HENCKE, H. Schultz-. ANALYSE DES RÊVES. Paris, Payot, 1954. In-8º de 251 p.
Psicanalista
heterodoxo com dezenas de anos de experiência e mais de 50.000 sonhos analisados, com uma vida bastante dinâmica, tendo-se adaptado bem tanto ao nacional socialismo, como depois da derrota da Alemanha ao comunismo soviético, Harald Schultz-Hencke,
partilha as suas teorias, nas quais os sonhos se integram com a vida
imediata e as pulsões internas, numa obra bem profunda e valiosa que
dividiu em: A - Noções de Antropologia; B - Sonho, espelho da vida de vigília;
C - Ambiente natural do sonho; D - O Sonho em condições artificiais; E - Tabela de
modelos de sonhos, esta parte final bem extensa e com várias alíneas de tipificações, tendo como base um tríade: Desejos de posse (de possuir, de guardar), Desejos de superioridade (de superioridade e agressivos) e Desejos sexuais (ternos, de abandono ou dedicação, sexuais, eróticos), e que manifestam tanto as necessidades mais simples de desejos infantis como as necessidades já condicionadas posteriormente.
Ora na 1ª parte, depois de apresentar as pulsões como
o centro da experiência vivida humana, distingue as Pulsões e
necessidades, Prazer e desprazer, Prazer e felicidade. Pulsões
primárias, ambivalências, necessidades de ordem superior e inferior, o
medo e a culpabilidade, As antinomias das interrelações humanas, a
antinomia entre o homem e o mundo. E, por fim, As formas de domínio da
ambivalência: 1 - a Satisfação progressiva da necessidades, 2 - Sublimação 3 - Compromisso entre as pulsões e as necessidades
ambivalentes, 4 - Renúncia, 5 - Inibição. 6 - Resumo e vista de
conjunto sobre o sonho, donde, por exemplo, transcrevemos acerca da ambivalência ou dualidade que nos confronta: «Os instintos e necessidades do ser humano colocam-se no centro das suas experiências vitais. Uma parte destes instintos vêm das profundezas obscuras. São originais, primários, outros respondem as experiências perceptivas do mundo. Os instintos superiores, espirituais, e os inferiores, animais, diferenciam-se nitidamente uns dos outros.»
Foi nesta valorização dos instintos ou necessidades de ordem superior, espirituais, que houve discordâncias em relação a Freud, e de facto a sua compreensão faz muito sentido, tal como quando escreve, em choque com o reducionismo pansexual freudiano: «o ser humano experimenta entre outras necessidades o prazer e a felicidade da contemplação pura. Este desejo pode ser inconsciente, mas é geral a todos. É vivenciado mesmo por aqueles que nada sabem disso e pensam que estão absorvidos totalmente pelas necessidades de ordem material do quotidiano. Ora aquele que está feliz por vivenciar tal sensação e que a procura, atinge a escala superior, considerada como pertencendo já ao domínio religioso. Do domínio das necessidades puramente físicas, o ser humanos eleva-se até à beleza, até à contemplação do universo, até à emoção religiosa». Ora como os sonhos reflectem todas estas necessidades humanas, são frágeis as teorizações e explicações parcelares ou limitadoras, pois o ser humano mais até do que ambivalente é multivalente, nomeadamente na sua «procura de prazer, de calma e de felicidade». Certamente que há frequentemente colisões entre «a forte necessidade sexual e as necessidades de ordem espiritual (segurança, ordem, paz)» a criarem problemas interiores e conflitos, geridos mais ou menos harmonizadoramente e que se reflectem nos sonhos.
