Hygia ou Higeia é o nome de uma deusa grega pouco conhecida mas que até mereceria hoje ser mais cultuada, pois era e de certos modos é um nome de invocação dos poderes iluminativos e curativos da consciência e da providência Divina, que estão acima e dentro de nós e aos quais podemos aceder pela oração, a fé, a meditação, a contemplação, o esforço e, sobretudo, se apoiados na sabedoria da ordem da natureza e da higiene correspondente.
Hygia, Hygea ou Hygeia era a deusa da saúde, de certo modo a contraparte feminina do deus Esculápio, e tanto ligada com a prevenção como com as mezinhas, os medicamentos da natureza, as ervas medicinais e poções, vindo a tornar-se no Ocidente a patrona da farmácia, representada em geral com um vaso ou graal e a serpente da energia vital.
Não podemos pois estranhar que ela ao longo dos séculos se mantivesse reverenciada, invocada e cultuada, com belas estátuas clássicas e, mesmo após a extinção da religiosidade greco-romana, ei-la, por exemplo, representada no mosteiro beneditino de Melk, Áustria, numa bela escultura em madeira do começo do séc. XVIII, presidindo ou abençoando na biblioteca, que é em si na realidade uma casa de saúde onde se exerce a biblioterapia.
Sobreviveu também na palavra hoje tão falada, ou por vezes manipulada, de higiene. A higiene pública, a higiene individual: como nos devemos cuidar em termos gerais e naturais para estarmos em saúde e logo em paz, e logo sermos seres harmonizando-se e harmonizadores, capazes de nos relacionarmos correctamente e de nos religarmos salutarmente, espiritualmente e divinamente.
Quantos milhares de teorias e de propostas de higiene existem, quantas são as que praticamos, quais as que devemos ainda aprender e experimentar, eis questões que nos desafiam, e mais do que nunca nestes tempos em que o nosso sistema imunitário tem de estar bem fluido e forte para resistir aos vírus e a tanta onda artificial, emocional e mental perturbadora, manipuladora, aterrorizadora...
Não vamos agora apresentar receitas de ervas e mezinhas da farmacopeia tradicional, que em certos casos nasceram sob a égide da Hygia, embora haja indicações valiosas da nossa sabedoria popular galaico-portuguesa nesse sentido, e trabalhadas ainda nos nossos dias com bons resultados. Vamos sim recuar uns anos a um elo da Tradição espiritual portuguesa, para receber forças do passado, para agirmos bem no presente e gerarmos e colhermos um futuro melhor.
De Vicente Pedro Nolasco da Cunha (Caldas da Rainha, 1777-Lisboa, 1844), formado em Ciências na Universidade de Coimbra, um liberal amigo de Bocage, que andou emigrado pela Europa e foi o principal redactor e fundador em Londres, em 1811, do jornal literário e político O Investigador português em Inglaterra, vamos apresentar ou transcrever uma obra sua dada amorosamente à luz, porém anonimamente, em Lisboa, em 1837, consagrada a Hygia, a deusa da saúde, e intitulada O Templo de Hygia, ou a saúde publica influida pelos governos, um título muito actual pois todos temos visto a importância das decisões dos governos na saúde dos seus cidadãos, sobretudo nestes tempos de crises e de medidas de tão díspares intencionalidades. O exemplar é um in-8º de 26 págs., e tem a nota de posse de Faustino de Paiva Sá Nogueira, e foi envolto num papel rosa...
Publico-o no dia 8 de Março de 2021, no dia da Mulher, pois Hygia é ainda um arquétipo activo para a mulher da natureza, a conhecedora das ervas e mezinhas, a bruxa, feiticeira, meiga ou curadora, ou ainda a pitonisa e a sibila, mas também para a mãe de família, a enfermeira, a médica, a trabalhadora, a lutadora e amante, em suma, a Mulher.
Com as suas aspirações e ensinamentos, com mantras ou orações, mostrando um conhecimento científico, um discernimento do bem e do mal, e uma inspiração anímica da harmonia do microcosmo com o macrocosmos segundo os ensinamentos ou a fala de Hygia, a obra é como um livrinho revelado:
«Nos quícios d'ouro as bronzeas portas rangem.
E o tempo se abre consagrado ao Numem
Custódio da Saúde - Eis já patente
O venerando, excelso Santuário,
Que dos seus mais recônditos arcanos
Nenhum veda a meus olhos. - Corro às aras,
A Deusa me apresento; e com profundo,
E nobre acatamento assim suplico:
Celeste Hygia, da Saúde Guarda,
Que não só a mantens, mas que a restauras,
Escuta os votos meus, teu sacro influxo
A mim, e ao meu país benigna outorga.
