O pedagogo, filosofo e teólogo ecuménico russo Léon Alexander Zander (1893-1964), após várias publicações escritas durante a segunda grande guerra , pode dar finalmente à luz, já com a paz estabelecida, em 1946, nas edições Corrêa, num in-8º de 179 páginas, uma obra valiosa, dedicada à sua mulher, sobre um dos compatriotas (pois publicara já sobre C. Leontieff e Sergei Boulgakov) que mais estudara e amava: Dostoïevsky, Le Probleme du Bien, tema que ele considerava «ser o objectivo final das suas buscas, o polo de atração para onde tendem todos os fios da sua dialética, sempre complexa e frequentemente embaraçada.» E na demanda de imagens concretas do bem, três personagens mais positivas, mais imbuídas de grandeza e de santidade, destacam-se na sua obra, Arkady Dolgorouky, o príncipe Mychkine e Aliocha Karamazov; contudo, o lugar metafísico do bem para Dostoïevsky não era tanto a alma humana quanto um princípio supra-individual e total onde o ser humano e o Universo se encontram em perfeita harmonia e em comunhão com o seu Criador [embora em geral houvesse apenas momentos "em que uma força invisível elevava alguém", ou "algo penetrava na sua alma"]. Graças à qual, os limites do problema do bem se alargam consideravelmente, e ele sai do domínio do humano e penetra directamente no da ontologia e da mística, fontes originais de toda a filosofia de Dostoïevsky.»
Se a totalidade dos críticos considera justamente Fedor Dostoïevsky (1821-1881) um grande conhecedor da alma humana, o que a sua vida tão atribulada quanto observadora e profunda favoreceu, Léon Alexander Zander vai mais longe, e na linha de Soloviev e Serge Boulgalov, vê e valoriza nele o «visionário esotérico do ante e do supra-individual» e procurará neste valioso ensaio transcrever alguns desses aspectos na sua obra, dos quais um deles, certamente bastante profundo e desafiante (e que nos vamos apenas aflorar em seguida) é o da santidade da Terra na medida em que teria sido gerada por Deus, a explicação religiosa, ou a de uma presença espiritual ou mesmo divina no Cosmos e que perpassaria a Terra, a explicação mais panpsíquica, ou ainda por ser a mãe Natureza, a manifestação do Princípio Feminino, da Mãe Divina, a Santa Sofia, de Nicholai Berdiaev, Nicholai Roerich, Pavel Florensky e Sergei Boulgakov.
Começando por abordar algumas das grandes ideias-forças expressas no romance Os Irmãos Karamazov, tal a do Grão Inquisidor «a essência íntima do homem não é somente de viver, mas de viver para qualquer coisa», vai concentrar-se na personagem Mitia, o que afirmara que «todos os verdadeiros russos são filósofos», e que a dado momento afirma :
«"Para que o homem possa sair da abjeção
Pela força da sua alma
Ele deve concluir uma aliança eterna
com a antiga mãe, a Terra."
Só que, como posso eu concluir uma aliança eterna com a Terra? Eu não a beijo, eu não abro o seu seio com um arado: será que me devo tornar um camponês ou um pastor?»
Ora para Zander «o problema da terra é indiscutivelmente um dos mais profundos e dos mais misteriosos da filosofia cósmica. As suas raízes perdem-se no infinito dos séculos e recuam até aos tempos da sábia infância do ser humano, quando "as essências e as forças do altos se faziam ouvir espontaneamente nelas próprias e se resolviam em imagens poéticas massivas" [citando esta frase da obra Luz não crepuscular, de Sergei Boulgakof].
Fazemos aqui alusão ao mito antigo de Anteu, filho de Gea e de Poseidon, que extraía, em combate, forças novas ao estar em contacto coma terra. (Sabe-se que Hércules, só o conseguiu vencer por levantá-lo e estrangulando-a nessa postura).
A antiga verdade da força vivificante de terra e da sua relação misteriosa com o ser humano, proclamada tão vigorosamente por Dostoievsky, não ficou sem eco na história do pensamento russo. Encontramos uma expressão poética em Vladimir Soloviev e Vladimir Ivanov (faremos menção dele em seguida).