É original o seu critério de distinção entre os valores superiores e inferiores: «é a duração, a perseverança. Certas satisfações físicas das necessidades e instintos de ordem inferior, tem um carácter relativamente fugidio. Há portanto uma concorrência entre a satisfação das necessidades espirituais, duráveis, e as das necessidades físicas, geralmente mais violentas», e ao contrários destas mais dificilmente evocadas pela memória, as psico-espirituais podem ser lembradas muito depois de gozadas, num tipo de reminiscência. Em grande parte o medo nasce do receio de perda da satisfação das necessidades que ele gosta, e da hostilidade contra elas, nomeadamente até de pulsões internas, disso nascendo sentimentos de culpabilidade, ou mesmo de falta ou pecado, quando as pulsões instintivas diminuem a sua vivencia mais plena e durável, a qual engloba ainda a sua forte necessidade de relação satisfatória afectiva social. Acerca desta dirá mesmo: «A necessidade social faz parte da vida humana interna, do mesmo modo que as necessidades de ordem, de paz, de segurança, de beleza, de contemplação pura». Mas face a antagonismos dos outros seres e ambivalências internas o ser humano acabará por ter ora de sublimar, ora de fazer compromissos, compensações, reorientações, discernindo ou consciencializando-se gradualmente dum Eu mais emocional e dum Si, ou Eu superior: «Ao procurar um compromisso para os seus instintos ambivalentes, o ser humano não o faz apenas com medo de perder o amor, por receio de punição, etc., mas ao princípio também porque ele deseja a constância, a unidade, da sua experiência vivida sob a direcção do Si mesmo, [Soi], [do seu verdadeiro ou mais pleno Eu]. E considerará que ela designa qualquer coisa que está consciente de certas verdades, ou que em todo o caso é capaz de tomar decisões geralmente com respeito ao «Bem» e ao «Mal». Enquanto não se fazia a distinção entre as verdades racionais, lógicas e existenciais dum lado, e do outro as verdades respeitantes aos valores, e portanto também não entre a razão e a inteligência, pensava-se tomar as decisões no domínio moral da mesma função que no domínio racional», pelo que realçara como a psicologia e a psicanálise tem de aprofundar, sem moralizações, tais aspectos da ambivalência do ser humano criadores de conflitos e culpabilidades e, citando ele próprio Carl Gustav Jung, realçará ainda que «existe um medo originário, primário, modo de desordem, do caos, da oposição, da perda da homogeneidade, dum choque ou da desaparição da «individuação» (Jung) da sua própria personalidade».
Fará ainda outras interessantes e originais correlações, nomeadamente entre o Tao, o Dao e o Si mesmo (o Soi, em francês), ou Espírito ou Eu Superior, pois considera que "a imponente concepção antropológica" de Lau Tseu vale perenemente, mesmo se devemos admitir hoje que se serviu de mitos tradicionais, nos quais Dau, deusa dos animais, desempenhava o papel de Magna Mater, a Grande Mãe, papel análogo àquele dos mitos gregos que Goethe conheceu e de que se serviu no Fausto [As Mães].»
Em seguida H. Schultz-Hencke abordará em duas páginas também muito valiosas "o Si mesmo e a centelha", que esperamos talvez traduzir ou ler, em texto independente. Seguem-se algumas páginas sobre a Renúncia na experiência perceptiva e representativa; a fuga diante do desejo; a repressão (censura); a diminuição de importância; o humor; a brincadeira; e finalmente a inibição. E terminará esta parte introdutória, antes de entrar na 2ª ou B, intitulada, o Sonho como espelho da vida desperta [eveillé, ou ainda de vigília], realçando como o ser humano tem no trabalho sobre si e nos sonhos os meios de manifestar e integrar as suas ambivalências internas e as suas antinomias externas (resultantes das experiências perceptivas do mundo) sendo muito importante nessa harmonização de necessidades ou instintos primários ou das profundezas obscuras, nomeadamente os espirituais e os animais com os adquiridos relacionalmente, os métodos de sublimação e da inibição, ainda que certas tendências e necessidades inibidas possam causar desequilíbrios internos, que podem formar depois nevroses, tais as patentes nas «pretensões grandiosas».
A visão Harald Schultz-Hencke é optimista: «O ser humano tem a possibilidade de passar das tendências inferiores físicas para as tendências espirituais e intelectuais, tem também o dom de poder renunciar às suas tendências inferiores, e ainda por cima graças à inibição das suas tendências inferiores ele pode alcançar conscientemente realizações sublimadas», papel este da sublimação muito importante também tanto no domínio dos mitos como na vida dos sonhos....
Bom, e se chegou até aqui é porque é uma das 2 ou 3 pessoas que me leem no blogue, um "privilégio", direi sorrindo e agradecendo, pois há dois fui bloqueado mais uma vez pelo vendido e opressivo Facebook, e desta vez por 30 ou mais dias, já que pode aprender um pouco mais, com o Harald Schultz-Hencke (Luz e amor para ele), sobre as ambivalências e multivalências, e sobre Si mesmo... Aum...
Bons sonhos, meditações e realizações!
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