sábado, 26 de novembro de 2022

"Antero", lampeão de Platão, soneto por Carlos Eugénio Paço d' Arcos. E sinfonia "Antero de Quental", de Luís de Freitas Branco.

De Carlos Eugénio Correa Paço d'Arcos foi dada à luz em 1932, na Imprensa da Universidade de Coimbra (onde tinha sido provido do cargo de professor mas que a súbita tragédia da tuberculose o impediu de exercer), uma obra póstuma sua (tal como a valiosa Vita Brevis, tão bem prefaciada por Joaquim de Carvalho e que a Universidade digitalizou on-line) com um valioso prefácio do seu professor e confidente Vieira de Almeida, intitulada Visão Imperfeita de um Parnaso Cristão. Sonetos de..., num in-8º de 62 páginas, onde podemos apreciar 33 sonetos de grande qualidade cultural, afectiva, filosófica e religiosa, dedicados a uma série de grandes seres da tradição romana, europeia e portuguesa, vivos ou já mortos. Poderemos destacar Teixeira de Pascoaes, Vitorino Nemésio, Luís Viveiro Pereira, Amândio Paul, Joaquim de Carvalho, Vieira de Almeida, D. João da Câmara e, finalmente, Antero de Quental ao qual já dedicamos um artigo neste blogue. Mas como ele é tão valioso, resolvemos, transcrevê-lo de novo e comentá-lo, sem olhar ao que sentira e escrevera anteriormente. E vai acompanhado (ligação no fim), a tão subtil quão poderosa sinfonia Antero de Quental por Luís de Freitas Branco...
 Antero

«O Divino Platão disse a um filho errante:
«Hoje reina a Matéria! O Espírito morreu!
                «Mas quem pode esquecer que eu transportei ao Céu
    «A subsistente Ideia em seu fulgor brilhante?

«Na Grécia rica em luz meu poema distante
     «Um pensamento eterno ao jovem mundo deu.
«Vai tu de lampeão acesso em denso véu
«Falar no Pensamento ao mundo agonizante!»

Assim falou Platão... E Antero de Quental
Era ele o filho errante) ao mundo gasto trouxe
Um Pensamento expresso em estilo de cristal.

Ébrio de soluções, no Oceano embrenhou-se...
A dúvida afogou-o. Em toda a parte o mal.
Ergueu o imenso olhar. Faltou-lhe a fé. Matou-se.»
 
Céu em sangue e fogo, amor  e esperança, a 26-11-2022.
 Este belo, profundo e trágico soneto de homenagem e caracterização de Antero de Quental por Carlos Eugénio, relembra-nos como Platão foi um dos mestres de Antero, um dos autores que leu ou admirou, pesem terem sido filósofos mais modernos que mais estudou  e amou, da escola germânica, tais como Kant, Hegel, von Hartmann.
Mas sem dúvida fora Platão quem, no belo dizer de Carlos Eugénio Paço d'Arcos, ergueu ao Céu, ao mundo dos arquétipos e das Ideias os conceitos de bem, do belo, do verdadeiro e do justo, através da sua vasta obra de discípulo e divulgador de Sócrates mas também, ainda que algo ocultando-o, de Pitágoras.
No soneto vemos que Platão (o divino Platão, para Marsilio Ficino, que o comemorava de vários modos na sua Academia em Florença, tendo traduzido e comentado pioneiramente toda a sua obra para latim) terá sentido que tinha um bom discípulo ou continuador no séc. XIX e deu-lhe a missão de levar o facho da luz, e na imagem até tão próxima do arcano IX do Tarot, o Eremita, ou seja, de ir com o lampião aceso isto é, com a sua mente desperta, búdica, iluminar  o mundo desnorteado.
                                       