Quanto ao seu desenvolvimento dialético, ele recebeu num sistema que podemos considerar como a testemunha mais original e mais profunda do espírito da filosofia e da teologia russa - a doutrina sofiológica de Sérgio Boulgakov. Só esta doutrina nos permite decifrar o sentido metafísico e religioso de algumas compreensões de Dostoievsky que de outro modo seriam apenas visões e sonhos-ocos. Foi necessário um grande trabalho de filosofia e erudição para as fazer desabrochar em toda a sua profundeza cósmica, antropológica e teológica, mas graças à qual, nós presentemente podemos distinguir no gérmen da sua vegetação os embriões de flores e de frutos que escapavam ao próprio Dos. Ao analisarem-se os seus textos, descobrimos uma tal riqueza de pensamento, uma tal profundeza de assunto que as páginas que ele consagra ao problema da terra devem ser estudados com tanta minúcia e respeito quanto os maiores testemunhos da sabedoria humana.
O nosso texto fundamental ser-nos-á dado pelas palavras da Coxa (nos Possessos), pois "Dostoïevsky exprime os seus pensamentos os mais íntimos, os maiores, os mais proféticos pela boca da filha querida da sua musa, da filha preferida, da nossa mãe, a terra", diz Serge Boulgakof. "Em toda a literatura universal, não há palavras, gravadas em letras de fogo, que não estejam em uníssono com esta linguagem dum outro mundo, todo banhado de música. Ei-las, [agora sim do romance Os Possessos]: -
-« "Segundo eu, Deus e a natureza são a mesma coisa!"». «Olha vejam esta!», gritaram todas. A Superiora do convento pôs-se a rir, disse algo em voz baixa a uma senhora visitante, depois chamou-me para ao pé dela e fez-me uma festa. Um monge pôs-se a fazer-me um sermão, tão gentilmente, tão humildemente, e indubitavelmente com tanta sabedoria, que eu pus-me a escutá-lo atentamente. - "Compreendes? perguntou-me."Não, respondi-lhe, não compreendi nada, e deixem-me tranquilo". Então nesse momento, uma mulher já idosa (e que estava a fazer penitência no convento por andar a profetizar) segredou-me ao sair da igreja: "A Mãe de Deus, o que é, para ti"? - "A Grande Mãe, respondi-lhe, a Esperança do género humano". - "Sim, retomou ela, a Mãe de Deus é a Grande Mãe, a grande Terra húmida, e esta verdade contém uma grande alegria para o género humano. E cada sofrimento terrestre, e cada lágrima terrestre é uma alegria para nós; e quando tiveres saciado a terra das tuas lágrimas até a um pé de profundidade, tudo será para ti apenas alegria, e nunca mais conhecerás o sofrimento, tal como foi predito." Esta fala gravou-se profundamente no meu coração. Desde então, sempre que me prosterno para fazer a mina oração, beijo a terra, beijo-a e choro. E eis porque te direi, Chatouchka: - Não há nada de mau nas lágrimas e, mesmo se não sofras mais, elas correrão na mesma como eu te disse. Por vezes vou até margem do lago : dum lado está o nosso convento, do outro a montanha que se chama o Pico. Subo a montanha, viro-me para Oriente, caio por terra, e choro, choro, não sei por quanto tempo, já que não me lembro de mais nada, não sei de mais nada. Levanto-me em seguida, para me refrescar, e o sol põe-se, tão grande, tão belo, tão glorioso. Chatouchka? É tão belo e tão triste!... Viro-me de novo para o Oriente, e a sombra da nossa montanha corre sobre o lago, rápida como uma flecha, longa e estreita, estendendo-se uma milha para além, até à ilha que se encontra no lago - a ilha da pedra - que ela corta exactamente em dois. E, quando ela a corta, o sol desaparece, e subitamente, tudo se extingue.-»
Esta realização mística da Terra, como Mãe e como princípio da maternidade e da dádiva para que outro viva, desabroche, cresça, é uma lei instintiva nos animais e na Natureza, e atinge no ser humano uma grande elevação, tal como diz Zander: «Desta maneira, a maternidade torna-se um elemento comum ao Universo inteiro e une nele todos os domínios do ser. Graças a ela, o ser humano deixa de ser um estrangeiro para a terra e para os animais, pois um mesmo princípio anima-os a todos. E por sua vez a terra e todas as belezas do universo revelam-se próximas do homem, sendo elas próprias uma incarnação impessoal e imperfeita do que constitui a sua essência. Compreende-se, desde logo, que o ser humano possa amar a terra, beijá-la com fervor, ser-lhe fiel: Ó g´ tudo, enquanto memória muda do mundo, pois ela dá a vida e a fecundidade. Quem não ama a terra e não tem o sentimento da sua maternidade é um servo, um escravo, refugo; ele se rebela miseravelmente contra a sua mãe e não é senão uma criatura do nada.» Sergei Boulgalov, Luz não crepuscular. Moscovo, 1917.
1 comentário:
Excelente trabalho, Pedro. Muito agradecida pela partilha
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