas de força que estavam a coalescer: a Revolução Espanhola de 1869 e a proclamação da República em 1871. Esta fermentação espanhola influenciava bastante o meio português, nomeadamente na fundação de jornais e de ideologias, mas mesmo assim o folheto e as ideias iberistas de Antero tiveram os seus opositores, tal como acontecerá sempre em relação às suas obras, sobretudo as mais polémicas. Refiramos apenas, por exemplo, o Almanach Patriótico e Anti-Ibérico para 1869, contendo um artigo Abaixo a União Ibérica, e um poema de Tomás Ribeiro Aos Iberistas, onde denuncia e apela: «E dizem que é Lisboa a filha impura/que invoca essa madrasta destestável!/ Sobre o roto burel veste a armadura/ parte essa louça e surge, ó condestável!»

Inicia então a divulgação dos ideais de Proudhon e do Socialismo, na qual a   caverna filosófica foi o Cenáculo, um grupos de condiscípulos e amigos que se reunia em casa de Jaime Batalha Reis, ao Bairro Alto lisbonense na Travessa do Guarda-Mór, nº 19, 1º, na qual épicas dissertações e acaloradas discussões se ergueram, refrescadas peripateticamente no jardim de Alcântara, situado a uns metros e com vista bem abrangente sobre o centro do burgo lisboeta.

Em 1869, de Março a Novembro, vai por barco até Nova Iorque, ambiente que o desilude, e regressa, continuando na escrita de artigos e poemas, e dando à luz em Dezembro no jornal Primeiro de Janeiro poemas do seu pseudónimo Carlos Fradique Mendes, que será posteriormente explorado por Eça de Queiroz.  1870 é um dos anos mais políticos, pois conhece e trabalha com José Fontana, o grande pioneiro do socialismo em Portugal, e Oliveira Martins, dirigindo ou fundando com eles  e Jaime Batalha Reis, António Arriaga e António Enes, os jornais República Federal e A República - Jornal de Democracia Portuguesa, numa época de florescimento imenso de tipografias, editoras, jornais, revistas e livros, que ocupavam fortemente o centro das cidades, sobretudo de Lisboa.

                                                   

Em 27 de Maio de 1871, dois meses exactos depois da eclosão da Comuna em Paris, liderando um grupo de pensadores amigos mais avançados, pronuncia a fortemente crítica conferência sobre As causas da decadência dos povos Peninsulares nos três últimos séculos, a que se seguiram as de Augusto Soromenho e de Eças de Queiroz sobre Literatura, a de Adolfo Coelho, sobre a Questão do Ensino, a 19 de junho,  até que o ministro do Reino, Ávila e Bolama, determina proibi-las, obrigando Antero a replicar-lhe contundentemente em 30 de Junho, em mais um dos seus geniais escritos ou folhetos em defesa da liberdade.  Dá a luz em Fevereiro de 1872, no meio da sua actividade pública socializante, tanto a revista  Pensamento Social, com José Fontana, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins e Jaime Batalha Reis, onde irá escrevendo múltiplos artigos, como o livro Primaveras Românticas, uma escolha da criatividade e vivência mais juvenil e romântica, amorosa e idealista e que contém poemas belíssimos, vários dedicados às musas dos seus amores juvenis.

Tendo regressado a Ponta Delgada em Abril de 1873 por causa da morte do seu pai, adoece inesperadamente em 1874, só regressando no fim do ano e para começar um longo calvário de diagnósticos e tratamentos ineficazes (seja um estrangulamento do piloro, que lhe dificultara as digestões e o sono, seja um estado psicosomático nervoso sujeito a enfraquecimentos) que o vão diminuindo, e o fazem peregrinar por Lisboa, Açores e Paris em busca de cura.  Em 1877 nas termas de Bellevue encontra uma mulher por quem sente uma paixão forte, Clotilde, mas que não avançara, embora gere um dos seus mais belos poemas de amor, Mors-Amor.

 Tudo isto aliado a uma certa desilusão da actividade política e social a que se entregara bastante em 1878 e 1879, chegando a ser candidato pelo Partido Socialista, depois de ter recusado sê-lo no Partido Republicano-Socialista, reforçam algum pessimismo filosófica e poeticamente. Mas nos primeiros dias de 1881 sai à luz no Porto, na Biblioteca da Renascença,  do seu amigo Joaquim de Araújo, a segunda edição aumentada dos Sonetos, que o afirmam rapidamente como a grande voz poética da época. São apenas 28 sonetos, inclusos em 21 títulos, que mostram linhas de força do seu processo crítico de libertação de mistificações religiosas e de ilusões e medos humanos, numa demanda intensa e sentida da Verdade, filosófica e espiritualmente, proporcionadora sobretudo de desprendimento, estoicismo e serenidade...

