terça-feira, 29 de março de 2022

Um dito de Jesus bem actual: - Vim trazer fogo, espada e divisão à Terra e quero que ela arda. O Evangelho de S. Tomé nos nossos dias.

Os ensinamentos e ditos do mestre Jesus são de  valor perene e em tempos algo turvados ou desassossegantes, de lutas locais e globais, por vezes necessárias e até para a separação do trigo do joio, será bom lembrar-nos de um ou outro mais actual e meditá-lo. Como se sabe o Evangelho de S. Tomé é  bastante considerado por ser, com algumas cartas de S. Paulo,  dos documentos mais antigos do Cristianismo, provavelmente redigidos entre 50 e 60, e é dele que extraímos o dito, ou logion 16, dos cento e quatorze que perfazem tal compilação de frases de Jesus, escrita em copta num mosteiro no Egipto e que foi descoberto só no séc. XX,  dito que é até corroborado pela sua existência em dois dos evangelhos canónicos. Oiçamo-lo então:

                                                            
16. «Disse Jesus: Sem dúvida pensam os homens que eu vim para deitar a paz ao mundo e não sabem que vim lançar divisões na Terra, o fogo, a espada, a guerra. Cinco, com efeito, serão numa casa, e três serão contra dois, e dois contra três, e o pai contra o filho e o filho contra o pai, e eles estarão de pé como solitários.»
 
Esta frase, de uma actualidade cadente, vem lembrar-nos como a demanda da verdade e da justiça pode ter que esfriar ou diminuir certos laços de amizade ou mesmo de família e aumentar as divisões entre as pessoas, isolando-as até. Frase que surge também no evangelho de S. Mateus, ainda que de outro modo, em 10, 34: «Não pensais que eu vim anunciar a paz na Terra; não vim para trazer a paz, mas a espada. Vim portanto para causar dissensões e para fazer o homem contra o pai, a filha contra a mãe, a mulher contra o marido. Quem amar o seu pai e a sua mãe mais do que a mim não é digno de me seguir.»
As diferenças entre elas são pequenas, a versão de Tomé não inclui porém a relação discipular, pela qual a ligação ao mestre, ou ao que ele vive, incarna ou intermediariza, é mais forte que qualquer outro vínculo, provavelmente porque noutros ditos do evangelho de S. Tomé tal é de facto transmitido.
Em S. Lucas, XII, 50-53, encontramos as mesmas ideias e imagens, embora antecedidas duma bela afirmação: «Eu vim trazer o fogo à Terra e quero que ele arda», realçando depois que não é a paz mas a divisão que traz. E assim aconteceu ao longo dos séculos, e até aos nossos dias a espada, seja da polémica seja da guerra, não deixou de estar em acção. O nosso Erasmo, que esteve no cerne da união da sabedoria greco-latina e cristã, e das polémicas do séc. XVI e da Reforma, escreveu nesse sentido uma obra intitulada Enchiridion Militis Christiani, que significa tanto um manual como um punhal, do cavaleiro ou militar cristão, onde ensinava a ganhar a batalha pela iluminação ou salvação da alma, sendo um sucesso grande na época. Algo desse saber publiquei na tradução comentada da sua obra Modo de Orar a Deus.
Já quanto à natureza desse fogo, e se ele sendo o do Amor será também guerreiro, é uma questão profunda e cada ser,  caso a caso, deverá discernir a justificação de actos que aparentemente e na realidade são violentos, mas que podem ser necessários, de acordo até com o dito popular "grandes males grandes remédios", ou mesmo de Jesus, "os que fizerem mal às crianças", algo ainda hoje ocorrendo, "deviam ser lançados com uma pedra de moinho ao pescoço no mar", a que podemos acrescentar na vida de Jesus os episódios da expulsão dos vendilhões do templo e as críticas fortíssimas, maldições mesmo, contra os hipócritas sacerdotes e fariseus...
Na versão do Evangelho de Tomé, mais do que "o seguir o mestre", que será adoptado pelo catolicismo, e algo explorado até por vezes, surge antes o estar isolado, solitário, livre dos laços e manipulações familiares e sociais, e é bem compreensível no ensinamento de Jesus Cristo, se pensarmos que ele, como mestre, veio para erguer os seres verticalmente, isolá-los ou libertá-los das relações horizontais que os alienam e devolvê-los à sua consciência autónoma, ética, dinâmica e espiritual de filhos ou filhas emanados de Deus, e não só os discípulos de então, mas todos os que o acolherão, ou o seu amor libertador, num devir histórico no qual, como ele terá previsto, muitos contudo se oporão a muitos...
É um revolucionário, um despertador espiritual, quem fala e age. A História da Humanidade não será mais a mesma, tal como se passara com a vinda de Zaratustra, Krishna e Buda no Oriente, ou Maomé nos países árabes. A sua impulsão foi poderosa e ainda o é e, embora exteriormente os grandes feitos arrefecessem no Cristianismo, aqui e acolá há ainda construções e clarões na noite, tais os actos ou vidas de certos místicos, sacerdotes, santos, freiras ou fiéis, ou as manifestações mais humildes sacrificiais de tanta gente simples em vidas duras e abnegações grandes...
Mas a mensagem fermenta eternamente, porque dentro de nós se pronuncia a todo o momento, enquanto tónica ou essência do ser e do mundo espiritual e divino em cada um e na humanidade terrena, mesmo vibrando em consciências ateias ou agnósticas, apelando à justiça, à verdade e ao amor libertador.
Podemos perguntar, quem está de pé, verticalizado?
Serão os bons e dos maus, os do amor e os do ódio, ou, se quisermos, os que aspiram seja a Deus e à sua ordem e solidariedade, seja a uma humanidade natural e livre,  e os que se opõem à manifestação de tal e querem uma nova ordem artificial desumana? 
Deveremos limitar-nos ou envolver-nis muito em dualismos exteriores? Deveremos antes lutar contra as nossas tendências  ou de outros próximos, que ferem e desequilibram, e que nos rebaixam, sub-animalizam e intensificam o egoísmo, a crueldade, o ódio e logo o mal? Ou deveremos dar ao mundo e a nós tanto o amor como a justiça?
Talvez no fundo a mensagem do mestre Jesus tenha sido mais simples do que pensamos: descobre o teu ser espiritual e de amor e vive libertadoramente, só que a sociedade moderna consumista, mediática e tão manipulada tem-se tornado de tal forma gigantesca e absorvente, e é tal a carga que recebemos e a luta pela sobrevivência que enfrentamos, que poucos conseguem recolher-se dentro de si mesmos, ou seja, poucos conseguem esvaziar-se, desprender-se e sentirem-se a si próprios, veramente Espíritos individualizados e alinhados com a sabedoria e amor que constituem a nossa essência, potencial e meta, e assim fortificarem-se para resistir aos cinzentismos opressivos de governos, grupos e novas ordens artificiais...
Quanto ao reino do Céu na Terra (e que aliás era interior e "já estava no meio de vós", no dizer de Jesus), se o equacionamos a uma paz geral planetária isso vai demorar certamente muito a estabelecer-se, pois demasiados líderes e políticos, e os que os apoiam e manipulam, ainda estão no egoísmo, falta de visão e violência,  e até com grande inconsciência e irresponsabilidade nos seus intuitos de manipularem e oprimirem a Humanidade. Tal contudo não deve impedir a nossa postura e modo de vida verticalizante, alinhado ou orientado por princípios e fins éticos e espirituais e no qual, de quando em quando, nos erguemos mais intensamente unindo Céu e a Terra, o supra-consciente e o consciente, comungando com o fogo divino do Amor que Jesus lançou ou manifestou mais na Terra, comungando-o com outro ser ou outros seres, e partilhando-o em discernimento clarificador, tão necessário face ao ocultamente ou distorcimento das causalidades dos acontecimentos e conflitos que nos rodeiam ou pesam.
Saibamos pois não desanimar perante os ataques e oposições mais violentas e, com a espada da palavra justa e o fogo do amor, possamos dissipar ou dissolver a ignorância e a manipulação, a mentira e o ódio, e contribuir para  que a verdade e a justiça, a fraternidade e a paz se estabeleçam mais nas almas humanas e na Terra, com o Amor a arder iluminadora e divinamente.
Santa Sophia protegendo cidades e pessoas, pelo pintor russo Nicholai Roerich.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Swami Premananda Tirtha. A alma é imortal e há uma vida depois da morte conforme o que realizarmos e fizermos... Aum...