E nessa tarefa iluminativa Antero de Quental esculpira em estilo maravilhoso, de cristal, os seus pensamentos perante os problemas e mistérios da vida, captando de diferentes tradições e pensadores as suas ideias e conclusões, tentando entrar e internar-se no grande oceano da noite e dos mistérios, do inconsciente e do não-Ser que julgava ser o Absoluto e o Primordial, perdendo-se da Divindade...
Estava rodeado de mal, de dúvidas, de indiferença, e foi avançando, enfraquecido até pelos seu sistema nervoso sensível e já desgastado, e saindo de dúvidas para as visões luminosas do norte ou rumo da Humanidade e que tentou partilhar nos últimos sonetos, no epistolário e sobretudo nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX.
Ao contrario do que o poema transmite, Antero não estava de modo algum perdido, desnorteado, nem se afogara nas suas dúvidas.  O seu "imenso" e profundo olhar-ver-visionar-imaginar continuava a tentar devassar regiões e níveis da consciência e da realidade. Não lhe faltava fé no espírito, na ideia, na verdade, na comunhão com corpo místico da humanidade. Mas, regressando para estabilizar nos Açores natal, subitamente faltou-lhe o amor, a afectividade, ao retirarem-lhe as crianças adoptivas, certamente quem mais amaria no mundo então. 
E sentindo que já cumprira a sua missão de pensador, de filósofo, de de líder psíquico e político (ainda por cima com a recente desilusão da Liga Patriótica do Norte), retirou-se da cena, tal como o mestre de Platão, Sócrates, tomando a cicuta e partindo samuraicamente para o além. 
Não lhe faltava a fé em Deus, mas apenas mais amor em acção, certamente tanto para as crianças e pessoas amigas mas talvez ainda mais para a Divindade, para  a qual não estabelecera uma relação pessoal, intermediarizada ou não, por Jesus, Maria, Anjo, Santo, Mestres, pese o último soneto da sua obra prima, onde entrega o seu coração na mão de Deus.
Estava só. Regressar a Lisboa de mãos  e coração a abanar, quando as suas possibilidades de acção útil e luminosa já eram fracas ou nulas, não era certamente atraente ou o seu caminho certo, o seu dharma.  Resolveu então deixar a Terra, partir, na sua própria ilha e cidade natal para aí ficar seu corpo, já que a sua alma incarnou-a bem na sua obra e quem a lê contacta-o. Quanto ao seu espírito, ou eu individual perene, deverá será ainda hoje um peregrino errante? Talvez neste sentido, sim, Carlos Eugénio tenha acertado muito bem, quando intui na cosmovisão subjacente ao seu soneto  Sócrates clarividente dialogando com Antero de Quental e enviando-o com o lampião do Pensamento às trevas e véus da Terra. 
Ao longo da sua vida Antero mostrou-se um digno discípulo de Sócrates e Platão e nomeou-os várias vezes como sendo mestres da Humanidade, ao lado de Jesus, de Buda, de Pitágoras, de Epictecto, afirmando mesmo numa carta de 1874 estar a trabalhar a «evolução psico-metafísica efectuada desde Platão até à Renascença, e eu creio ter entrado intimamente nesse mistério». Mas talvez  dos mais valiosos passos que nesse discipulado nos deixou será o de uma carta a António de Azevedo Castelo Branco, de 1865, quando tinha apenas 23 anos, mas com grande perenidade ou actualidade face aos nossos dias em que narrativas oficiais e independentes tão diferentes se digladiam tão opressiva ou asperamente:  
 «O cenobismo, e a contemplação, o misticismo, se quiseres, são na sua inércia aparente, os mais rijos obstáculos que a liberdade de espírito pode opor à brutalidade invasora das condições fatais do mundo; são a maior vitória da consciência, o maior triunfo, com esta arma invisível e silenciosa, - a indiferença, o desdém. - Todas as vezes que a alma humana sufocada pelo abraço bestial da natureza, se tem visto em perigo de morrer, não lhe tem valido nem a paixão nem a luta ruidosa e dramática, mas só desprezo, a abstinência, a contemplação. Esta é que é a base das religiões como das filosofias; e Cristo e Buda vão nisto (que é o essencial) de acordo com Sócrates e Epicteto. Crê que a grandeza da alma está em resistirmos, conservando-se cada um no meio hostil em que o acaso [ou o karma] o deixou cair, em resistir numa imobilidade de consciência [difícil impassibilidade e desprendimento] a quem o mundo não pode ferir porque não depende dele para nada, mas só do ideal ou do espírito se quiseres.   Enfim, tudo isto sabes tu melhor do que eu, que és acabado moralista - e eu sei também que tudo isto é uma questão doutrinal, de valor quase só científico e nada prático para nós, porque não somos heróis nem mártires, mas só homens aspirando a viver segundo a justiça e a razão, o que não é pouco
                              

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