 O seu pessimismo começa a ser ultrapassado de certo modo partir do Outono de 1881, quando instalado em Vila do Conde, com as duas filhas do seu amigo Germano Vieira Meireles, que adoptara no final de 1879, e a viúva Teresa, as suas inquietações metafísicas e poéticas começam a dar frutos interiores de transmutação, realizando em si algo próximo do que chamara seja um “Budismo coroando um Helenismo”, seja algo da compreensão profunda da alma dos místicos cristãos alemães, seja uma maior união do espiritualismo com os dados do materialismo científico, seja o panpsiquismo que permeia tudo e todos.

                                 

 Em Vila do Conde, com as suas pupilas Albertina e Beatriz e a mãe Teresa adoentada, junto ao mar, dá à luz em 1883, para elas e para a juventude o Tesouro Poética da Infância, com um belo poema seu, As Fadas (já abordado neste blogue), onde no prefácio justifica-se:«Este livrinho, destinado exclusivamente à infância, dedico-a às mães e cuido fazer-lhes um presente de algum valor. Convencido de que há no espírito das crianças tendências poéticas e uma verdadeira necessidade de ideal, que convém auxiliar e satisfazer, como elementos preciosos para a educação - no alto sentido desta palavra, isto é, para a formação do carácter moral - coligi para aqui tudo quanto no campo da literatura portuguesa me pareceu, por um certo tom ao mesmo tempo simples e elevado, ou ainda meramente gracioso e fino, poder contribuir para aquele resultado, em meu conceito, importantíssimo»
Entretanto vai escrevendo e enviando aos amigos  os seus notáveis Sonetos, na forma e no conteúdo, os quais testemunham uma certa evolução espiritual, embora ainda assim bastante aquém do que ele desejaria já sentir, ser e ver de plena luz e conhecimento. Poderemos pensar que lhe faltou uma prática espiritual meditativa persistente e uma boa contextualização da Divindade, nisso algo limitado pelo ateísmo, o inconsciente e o budismo que na altura predominavam. Mas de facto progredira bastante e em Março de 1885,  escrevia os sonetos Com os Mortos, e O que diz a Morte, os últimos da sua veia poética e bem significativos de crença na vida depois da morte: «Mas se paro um momento, se consigo//Fechar os olhos, sinto-os a meu lado//De novo, esses que amei: vivem comigo,//Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,//Juntos no antigo amor, no amor sagrado,//Na comunhão ideal do eterno Bem.» Desses poucos poemas mais clarividente dirá uns dias depois a Francisco Machado de Faria e Maia «cheguei a dar expressão poética (e creio que ninguém ainda o tinha feito) ao misticismo moderno, misticismo científico e positivo, se assim se pode dizer».
Os Sonetos sairão à luz em 20-VIII-1886 e tornam-se uma obra incontornável da poesia moderna portuguesa e, no  nível formal ou no  filosófico, dificilmente comparável, embora na altura só alguns amigos lhe escreveram elogiando o livro, restando hoje várias cartas das respostas de Antero, de agradecimento maior ou menor conforme tinham compreendido a obra. Uma segunda edição dos Sonetos enriquecida com traduções em línguas estrangeiras realizadas por notáveis intelectuais, dá-lhe em 1889 um relativo sabor de consagração...
Uns meses depois da publicação do livro, o crítico literário e lusófono alemão Wilhelm Storck envia-lhe a tradução de alguns sonetos, respondendo-lhe Antero, a 14-V-1887, com uma extensa carta-autobiográfica de grande valor, onde confessa como se sentiu poeta muito cedo e descreve o seu percurso de vida, corpo, pensamento e alma. A dado momento afirma bem o seu posicionamento panpsíquico: «O Naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das coisas, mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser. No  Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade Moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só  do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos físicos elementares.». Em Fevereiro de 1888 repetirá o mesmo em carta ao jovem poeta Carlos de Lemos valorizando muito:«o sossego interior e a placidez crente de quem encontrou na liberdade moral e no Bem a lei da existência», e aponta-lhe  Camões, Herculano e João de Deus, como os três mestres supremos da poesia portuguesa, recomendando lê-los por serem "grandes espíritos e profundos moralistas", podendo ajudá-lo "a fazer-se  um homem, que é esse o fim soberano da vida"....

Tenta então aprofundar e coordenar as suas ideias e "doutrinas", os seus trabalhos para a Geração nova e a Religião do Futuro, mas a saúde apoquenta-o e limita-o. Vai recebendo alguns amigos, como por vezes manifesta a sua maravilhosa correspondência, conservada pelos destinatários, e destacaremos Fernando Leal, Luís de Magalhães, Eça de Queirós e António Feijó e desde meados de 1889 começa a escrever o seu testamento filosófico, ético e espiritual, que se encontra também disseminado nas cartas, As  Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, que será publicado na Revista Portugal, no primeiro trimestre de 1890 e virá a ser bem estudada por Leonardo Coimbra, Joaquim de Carvalho e outros.