O mestre bengali  Swami Premananda Tirtha,  naturalmente,  na vida (1871-1959) meditou bastante a morte, numa linha transversal às várias tradições espirituais da humanidade, algumas das quais  geraram mesmo  valiosas Artes de Bem Morrer, ou Livros de Mortos ou de Transição para a Luz, tais como os gregos, os egípcios e tibetanos, Entre nós, no Ocidente cristianizado, com as vivências e os ensinamentos ascéticos dos eremitas  e depois de sucessivos religiosos e religiosas (e Maria Madalena, meditando a evanescência da vida e a certeza da morte, seria erguida a musa de tais atletas asceto-espirituais), houve  aproximações libertadoras à morte e foram-se gerando artes de bem morrer, entre as quais destacaremos a de Erasmo, e  seus Adágios desenvolvida no Homo bulla.   Com a  Contra-Reforma ortodoxa católica tais linhas foram  mantrizadas e sistematizadas nas meditações dos 4 Novíssimos: Morte, Julgamento,  Céu e Inferno, os quais se podem resumir no imaginarmos que morremos hoje, no que nos sucederia se fossemos julgados ou nos avaliássemos, e em que zonas do cosmos interior e subtil estaríamos, convidando-se assim a choros, arrependimentos e conversões, certamente com algumas explorações desnecessárias ou excessivas identificações ao passado e à personalidade, em vez de se demandar a gnose do espírito, exactamente tão praticada na Índia...
                                           

Homo bulla. O ser humano é um bolha de sabão, ou é como uma criança inocente e transitória rumo à morte mas também ao além...

Em Portugal, literariamente, o século XIX foi muito rico em aproximações poéticas à morte, vindas dos românticos e ultra-românticos e mesmo já com os modernos da geração coimbrã, e cristalizou em Soares dos Passos, António Nobre e por fim Antero de Quental, este certamente o que mais meditou e poetizou filosoficamente a morte, caminhando até para ela voluntariamente, e deixando-nos alguns sonetos bem valiosos, tal o Amor-Mors, ou o Com os Mortos,  quer termina com estes dois tercetos:  

«Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.»

Depois dele, e na sua esteira de glosador também  da frase grega Morrer é ser Iniciado, encontramos Fernando Pessoa, autor de numerosos fragmentos e poemas em que afirmou ou especulou a imortalidade espiritual e a vida das almas. Em 2013 reescrevi um artigo sobre tal que está neste blogue:                           https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2013/11/da-imortalidade-na-vida-e-obra-de.html
Ora a tradição indiana tão rica nesses conhecimentos e demandas
mostra-nos que na sua evolução ao longos dos séculos brotaram e estratificaram-se alguma crenças e  ideias que foram depois sendo repetidas e assimiladas, gerando-se costumes e rituais, mitos,  doutrinas e gnoses. Pois Swami Premananda Tirtha (1871-1959, e que temos trabalhado) desde que nasceu  nesse mundo de espiritualidade milenária vai partilhar as suas vivências e compreensões ao longo da sua vida de mestre servidor da libertação das pessoas, ajudando-as a compreender melhor a sua identidade espiritual e os seus possíveis caminhos no além.
Certamente que face ao grande mistério da morte e do outros níveis da realidade, só um
louco, um convencido, um aldrabão, ou então pelo contrário um iluminado dotado de plena visão nos três mundos, é que poderá estar certo do que se passa, e assim, calmamente, Swami Premananda foi transmitindo em satsangas ou conversas e sobretudo por cartas o que viveu, recebeu, leu, ouviu, deduziu, sentiu e viu.
                                            
Conta-nos também que com a morte da sua mãe, quando só tinha
nove anos, teve pouco depois um sonho forte de encontro com ela que lhe deu a certeza que ela era mesmo uma alma imortal, ainda que certamente não saberemos até quanto a vivência pessoal onírica depende do campo unificado energia consciência indiano e que, portanto, se tivessem nascido em Portugal não seria de outra forma  mais individualizada e localizada e não tanto não-dual ou omnipresente, a vivência que teve da alma da mãe nesse sonho, já relatado por mim num dos artigos anteriores.
Sabemos que desde cedo usou os cemitérios e zonas crematórias para
meditar na impermanência da vida e vencer o medo da morte e o apego à vida, tal como faziam muitos yogis e monges indianos. E sobre tal disse: «Os que cometeram poucos actos errados e compreendem Deus como ser compassivo e cheio de amor, abraçam a morte com alegria. Os espirituais de todos os povos sempre viram a morte como um meio de se atingir Deus e aceitaram-na com alegria. O local da prática espiritual dos yogis tântricos é o cemitério. Com a ajuda da imagem do cadáver, eles transformam o seu próprio corpo como um cadáver, para propiciar Shiva - a Deidade Primordial. O seu preceito ou regra é: " Morre antes da morte para alcançares o estado de sem morte". A essência de tudo o que disse antes é que o conjunto causal do medo da morte é ignorância, descrença em Deus e excessivo apego ao mundo ou à mundanidade.»
Também em certas cartas e em especial na sua última mensagem
escrita antes de partir, lida e comentada já em vídeo, inserido no primeiro artigo que lhe consagramos, ele é adamante na consciência da sua imortalidade e mencionaremos apenas agora o primeiro dos três parágrafos, tão belo: Hoje quero dizer apenas uma coisa a todos os meus amigos e mães. A condição deste corpo tem já desde há algum tempo a ir a baixo e é possível brevemente ouvirem dizer que já não existe. Mas eu nunca morrerei. Eu nunca falei falso. Eu afirmo enfaticamente que estarei vivo mesmo depois que este corpo se for. Quem acreditar em mim, encontrar-me-á próximo de si e numa forma mais bela e doce. Mas eu estarei morto para os que pensarem que eu morri»...
Acolhamos então agora extractos de duas das suas cartas: «Na morte
de uma pessoa normal,  só o corpo físico é deitado fora mas na morte de pessoas já realizadas ou libertas, os três corpos físico, subtil e causal são abandonados e atinge-se a absoluta identidade com o Supremo Ser. 

[Talvez esta absoluta identidade não seja tão absoluta e antes mitigada, senão a pessoa desaparecia, mas tal é a crença de algumas das filosofias e religiões indianas, pelo o que para nós Ocidentais parece um pouco de hubris (auto-avaliação exagerada) - a identidade absoluta com a Divindade, e antes admitamos ou acreditemos que haja então uma ligação, comunhão ou unidade maior com Ela - já para Swami Premananda, é natural e faz-lhe sentido tal identidade absoluta realizável e que ele aliás sentia bastante em termos de coincidência consciencial com a omnipresença do Espírito.]

O Anjo guiando a alma rumo aos planos mais luminosos e divinos...