- Sacerdote das Musas, pois que Vate
És também meu Ministro; me responde
A voz do Santuário - Eu te concedo
O que tu pedes justo - Ouve, e publica
Segredos, que a Verdade aqui revela
Aos sinceros mortais, que ouvi-la prezam.
Mas primeiro que tudo advertir deves
Que tempo, e esforço perdes, se pretendes
Moléstias corrigir que têm por causa
Vão saber, sistemática ignorância.
Erros o vão saber somente gera,
Que o lume da Razão jamais dissipa.
Contumaz a Ignorância, e capricho
Todo o socorro enjeita das Ciências.
Os Homens são perversos, porque ignoram
Seus grandes interesses, que a Verdade
Só lhes pode mostrar, pois não desune
O bem particular da geral dita.
Sabe isto o mundo; e de segui-lo foge.
Já disse antigo Vate em grande metro
- Louva-se a probidade, e ela arrefece. -
Porque assim - Vou dizer-te - Atende um pouco.
O mal físico existe - A dor o mostra.
Existe o mal moral - Crimes o atestam.
O mal tem pois duas nascentes certas.
A origem do primeiro examinemos,
E os meios de extingui-lo, ou mitigá-lo.
As causas do segundo investigando
O remédio melhor lhe apresentemos.
Mortal, antes de tudo, olha onde habitas.
Da terra albergue teu, mede as distâncias,
Suas diversas índoles observa.
Nos trópicos calor, frio nos pólos
A tempérie do ar, e as zonas formam.
Que da orgânica vida o curso regem,
Altas montanhas, e profundos vales,
Lentos regatos, caudalosos rios
Campestres plainos, densos arvoredos,
Eléctrica fluxão, que a chuva, o raio
Dos ares desenvolve, os meteoros.
Dos pólos a magnética torrente,
Vizinhanças do mar, distâncias dele
Tudo influi em teu corpo, e seu tecido
E a sua vária condição produzem».
Acerca da galvanoplastia pré-natal:
«Cumpre portanto não turbar o estado
Da vida incipiente com movimentos
Estranhos, com paixões veementes de alma.
Por isso outrora os Magos do Oriente
As grávidas mulheres entretinham
Com música, e passeios pelo campo,
Com gratas sensações, que as distraiam
De vivas dores, reflexões acerbas...»
Apelo de Hygia à amamentação:
«Tágides belas, Lisbonenses damas,
Eu me dirijo a vós, não por taxar-vos
De falta de ternura - Se de Hygia
Faltais ao melhor culto, aos Céus mais grato
Ao doce emprego de criar um filho,
Culpa vossa não é, culpa é dos vossos
Avós, que a vossa têmpera amoleceram
De um cego luxo pelo falso encanto.-»
E face à dificuldade, apela à solidariedade:
«Se não vos move a simpatia humana
De Hygia o culto vos persuada ao menos.»
Dos malefícios e benefícios das águas e ares:
«Doutra parte prazeres nos fornece,
Conduzindo as suavíssimas fragrâncias
Das balsâmicas plantas florescentes
Que os sentidos alentam, que os refrescam
Aromas tão somente, que o princípio
Tem acidificante. Exemplo - O Cravo
das flores rei; sua rainha a Rosa.
E do norte o Alecrim; mas não dos cheiros
Em que vem disfarçado o Gás nocivo
Produtor de histerismo, e cefalgia
Qual Jasmim, Mangerona, ou Bergamota,
Alfazema, ou pastilhas odorantes.
Damas Francesas, desterrai perfumes
Que tão caros vendei à insânia alheia;
Do Tejo as Ninfas têm do pátrio rio
Os cristais, que banhar seus membros devem.
De vossos arrebiques não carecem
Para a cultura das nativas graças»
Em seguida avança Hygia, pela voz de Pedro Nolasco da Cunha, um cavaleiro do Amor e da sabedoria, a ensinar a arte de bem viver, examinando e enaltecendo a música, a palavra verdadeira, a democracia e o governo justo das cidades etc., mas, como já vai longo o texto, ficará para uma segunda parte...
Oremos de novo, ou por fim, à Divindade nesta sua face:
"Celeste Hygia, da Saúde Guarda,
Que não só a manténs, mas que a restauras,
Escuta os votos meus, teu sacro influxo
A mim, e ao meu país benigna outorga."
2 comentários:
Bravo, Pedro, Higeias destas, se descobrires mais alguma, força, que o pessoal agradece. 1837... quase dois séculos...
Ó grande Zé, lamento só hoje passados três anos é que vi o teu animador comentário e te posso responder, quando já estás nos planos espirituais, como há tempos me confirmou a tua filha Soledade. Grande abraço, muita luz e amor na arquitectura tão valiosa da tua alma. Continuaremos as nossas conversas certamente....
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