Quando se dá a 11 de Janeiro de 1890 o Ultimatum do imperialismo inglês, face à reacção cívica dos portuenses e em especial ao convite dos estudantes, aceita o cargo de Presidente da Liga Patriótica do Norte, que Luís de Magalhães e mais uns poucos de intelectuais lhe foram pedir a Vila do Conde, com eventos de grande emoção e civismo, tal a recepção dos estudantes aos vivas diante da casa de Carolina Michäelis onde ficaria hospedado. Escreve artigos para vários jornais e revistas e  sai também em folha volante e de grande tiragem o seu tão pedagógico Discurso lido na sessão de 7 de Março da Liga Patriótica do Norte pelo seu presidente Antero de Quental, onde após criticar "o insulto e a vilânia da Inglaterra" considera necessário "um esforço viril e persistente para sermos de facto independentes", constatando ainda "entre a nação e os governantes um verdadeiro divórcio", a  realidade triste de que "os governos, em Portugal, deixaram há muito de representar genuinamente os interesses e o sentir da nação".  E de facto a fraqueza do País e dos políticos acabam por desiludi-lo totalmente, já que o movimento desapoiado esmorece, abandonando de vez a participação pública na marcha dos acontecimentos políticos. Regressado a Lisboa, onde permanece cerca de um ano bastante desiludido com o ambiente geral e em especial a política, volta ainda uns 40 dias a Vila do Conde para encerrar a casa,   regressando  a Lisboa para se ir despedindo dos amigos e a 8 de Junho partir para S. Miguel, rumo a Ponta Delgada. 

Com os seus padecimentos nervosos, a consciência de que a sua missão e inserção terrena estava muito frágil e sobretudo a situação dolorosa de ter de se afastar das duas jovens que educara, resolve desincarnar samuraicamente com dois tiros de pistola, que comprara umas horas antes e embrulhara num jornal,  em 11 de Setembro de 1891, pelas 20:00, sentado calma ou, quem sabe, nervosamente (quem conseguirá ressuscitar tal ambiente interior?), num banco do campo de S. Francisco,  debaixo de uma âncora em relevo no muro da cerca do convento onde estava significativa palavra, essa que acompanha todos os peregrinos e nobres viajantes, e que talvez o tenha desamargurado um pouco antes de se lhe abrir a vereda árdua da vida depois da morte: "Esperança".

Antero de Quental foi um dos raros pensadores que se aproximou lúcido e imaginativae sensivelmente  da ideia da morte e das abismais regiões do Não-Ser, talvez se preparando nesta linha negativa para vir a experimentar com dificuldade e dor o dito grego "Morrer é ser iniciado", que pouco depois o seu grande amigo Joaquim de Araújo, e posteriormente Fernando Pessoa glosaram com grande qualidade (como pode encontrar em textos deste blogue). Pouco antes de morrer, desejara ou sonhara fundar uma ordem de contemplativos, a Ordem dos Mateiros que o crítico literário e pensador Fidelino de Figueiredo realçou como o testamento anímico de alguém que «teria sido um S. Bento de Portugal, restaurador da disciplina das almas, iniciador da sua reconstrução pelo recolhimento meditativo», acrescentando «Três coisas devemos pedir ao recolhimento monástico ou à sua irradiação: firmeza, paciência e esquecimento. Só para as propagar e difundir valeria a pena fundar a velha ordem dos Mateiros, de Antero de Quental - velha, sem nunca ter existido». 
Numa das suas mais belas poesias Antero concluirá: «A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência, / Só se revela aos homens e às nações / No céu incorruptível da Consciência», cabendo-nos este trabalho perseverante de transformação da nossa identidade, purificação e estabilização da consciência e religação dela ao espírito e à Divindade, na sua graça...  
 Os seus panfletos, a obra poética, nomeadamente os Sonetos, a filosófica e, sobretudo, as tão valiosas Cartas dirigidas aos amigos, bem editadas por Ana Maria Almeida Martins,  sobreviverão sempre na literatura, na filosofia e na espiritualidade portuguesa, tal como o seu In-Memoriam que, publicado cinco anos depois da sua partida do corpo físico, fá-lo vivo e interactivo connosco dada a qualidade do testemunho de muitos dos vinte e nove amigos, onde se destacam os de Eça de Queirós, Manuel Duarte de Almeida, Jaime de Magalhães Lima, Luís Magalhães, Joaquim de Araújo, etc...