Desejos propensões, apegos, associações mentais, violência e ódio são as características da mente e residem no corpo subtil. Assim quando o corpo físico é abandonado, as características mentais não o são nem sofrem qualquer mudança. Quanto ao estado em que a alma desencorporada estará e o que fará, tudo depende do que foi ela atingindo em terra. Aqui o atingir é usado no sentido de que moldou em vida, elevando-se a si mesma, tentando chegar à perfeição e estar animado por boa vontade ou benevolência. Assim uma pessoa sóbria, benevolente, sábia e devota desfrutará de beatitude depois da morte e uma pessoa que não se conseguia conter, cruel e maliciosa sofrerá dores. Não pode haver dúvidas quanto a isto. O Vishnu Purana diz que depois da morte as pessoas justas vão para o céu e as que não foram justas para o inferno.  A definição de céu e inferno foi assim dada: o estado alegre ou beatífico da alma é o céu, e o estado contrário, quando uma pessoa se sente infeliz, é chamado o mal ou inferno. Na Bhagavad Gita, XVI-21, kama, luxúria, krodha, iritação e lobha, ganância, foram descritos como os três portões do Inferno. São os impedimentos à manifestação da alma e foi recomendado que devem ser descartados, ou seja o desejo sexual violento,  a irritação, e a ambição gananciosa  devem ser mantidos sobre controle rigoroso.»
Finalmente, numa carta a uma mãe a quem o filho pequeno morrera,
depois lhe explicar como somos seres imortais e que deixamos o corpo chegada a hora para passar para planos subtis e que apenas nos agarramos demasiado ao que é transitório e de lhe contar, como exemplo, uma história de Krishna  com o seu irmão Balaram, pede-lhe para tentar compreender que «quem parte  está presente subtilmente algures e em mais paz, embora para entrar em contacto com ele o poder da visão subtil tem de ser desenvolvido, e sem esforço, não se consegue obter o fruto do esforço. Ao chorarmos e lamentar-nos, tornamos as nossas nervosas mentes ainda mais inquietas e causamos dor à alma que partiu».
                                            
Explicando-lhe depois como antigamente, desde a infância se
ensinava às crianças «para imaginarem ou conceberem o divino sem forma que está representado numa imagem, ou para pensarem que a alma está dentro do corpo», e como outros ensinamentos eram dados quanto ao casamento, nomeadamente como Krishna e Radha, estão em nós ou o somos, de modo a que tal auto-consciência acontecesse nas almas, e frutificasse na firme consciência de que o corpo físico era apenas um revestimento exterior, e a alma o mais essencial, vai afirmar a essa mãe, reiterando a compaixão pela a dor imensa que ela sente, que ele pede «na sua oração à Divindade misericordiosa que lhe abra a visão subtil interior e que lhe acalme o coração desfeito» e lhe dê paz. E logo a seguir, e terminaremos este texto com tal parágrafo da carta de Premamanda Tirtha, longo mas bem actual, já que fala das mortes inesperadas, diz-lhe e diz-nos:«Talvez a mãe me diga que não tem nada contra a morte, mas que não deveria haver mortes prematuras. Eu acredito firmemente que se vivêssemos de acordo com as leis Divinas, se não tivéssemos tornado as nossas vidas tão não-naturais e artificiais, se o nosso país e sociedade não tivessem sido toados pela ausência de sobriedade e de semelhança divina, não haveria tantas mortes prematuras. (...) Nos tempos antigos não aconteciam tantas mortes extemporâneas na Índia. Se os Ocidentais praticassem mais controle da energia sexual e  rectidão, em simultâneo com as regras de saúde, então não ocorreriam tantas mortes prematuras como agora. O tipo de vida que muitos indianos levam hoje e o facto de haver ainda muitos com longas vidas, deve ser provavelmente o fruto de modos de vida luminosos ou feitos gloriosos dos nossos antepassados, pois de outro modo, face a tanta vida desequilibrada ou depravada, já deveríamos estar destruídos...»
                                        
Agradecendo e saudando luminosamente no corpo místico da
humanidade ao Swami Premananda Tirtha, concluamos com o último parágrafo das suas "Últimas Palavras" : As pessoas que me limitam a um corpo, não sentirão a minha existência quando este corpo  tiver acabado. Mas eu nunca estarei longe daqueles que, acreditando que eu sou uma alma sem corpo, focarão a sua mente nas minhas ideias intimas e moldarão as suas vidas de acordo com elas Eles sentirão sempre a minha proximidade e depois da dissolução do corpo, sentir-me-ão ainda mais próximo». Aum, Amen. Saibamos assim comungar mais no ser espiritual que somos,  Sat Chit Ananda...

Ornamento de Bô Yin Râ, o Espírito....

quinta-feira, 24 de março de 2022

Swami Premamanda Tirtha. Sri Krishna, Avatar, o amor de Deus. Uma carta de Hardwar, 13.7.1903, levemente comentada por Pedro Teixeira da Mota

As aproximações de Swami Premananda Tirtha (1871-1959) à religião e espiritualidade indiana, e em especial a Krishna, Radha, Rama, etc., são bastantes e valiosas, e merecem ser traduzidas e meditadas. Vamos traduzir uma carta escrita em Hardwar, em 1903, com certa originalidade, sobre o conceito hindu de avatara, algo não dos tempos dos Vedas mas já das Purana, e que significa descida ou manifestação divina, e que swami Premananda amplia e estende aos princípios e ideias que passam ou descem dos mundos subtis e se concretizam nos actos e vidas:

Dois avatares de Vishnu: Krishna e Radha. Amor Divino neles, em nós e na polaridade...

«No Universo encontramos duas linhas de força ou estados: Abstracto ou espiritual, e concreto ou físico. Na criação ou emanação Divina, no código da Natureza, há uma perfeita congruência ou harmonia entre estas duas correntes. O que originalmente estava no pensamento, manifesta-se correspondentemente na forma e na acção. Os princípios abstractos mencionados nos Vedas concretizaram-se nas vidas concordantes dos Rishis. Aquele ser, através do qual um conceito particular ou princípio desenvolvia-se plenamente, era considerado como um avatar, a personificação de tal princípio. "É melhor sacrificar a sua vida por causa da verdade, de que difamá-la ou ignorá-la" - este princípio espiritual concretizou-se na vida de Sócrates. [Noutras cartas swami Premananda também designa Sócrates como um avatar, uma manifestação divina. Também eu nos meus estudos da Grécia, do Pitagorismo, do Platonismo e do Humanismo cheguei a uma conclusão próxima: Sócrates foi um Cristo, um ungido pelo Alto, e viveu e morreu pelo amor e a verdade lúcida e abnegadamente. Neste sentido iam até os humanistas da Academia Platónica de Florença, que oravam mesmo a Sócrates, sob estas palavras que Marsilio Ficino e Erasmo nos transmitiram: Sancte Socrate, ora pro nobis!]
Os princípios espirituais mencionados na literatura Vaishnava foram personificados plenamente na vida de Krishna. A palavra Krishna significa aqui o estado mais elevado da Divindade concebido e não uma pessoa particular.
Krishna [Aquele que atrai] significa o Espírito supremo (Paramatman), e Radha [a Amada-Adorada] o espírito individual (Jivataman); as Gopi [ou pastoras], as correntes de pensamento. Manjari [a devota principal ou o estado mais devoto] as vibrações da respiração [e nisto valoriza bem a respiração psico-espiritual consciente]. Asuras [os demónios], as más tendências, Devatas [os anjos ou deidades], as tendências correctas, Vrindavan [a cidade onde nasceu Krishna], o estado de identidade máxima com a Divindade. [Anote-se que noutras cartas deu mais interpretações valiosas sobre Krishna, nomeadamente significando, pela raiz krish, atrair, aquele supremo Ser que está constantemente atraindo a Si e aos seus planos espirituais maravilhosos todos os seres vivos, nomeadamente pelos cinco sentidos e, claro, a meditação e a devoção amoro
sa.]
                                           
Os
rishis [sábios videntes] captaram na realidade estes segredos antes do advento de Krishna e ficaram felicíssimos de verem a manifestação concreta das verdades abstractas, que já tinham antes realizado, na vida de Krishna.

[Eis uma afirmação bastante curiosa de Swami Premananda Tirtha, obtida ainda jovem de 30 anos. Pode parecer algo optimista, mas será mais compreensível se virmos que os rishis intuíram as formas subtis possíveis da sabedoria e amor Divino e depois as observaram em alguns seres, e no caso em especial em Krishna, quando viveu como ser humano na Terra.]

O Deus dos hindus é omnipresente. Um verdadeiro hindu está como que obrigado a aceitar Cristo, Maomé, Buda, e todas as almas libertas ou emancipadas de todos os países, como incarnações de Deus. Um devoto de Deus, sem se ter em conta as castas ou as religiões, é merecedor da veneração dos hindus. O mais alto objectivo da vida humana é dar o máximo de possibilidade a Deus de se manifestar através de si. O próprio Deus é dinâmico em manifestar-se a Si próprio; o dever do ser humano é remover, através de esforços-sacrifícios e propiciações os obstáculos à sua Manifestação. Se Deus não quisesse manifestar-se, quem ousaria manifestá-lo? Os rishis, os sábios videntes antigos, disseram-nos que Deus está um milhão de vezes mais desejoso que nos aproximemos dele, de que o ser humano deseja aproximar-se dele.
[Mais uma afirmação bastante original ou pelo menos pouco conhecida, e que swami Premamananda fundamenta nos rishis, provavelmente já da época das Puranas, mas que nos abre a uma visão-dimensão mais intensa de como deveremos querer manifestar mais Deus e amá-lo
...]
                                         
Resumindo, por de
trás de cada fenómeno físico há uma subtil emoção mental que se configura no momento oportuno. A acção começa primeiro no plano mental e subsequentemente atinge a forma física exterior. O princípio subtil espiritual é tão verdadeiro como a sua manifestação física exterior. A composição da epopeia do Ramayana pelo sábio Valmiki, antes mesmo do advento terrestre de Rama Chandra, revela esta verdade. Aos rishis videntes da essência, o conceito espiritual era revelado primeiro e, subsequentemente, vendo o aspecto físico deste princípio na vida dos avatares, eles exprimiram-no com força na linguagem. Não é difícil a um sábio discernir a vida futura de uma criança pela observação das suas acções em criança.
É extremamente difícil captar uma ideia apenas pela leitura de livros, a não ser que isso se tenha desenvolvido previamente, de algum modo, dentro de si mesmo. Por esta razão os que procuram a verdade tentam primeiro desenvolver os princípios espirituais nas suas vidas.
A manifestação exterior da Deus é o universo e o espírito ou a alma íntima do universo é Deus. Assim, o que existe no estado causal ou subtil é espiritual, e o seu estado concretizado na forma da criação ou da acção é físico. A mente estando entre Deus e o universo, entre o espírito e a matéria, estabelece uma relação entre os dois. A actuação interior da mente é espiritual e a exterior é material ou física.»  Hardwar, nas margens do Ganges, 13 de Julho de 1903.

Hardwar, uma cidade santa para os peregrinos do rio Ganges, quando ele entra nas planícies, logo após Rishikesh, locais por onde também peregrinei na sadhana ou via yogi.

Neste último parágrafo Swamiji realça a necessidade de cuidarmos e controlarmos bem a mente, já que é ela que estabelece e concretiza as pontes entre o mundo espiritual e o físico. Neste sentido Patanjali, no seus clássicos Yoga Sutras, definiu mesmo Yoga como  citta vritti nirodha,  controlar, dominar, ou mesmo extinguir as vagas de pensamento, pois então a natureza essencial ou íntima nossa pode despontar luminosamente. 

Perseveremos nas nossas orações e meditações para conseguirmos manifestar ou avatarizar os princípios e valores espirituais e divinos!

quarta-feira, 23 de março de 2022

Swami Premananda Tirtha (1871-1959). Mais ensinamentos espirituais valiosos...

 Swami Premananda Tirtha, que temos divulgado pioneiramente em português, vai ainda ser evocado neste 3º, e para já, último texto, pois a sua vida e ser tal como os seus ensinamentos são bem valiosos.  Quanto à brevíssima biografia que partilhei, haurida no livro Swami Premananda Tirtha, Life, Sketch & Letters, publicada pela Sri Krishna Sangha, Calcutta, em 1973,  talvez deva acrescentar a sua corajosa independência perante algumas altas personalidades inglesas que o visitaram ou que queriam mesmo que ele diminuísse o brilho de Gandhi, recusando-se a tal ou mesmo não os recebendo. E ainda a sua capacidade e amor de peregrinar muito a pé,  sem ter um cêntimo no bolso, como é habitual nos yogis, sadhus e sannyasins, ou seja os ascetas e monges indianos, e sendo sempre apoiado pela ordem do Universo, os seus seres e, sobretudo a Divindade omnipresente. Não teve um ashram ou centro seu, e não estava muito tempo nos locais para onde os seus devotos o convidavam.

Um yogi do tempo de Premananda Tirtha e amigo de Paramahansa Yogananda.

Oiçamo-lo num primeiro ensinamento psico-espiritual valioso: «Cada um tem tanto Deus como o Diabo dentro de si. Quem quer que ele chame, esse mesmo virá ter com ele. Recebereis dos outros o tratamento que derdes a eles. "Faz aos outros o que gostarias que te fizessem". Quando se lhes dá confiança, mesmo ladrões e malfeitores podem tornar-se seres correctos. Vi isto acontecer muitas vezes. Se temos as tonalidades do mal na nossa mente, veremos o mal em toda a parte. Orai humildemente a Deus para vos dar o poder de compreenderem os mistérios da mente. Gradualmente pela graça de Deus, o vosso poder de ver, pensar, compreender e prestar serviço crescerão. Crede que ele é Omnipresente; chamai-o pelo nome de Senhor do Universo: tentai servi-lo como o Ser omnipresente e gradualmente a vossa visão interior abrir-se-á. Uma vez aberta a visão interior as dúvidas e percepções incorrectas desvanecer-se-ão. Uma cobra permanece uma cobra mesmo quando a imaginamos que é uma serpente, pois o defeito está na nossa visão mental. Na realidade última há Um só e nem um segundo neste mundo. É um grande erro tomarmos como a Realidade verdadeira este mundo mutável, e fugirmos dele com medo pensando que a corda é uma cobra. É de facto pela majestade da Grande ilusão (mahamayashakti) que o impossível se torna possível. A shakti ou energia divina em nós está dormente sob a forma de uma corrente nervosa, sushuma. Tentai despertá-la através das práticas espirituais. Se considerarmos alguém como uma pessoa má, a nossa mente torna-se má, independentemente de tal pessoa sê-lo ou não. Quem sabe como amar, receberá amor. Os sábios antigos, rishis, costumavam ficar amigos das aves e dos animais. Nos seus eremitérios tigres e gazelas, cobras e mangustos brincam juntos. Isto não é invenção. Eu tive uma experiência de tal na minha vida», e que foi quando ele era eremita na zona montanhosa de Simla quando se familiarizou com um tigre a que dera o nome de Mastram e quando o chamava vinha brincar com ele, e um dia que o tigre estava sobre ele, um caçador britânico que passou pensando que o tigre o queria matar, apontou a espingarda, mas o Swamiji viu e teve a inspiração de pôr a mão dentro da boca do tigre, fazendo com o caçador percebesse o que se passava, e logo tirasse uma fotografia que na época foi muito divulgada.»

Acerca da graça divina: «Não se consegue receber ou realizar a graça Divina, enquanto uma pessoa vive fácil e confortavelmente. Ninguém precisa de fazer o que quer que seja por alguém que satisfaz, ou pode satisfazer, ou pelo menos acredita que pode por si mesmo realizar tudo o que quer.»

Da omnipresença divina: «Eu sinto a presença de todos os meus amigos e de todo o universo dentro de mim. Como é que eu posso descrever esta felicidade (ananda)? Pode alguém, a quem Deu ama tanto e que toma conta dos seus requerimentos básicos, ter alguma vez uma dificuldade? Aquele cujo pensamento é puro e calmo, realiza a Divindade omnipresente e está sempre em felicidade». 

«Se a mente está impura e irrequieta, é impossível reconhecer-se  Deus mesmo que ele fosse visto, ou segurá-Lo se fosse encontrado. Um crente em Deus tenta terminar em dez anos o sofrimento inútil que um não crente levará 100 anos para terminar. O crente tenta assim obter o direito de entrar no Céu o mais cedo possível. Ele não aguenta o atraso e é por esta razão que devotos e pessoas bondosas aceitam de boa vontade a dor e o sofrimento. No meio de toda a calamidade e dor, mantém a atenção fixa Nele e continua a avançar para Ele. Faz os teus deveres terrestres com o corpo, mas a tua mente ou alma deve estar incessantemente virada ou absorta para a contemplação da Sua identidade e dos Seus atributos. A tua mente não deve aceitar ou deixar entrar ideias que não estejam relacionadas ou afins com o Divino. A fé é a raiz da religião, é como o sexto sentido.»

«Somos os filhos e filhas do Ser Primordial Imortal. Coragem, brilho e majestade da energia primordial divina (mahashakti) estão latentes em nós. Os filhos da Bravura em si mesmo devem ser bravos. Presentemente uma ignorância  estúpida espalhou-se sobre o país inteiro. Quase toda a Índia terá de ser desperta e restaurada à sua pristina glória. Muitas das nossas práticas religiosas e adorativas tornaram-se rituais sem vida. Verdade, amor, pureza, fé, coragem e o serviço da humanidade constituem a essência da religião. Rituais e cerimónias são apenas úteis secundariamente. A nossa atenção deve centrar-se na essência da religião e todos devem ter plena liberdade quanto [à escolha e prática] dos aspectos secundários. Não se deve dizer nada contra um santo, ou mesmo um devoto. E o nosso comportamento ou modo de vida deve ser  tal modo que atrairá os outros a terem fé em Deus e a adorarem-No».

Te Deum Laudamus. De Bô Yin Râ.

terça-feira, 22 de março de 2022

Swami Premananda Tirtha, 2ª parte. Os seus ensinamentos provindos de sonhos. Com vídeo de leitura comentada por Pedro Teixeira da Mota

Voltemos a Swami Premananda Tirtha (1875-1959), em jovem Harideva, para partilhar a leitura comentada, iniciada no 1º vídeo, e que pode ouvir no fim deste texto, e para acrescentarmos mais alguns ensinamentos valiosos deste mestre espiritual indiano quanto ao acto de sonhar e aos misteriosos sonhos...
Como já dissemos no primeiro artigo, Swamiji teve alguns sonhos fortes, e interveio nos de outros, e que lhe ensinaram muito, tendo já mencionado um deles, no qual uma sua discípula recebeu o seu mantra ou fórmula de oração. Ora como as pessoas consciencializam-se pouco de que os sonhos podem ser ecos ou refrações de experiências nos corpo subtis, vou transcrever outros sonhos especiais e elevados e suas lições, na Índia mais naturais pois crença e a consciência dos corpos subtis está ainda hoje generalizada:
Tendo a sua mãe desencarnado, «um mês depois, Harideva sonhou que a sua mãe regressara e estava sentado perto da sua cabeça. Ele abraçou-a  com ambas as mãos
à volta do pescoço e disse-lhe:    "- Mãe, onde esteve este tempo todo? Procurava em toda a parte. E a mãe replicou-me: - Oh, eu nunca estive afastada de ti um segundo que fosse. - Como é possível, mãe, se não a conseguia ver? - Não me viste. Mas olha então agora de novo. Onde é que eu não estou presente? E passou-me a mão sobre os meus olhos três vezes. Então para onde quer que eu olhasse só via a mãe: na tia, no meu irmão, nas árvores, nos muros, etc." O Swami Premananda costumava contar este sonho com grande emoção e como sendo o acidente mais significativo da sua vida. E dizia que desde então tornara-se fácil e natural olhar para todas as mulheres como mães.»
Nessa época teve um outro sonho muito forte que ensinou-o a respeitar as diferentes religiões e tradições espirituais, pois vendo-se a avançar por uma floresta, ouviu ao longe tocarem música devocional e aproximando-se dum conjunto de casas dentro de um muro, o guardião deixou-o entrar. Já dentro do pátio viu outro conjunto e avançou e o guarda também o deixou entrar. Ouvindo uma música ainda mais maravilhosa vinda de um terceiro espaço murado, de novo avançou, e aí viu então «Chaitanya, Shankara, Buda, Maomé, Cristo e vários outros santos sentados juntos a cantarem músicas e poemas devotos. Ao chegar a este ponto a sua memória primordial reviveu. Reconheceram-no e tomaram-no como um  amigo de longa data. Ele inclinou-se diante de Chaitanya, que o abraçou, enquanto ele se perdia em pensamentos. Então Chaitanya perguntou-lhe: "- Em que estás a pensar?" E ele respondeu: "Há tanta luta sectária lá fora, enquanto que aqui tudo parece ser um". Então Chaitanya levou-o mais para dentro e mostrou-lhes como todos eles provinham de uma Luz maravilhosa. E explicou-lhe: - "Na realidade somos todos Um. De acordo com o tempo e a necessidade das pessoas, entramos no mundo sob diferentes aspectos, com ideias várias, para curar as variadas doenças da sociedade, tal como o mesmo médico tratará diferentes doentes e diferentes doenças, em épocas diferentes, com diferentes medicamentos". Swamiji costumava dizer que desde esse dia as dúvidas acerca dos diferentes grupos religiosos e incarnações de Deus tinham sido completamente removidas da sua mente.

A universalidade da religiões, ou a unidade espiritual delas, realizada por Ramakrishna Paramahansa e por Premamanda Tirtha....
Pouco depois, quando ainda só tinha onze anos, viu pela 1ª vez o seu guru ou mestre em sonhos, e recebeu dele um ensinamento e iniciação bem poderosos como narrou assim: sonhava que estava numa floresta sob uma árvore quando três ou quatro sannyasins (peregrinos renunciantes) vieram ter com ele e disseram-lhe: "Vem connosco até aos Himalaias" E pensei, como, tão longe? E eles disseram: "Iremos pelo caminho celestial no firmamento". E durante o caminho foram falando sobre as realidades espirituais. Depois de uma longa distância, descemos num alto monte e os monges disseram-lhe, fica aqui que  vamos ver o nosso mestre e já voltamos. Eu pedi-lhes contudo que me levassem mas não concordaram. Todavia, daí a pouco um deles voltou a correr e disse-me: "Estás com muita sorte, pois o mestre disse para vires." Fiquei muito feliz e parti com ele e fui  logo muito amistosamente recebido pelo mestre que me mandou tomar um banho num ribeiro, e depois disse: "Deus é uma personificação do Amor. O Amor é o nosso principal equipamento, e o mais importante dever do ser humano é servir a humanidade, a nossa vida devendo ser gasta ao serviço das Suas criaturas. Mas quando estiveres a servir, não penses que estás a fazer um favor a alguém. Pensa sempre que a oportunidade de servir é um meio de purificares a tua mente e de realizares a Divindade omnipresente. E portanto está grato a quem serves. O Deus Vishnu rege ele próprio este mundo, depois de assumir a forma dos seres vivos". Em seguida o mestre deu-me um mantra de religação  à Divindade omnipresente nas formas do Universo, e disse-me para repeti-lo diariamente e explicou como o deveria praticar. Abracei então o Gurudeva e fiquei num estado de grandessíssima felicidade. Quando acordei vi que estava abraçado à almofada e esta estava molhada das lágrimas».

Os Himalaias vistos espiritualmente pelo pintor e mestre alemão Bô Yin Râ....

Swami Premananda Tirtha só o tornaria a ver, passados dezassete anos, ao vivo nos Himalaias, passando alguns dias de grande felicidade com ele, e à despedida, à questão quando é que se tornariam a ver, o mestre respondeu-lhe:«Isso serei eu a decidir um dia, mas estarei sempre contigo, onde quer que, ou quando, precisares de auxílio. Eu ajudar-te-ei nos sonhos e no teu trabalho», e assim desde então «sempre que tinha um problema ou dificuldade, este mestre ou santo aparecia-lhe em sonhos e sugeria-lhe a orientação necessária. Uma lâmpada é acessa por outra lâmpada. [Princípio da iniciação directa, muito visível por exemplo na vida de Dara Shikoh, como já relatei]  Esta tradição [iniciática] vem-se mantendo ao longo de tempos imemoriais. Também Swamiji Premananda Tirtha frequentemente dava as instruções necessárias aos seus devotos em sonhos e conhecem-se muitos casos disse. Ele costumava dizer:"Quanto mais pura e tranquila for a tua mente, mais fácil será para ti veres-me em sonhos. Tenta ser um bom receptor. Se alguém não está preparado para receber, a mensagem volta para trás"»

Fiquemos ainda com um ensinamento valioso, já não só do mundo dos sonhos, escrito na montanhosa de cidade Darjeeling onde também peregrinei, dado em 11.4.1925:
«Sabeis quem é o meu Deus? É aquele sem o qual não estamos
verdadeiramente vivos. É a fonte primordial de toda a Existência, Conhecimento e Felicidade (Sat Chit Ananda). O mundo é a manifestação do seu jogo (lila). O ser humano é a sua imagem viva. Se o conhecemos, então não há nada mais para ser conhecido; se o encontramos, não há nada mais para ser encontrado. É um pouco da sua palete de beleza que faz  os céus, as árvores, as aves, os mares parecerem tão belos. É pelo Seu Amor (Prema) que pai e mãe marido e mulher, filho e filha nos são tão queridos. Foi um pouco do Seu conhecimento que tornou Buda, Shankara, Newton, Sócrates e outros sábios. Ele é o nosso Eu mais íntimo...
Sabeis o que é que eu considero ser a melhora prática espiritual (sadhana), o
mais fácil e mais natural método de atingir a perfeição ou realizar Deus? É esforçar-nos por mantermos as portas internas do coração abertas. Ele então esforçar-se-á por iluminá-lo pela refulgência do seu Amor. Quando os esforços de ambos os lados se completam, descobre-se que as tristezas e sofrimentos desaparecem. Tudo é mais doce e alegre.»
Saibamos mergulhar mais no íntimo, viver justa e harmoniosamen
te e receber e partilhar as energias luminosas, amorosas e pacíficas que tão necessárias são à Humanidade... Aum Shanti Aum...

                      

segunda-feira, 21 de março de 2022

Swami Premananda Tirtha, ensinamentos de um mestre indiano bem valioso. 1ª parte. Com vídeo de leitura comentada por Pedro Teixeira da Mota.

Um dos mestres bem valiosos do século XX da Índia foi (e é...)  Swami Premananda Tirtha, que viveu na zona da Bengala, Batajore, Calcutta e Benares ou Varanasi, de 1871 a 1959. Pouco conhecido no Ocidente, pois era avesso a publicidade e procurou mais servir do que servir-se, ou destacar-se, apenas deixou serem publicadas as suas cartas a discípulos, que constituem mais um rico epistolário da Humanidade, tal como os de Erasmo de Roterdão e de Antero de Quental, valiosa prática que hoje não é tão cultivada dado o predomínio avassalador dos mails, que  perdem a naturalidade e intimidade que a escrita pela mão deposita no papel...
Tendo nascido de pais religiosos e educado tradicionalmente na grande Índia, cheia de costumes, ensinamentos, histórias e santos, a sua excelente memória permitiu-lhe não só conservar e narrar inúmeros episódios pessoais, como partilhar muito do essencial da sabedoria indiana que ele vivia e estudava, aprofundava e partilhava no seu ashram ou centro de ensino e serviço, meditação e adoração...
Nasceu a 26 de Novembro de 1871, em Batajore, Bengala Oriental, hoje Bangladesh, filho de um brâmane, que ensinava em casa, e de uma mãe muito piedosa, e recebeu o nome Harideva. Uma vida de criança e jovem cheia de aprendizagens luminosas e uma clara vocação para ser um asceta, um sannyasin, e que os seus pais desejavam. E assim mal  cumpriu o último exame do seu bacharelato, em Calcutta, em 1899, parte com três livros na sacola, a Bhagavad Gita, Ashtavakra Gita e Imitação de Cristo, e torna-se por si mesmo um renunciante, despindo as suas roupas junto ao rio Ganges, banhando-se e assumindo as vestes ocre-laranjas e, com o nome de Krishnananda, dirigiu-se
como qualquer sadhu, ou peregrino renunciante, para Vrindaban, centro do culto a Krishna  e depois para os míticos e poderosos Himalaias, onde encontrou  finalmente o seu mestre que já o vira em jovem, em sonho, há dezassete anos.
É dessa época, 1901, a sua primeira carta conhecida, onde diz: «A alma mais íntima do Universo, isto é Sat Chit Ananda (Ser, Consciência, Felicidade) da Divindade universal, tendo penetrado todos os níveis da Natureza, está tentando manifestar-se a si mesma. Quando mais limpa for a mente, tanto maior e mais limpa será a sua reflexão. O objectivo da vida humana é descobrir e manifestar Deus dentro de si». 
Poucos anos depois em 1904 foi formalmente iniciado  como sannyasin em Varanasi ou Kashi, no mosteiro de Kamrup, pelo swami Ramananda Tirtha e residiu nesse math ou tirtha, ou mosteiro, doze anos servindo com muito amor, e para grande gosto do mestre, e tendo sido mesmo o editor da revista Bharat Dharma Mahamandal.  Ao longo da sua vida teve inúmeros casos, sincronias e exemplos fabulosos de que tudo vem de Deus, ou como disse: «Há um só corpo, um só princípio de vida, um corpo e um espírito em todo o universo. Se a mente está pura e calma, é fácil discernir os pensamentos dos outros».
Só o conhecendo pela leitura de um livro, Swami Premananda Tirtha, Life, Sketch & Letters, Sri Krishna Sangha, Calcutta, 1973, que adquiri quando estive em Calcutta seis meses em 1993, e por subtil percepção espiritual posterior, irei destacar certos aspectos mais originais ou fortes: 
Uma grande confiança e entrega a Deus, que em todas as circunstâncias não o abandonara, pois somos todos filhos de Deus, que está dentro de nós, e é verdadeiramente a nossa força.
Valorização grande da Mãe, do princípio feminino e maternal, muito sagrado, e embora tenha sido um celibatário, naturalmente já que era um yogi e sannyasin, aconselhou muitos a deixarem de ser religiosos ou estouvados e a casarem-se, e sentirem na mulher essa dimensão divina.
Grande consciência da presença Divina em todo o universo e em todos os seres e portanto servindo com amor o próximo, vendo e sentindo nele Deus ou a unidade divina que perpassa todos os seres, e fazendo-o nas condições mais difíceis.
Valorização da verdade e da sinceridade. "A minha palavra é sagrada", costumava dizer, e assim cumpria o que prometia mesmo sob as maiores dificuldades.
Valorização dos sonhos como meios de comunicação entre os seres, incarnados e desencarnados, chegando a dar-se conta dos sonhos dos outros, ou a receber e dar indicações importantes, seja o de ter visto pela 1ª vez o seu mestre em sonho, ou o de ter dito à discípula principal, Maji, que receberia o mantra de iniciação, que ela tanto desejava dele,  em sonho directamente da Divindade, o que se veio a passar, como ambos comprovaram posteriormente ao confrontarem o mantra recebido.
Valorização do desprendimento, do desapego, da renúncia às posses, e ao sentido do ego ou de ser importante: "Se alguma vez pensar que sou superior, então terei caído muito espiritualmente."
Valorização das práticas tradicionais de interiorização para quem quer conhecer ou entrar mais em contacto com Deus ou a com a sua energia, tal como ele escolheu ou recebeu no seu nome: Prem Ananda, isto é, Amor e Felicidade ou Alegria ou Beatitude. Entre essas práticas apontava o controle dos sentidos, da mente e dos sentimentos, recomendando, por exemplo, um kriya yoga, ou acto unitivo interior, de retirar a atenção para as costas, para o interior da coluna vertebral e para o canal subtil, chamado sushsuma, de modo a que a energia, dispersada sensorialmente e mentalmente para o exterior, possa aquietar-se e sensibilizar-se aos níveis subtis e espirituais, e sentir o néctar ou a serenidade feliz de Sat Chi Ananda.
 Swami Premananda Tirtha deixou o seu corpo físico terreno em 2 de Maio de 1959, no seu ashram e tendo anunciado isso um pouco antes na sua última mensagem, na qual dá um testemunho da sua continuidade espiritual, tal como poderá ouvir no vídeo que partilho em seguida, com a duração de treze minutos, terminados a meio de uma leitura e que finalizei depois num segundo vídeo, de sete minutos, também já no youtube, e o qual incluirei num segundo artigo... Aum...
                

sexta-feira, 18 de março de 2022

Dulce bellum inexpertis. A guerra só é doce para quem não a experimentou. Adágio comentado de Erasmo. Tradução do latim por Pedro Teixeira da Mota.

 Erasmo (1466-1536) foi sem dúvida uma das grandes almas e vozes do Renascimento europeu, durante alguns anos, no começo do século XVI, mesmo o mais escutado e admirado dos humanistas pela sua grande sabedoria e mestria, amigo do nosso Damião de Goes que foi até Friburg para com ele aprender e confabular. As suas obras mais imortalizadas são certamente o Elogio da Loucura, os Colóquios e os Adágios, onde a sabedoria e erudição, e a crítica bem irónica dos costumes e crenças do seu tempo, brilham imorredoiramente, pesem as censuras, ataques e proibições que sofreram. Mas, claro, tendo sido obrigado pelos tutores, por morte do pai, a tornar-se um clérigo, muito do seu labor foi dedicado à religião cristã e a uma purificação e retorno às fontes autênticas, para isso contribuindo com uma nova versão do Novo Testamento, com o seu Manual do Cavaleiro cristão, o Modo de Orar a Deus (que traduzi com Álvaro Pereira Mendes, e comentei) e com as numerosas  edições críticas pioneiras dos primeiras padres da Igreja, traduzindo do grego para latim, então a língua franca europeia, por exemplo, Orígenes e Clemente de Alexandria. 

   Frontispício da edição aldina de 1508, constitucional e evocadoramente um Graal..

A recolha comentada dos Adágios ou Provérbios, a que chamou um depósito de Minerva, a Deusa da Sabedoria, teve sucessivas impressões, tendo começado em Paris em 1500, a Collectanea Adagiorum, com 808, crescendo, após e graças à sua estadia em Itália de 1506 a 1508  na oficina e sodalidade do impressor e humanista Aldo Manuzio, para os 3.000, saindo então nos seus prelos venezianos a Adagiorum chiliades tres, reproduzida ao alto E por fim chega aos 4.151 adágios na edição final de 1533, de Basileia, no seu amigo Froben, Adagiorum chiliades quator cum..., Quatro Milhares de Adágios...
Entre eles, alguns foram crescendo na profundidade e tamanho do
comentário ou glosa, que já não era só filológico e literário mas bastante  moral, irónico, político e espiritual, e como nos tempos da sua vida alternaram ora dissensões e guerras ora concórdia e grandes esperanças de uma paz geral (sob a égide da República das Letras e dos soberanos abertos a ela), um adágio destacou-se: o famoso Dulce Bellum inexpertis, a guerra só é doce para quem a desconhece, que chegou mesmo a ser editado autonomamente com o título Bellum, Guerra.  E como as lutas entre o papado, os reis, os estados cristãos e os turcos fendiam de tal modo tumultuosamente a sua época, sob a mesma temática dará a luz  a sentida Lamentação da Paz, Querela Pacis, em 1517 (ano em que se escusou a acompanhar o imperador Carlos V a Espanha), a qual teve também grande sucesso, nomeadamente em Espanha, bastante erasmista na época, com duas edições logo em 1520 e 1529, como o historiou nos nossos dias magistralmente Marcel Bataillon, grande amigo do nosso notável erasmiano e moriano José V. de Pina Martins.
Resolvi então eu traduzir, bem laboriosamente, do latim de uma edição quinhentista, e cotejando com a tradução espanhola de Lorenzo Riber (na Aguilar, 1964) o começo do longo comentário do Adágio,
pois vive-se hoje na Europa um conflito importante, que tem agitado e dividido bastante a opinião pública, pesem os mass media seguirem na sua generalidade uma narrativa oficial que sabemos nunca corresponder aos factos mas que influencia muito as populações e as suas almas e ânimos, levando-as frequentemente a comportamento e pensamentos pouco verdadeiros e nada adequados à serenidade e imparcialidade de observação e julgamento.  Possam estas palavras e imagens, ideias e conhecimentos sábios e belos do perene Erasmo, desde o "beijo que une as almas" à "centalhazinha divina", tocarem algumas pessoas e contribuírem para o auto-conhecimento e o discernimento e para uma maior aplicação e vivência da verdade, da justiça e da paz...

Gravura dada por José V. Pina Martins. Erasmo abençoando-nos: Sancte Erasme, ora pro nobis.

 Começo do Quarto Milhar dos Adágios de Erasmo, o 4.001...
«Um adágio tão elegante quão celebrado pelos escritores é lcys
apeiro polemos, isto é, dulce bellum inexpertoa guerra é doce para quem não conhece. Isto diz-nos Vegecio  no livro III, cap. XIV, do seu Tratado de Arte Militar: «Não confies muito no noviço que cobiça o prélio, pois a luta só é doce para quem não a provou.»
De Píndaro cita-se: «a guerra é agradável ao que a desconhece, mas
para a quem a experimentou, ela é horrível no seu coração».  Na vida dos mortais há coisas que antes de experimentadas não se consegue discriminar quantos perigos e infortúnio trazem consigo.
"Apetecível para quem não a conhece é o cultivar da amizade
com um poderoso; mas quem a experimentou, teme-a".
É vista como bela e esplêndida a possibilidade de se andar entre
pessoas importantes e discorrer-se sobre os assuntos dos governantes; mas os que conhecem penosamente tal, abstêm-se de beber de tal felicidade. Parece suave amar jovens mulheres, mas só aos que ainda não sentiram quanto de amargo traz [ou pode trazer] o amor consigo.
Por esta norma general poderá medir-se qualquer assunto que ande misturado com muitos perigos e junto a muitos males, já que ninguém o quererá tomar sobre si, a não ser que seja jovem e
inexperiente.
A propósito de isto, Aristóteles, na sua Retórica, adverte quanto à
razão da juventude ser mais audaz e a velhice mais tímida: porque naqueles a inexperiência gera confiança e nestes o conhecimento pessoal de muitos males causa timidez e inações. Pelo que se há algo nas coisas mortais que importa fugir por todos os modos, evitar pela oração e afastá-lo é sem dúvida a guerra, que é a coisa mais ímpia, a mais largamente perniciosa, mais pegajosamente tenaz, mais tétrica, e mais indigna do ser humano, para não dizer cristão.
E contudo é incrível como hoje até que ponto e com que temeridade
e quanto por qualquer causa fútil se declara a guerra e com quão feroz bestialidade e barbárie se a leva para a frente, não tanto pelos não cristãos como pelos cristãos; e algo não só pela gente profana, mas por sacerdotes e bispos; e já não só por jovens e inexperientes, mas verdadeiramente até por anciões plenamente experientes; e não exclusivamente por plebeus e de natureza vulgar mas por príncipes ou governantes cujo ofício era compor com a prudência e a razão os os costumes temerários e estultos das massas. E não faltam jurisconsultos [ou homens públicos] e teólogos [ou pensadores] que a esta actividade tão nefasta ainda juntam lume e pingos de água fria.
Resulta de todos estes antecedentes que nos nossos dias a guerra é
algo tão aceite e corrente que as pessoas admiram-se que haja quem não a aprecie; é em geral tão aprovada, que se tem por impiedade e, estou pronto a dizer, por heresia, reprovar-se uma coisa, a mais celerada e miserável de todas.
Quão mais justo fora interrogar-nos que mau génio, que peste, que
intempérie, que fúria foi a primeira a pôr na mente dos homens uma animosidade tão selvagem, que impulsionará a uma criatura tão plácida, gerada para a paz e a benevolência, a única dada à luz para a salvação, a precipitar-se com  feroz vesânia, com tão insanos tumultos, à destruição mútua!

Início do adágio numa edição antiga.

E tanto maior será o assombro de quem, afastando a sua atenção das opiniões aceites pelas pessoas normalizadas, e a dirige para apreciar a força e natureza das coisas, e contempla,  por um momento separadamente, a imagem do ser humano por um lado, e por outro o 
simulacro da guerra, com olhos de verdadeiro filósofo.
Ora ao considerar-se em primeiro lugar a figura e o corpo humano,
por acaso  não se compreenderá logo que a Natureza, ou antes Deus, gerou este ser animado não para a guerra mas  para amizade; não para a destruição mas salvação, não para a injúria mas a beneficiência? Enquanto que cada um dos outros seres animados está provido de armas, tal o ímpeto do touro armado de cornos, a raiva do leão com unhas-garras...»
[Seguem-se uma série linhas de exemplos de como os animais tem consigo as suas próprias armas, tais como cornos, unhas, venenos, etc...]

Nosso querido amigo na sodalidade da cavalaria do Amor

«Só ao ser humano produziu-o nu, frágil, terno, sem defesas, de carne flexível e pele delicada. Não se pode ver nos seus membros algo que tenha sido dado para a luta ou violência, para não mencionar  entretanto que, na generalidade, os outros desde que nascem, bastam-se a si mesmos para cuidarem da vida, só o ser humano sendo produzido de modo a que por muito tempo dependa do subsídio ou apoio  alheio. Não sabe falar nem andar nem captar alimento; implora auxílio apenas com vagidos. De tudo isto pode-se facilmente deduzir que é o único ser animado nascido plenamente para a amizade e que, por serviços mútuos, se une e adquire coerência social. Por onde, a Natureza quis que fosse aceite o dom da vida, não tanto para o seu próprio bem como para o dos outros e que estivesse bem ciente de que fora dedicado as graças [ou musas], à compreensão de si e às relações necessárias.

As três Graças, numa sanguínea de Rafael.

Deu-lhe uma aparência não tétrica nem horrenda, como aos outros, mas suave e plácida, para manifestar sinais de amor e de benevolência. Deu-lhe olhos amigáveis, e nestes sinais da alma. Deu-lhe braços generosos para abraçar. Deu-lhe o sentido do beijo, para que deste modo se juntem e se relacionem sexualmente as almas. 

Abraço de todo o ser, beijo de união. Em Hypnerotomachia Polifilo, de Colona.

Só a ele atribui o riso, indício de alegria; e a  ele só deu as lágrimas, símbolo da misericórdia e da clemência. E deu-lhe a voz, nem ameaçadora nem horrenda, como às feras, mas sim amiga e branda.
E não contentando-se com isso a Natureza só a ele atribui uso da
palavra  e razão, ambas as coisas muito importantes para se ganhar e alimentar a benevolência, para que nada se faça à força entre os homens. Inseriu a repulsão  da solidão e o amor da sodalidade [ou companhia amiga], e introduziu interiormente a semente da benevolência. Fez com que o mais salutar fosse também suavíssimo. Que coisa mais agradável que um amigo, e igualmente  mais necessária? Portanto se fosse possível viver comodamente a vida sem comércio mutuo,  nada pareceria agradável sem companhia, a não ser que  alguém abandonasse completamente a sua humanidade e degenerasse em fera.
Juntou ainda mais o estudo das disciplinas liberais e a aspiração
ardente ao conhecimento; algo que assim como afasta poderosamente o engenho humano de toda a ferocidade assim também tem força especial para conciliar as necessidades. Pelo que  nem afinidade nem o parentesco carnal une os ânimos com vínculos de amizade mais apertados e firmes como a sociedade [sodalidade, grupo, fraternidade] de estudos  honrados. E acima disto distribui uma admirável variedade de dotes entre os mortais, assim das almas como dos corpos, de tal modo que cada um deles encontra as qualidades que amassem ou admirassem por sua excelência ou que por sua utilidade e necessidade ambicionassem e abraçassem. 

A centelhazinha divina em nós, em Bô Yin Râ.

Finalmente deu uma centelhazinha [ou estrelinha] do espírito [mens] divino para que sem a ostentação de  prémio, mas por si mesmo ajudassem ao bem de todos. Na verdade isto é sumamente natural de Deus, no seu olhar pelo bem do universo.
Por outra parte, que volúpia é aquela que o nosso ânimo sente de
modo algum vulgar quando percebemos que alguém foi salvo por nós? E por isso mesmo um ser é caro ou querido por outro ser, por estar-lhe obrigado por algum insigne benefício.
Pelo que Deus neste mundo constitui o ser humano como uma certa
imagem [ou simulacro] de Si mesmo, para que,  tal como uma divindade [numem] terrena, propiciasse a salvação de todos.
Sentem isto também até os animais, tal como vemos que não só os
mansos mas também os leopardos e os leões e outras ainda mais ferozes, nos grandes perigos refugiam-se sob poder [opem] do ser humano. Este é o santuário extremo de todos; este altar é santíssimo
no universo, esta âncora para ninguém não é sagrada.
Pintamos em certa grau a efígie do ser humano. Agora, o simulacro
adverso da guerra, tal como é visto, componhamo-lo...» 

E continuava... Ficará talvez para outro tradutor, mais conhecedor e familiar do latim, e logo com necessidade de menos utilização do nosso tão limitado e precioso tempo na Terra...
Tradução feita em algumas horas dos dias 16, 17 e 18 de Março,
quando além das guerras surdas que os Ocidentais sustentavam no Oriente, uma mais intensa ou cirúrgica se realiza no coração da Europa e para a qual desejamos sincera e ardentemente que rapidamente se chegue ao consenso que evitará mais mortos, destruições e sofrimentos. Para tal oro ou rezo que contribuam  estas palavras sábias, por vezes tão elucidativas e frescas, contendo as forças anímicas de Erasmo e da sabedoria Divina que ele realizou, sem dúvida um dos mestres da Europa humanista, hoje em grande parte subsistindo no intelecto, ou vá lá nas almas, de apenas alguns milhares de seres, nesta União Europeia dirigida de modos demasiados cinzenta, ineptos, conflituosos e pouco humanistas, mas que ainda assim se encontra sob a égide subtil da República das Letras, Corpo místico da Humanidade ou Satsanga, onde Erasmo, com outros grandes seres, mestres e espíritos celestiais, continuam a inspirar-nos, se a tal aspirarmos e querermos...