quinta-feira, 4 de março de 2021

"Orpheu Portugal, e o Homem do Futuro." Uma carta para Dalila Pereira da Costa, reencontrada e agora enviada no dia do seu aniversário.

 Tendo encontrado entre os meus papéis uma carta para a Dalila Pereira da Costa,  escrita na quinta do Gilde, S. Torcato, Guimarães, após ter lido o seu folheto que me enviara, Orpheu Portugal e o Homem do Futuro, de 1978, resolvi agora transcrevê-la e assim enviar-lha, no seu aniversário, para os planos espirituais, com muito amor e aspiração de realização espiritual e divina!   Vai com uma fotografia inédita da Dalila, já com 91 anos fabulosos, de 2009, com a Sandra Pinheiro, três anos antes de deixar a terra e regressar aos mundos espirituais, em 2 de Março de 2012.  Que ela nos inspire...

Orpheu Portugal e o Homem do Futuro é um pequeno texto escrito para Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, em 1977, no qual Dalila aborda o movimento sensacionista da revista Orpheu e do seu grupo, com uma hermenêutica altamente idealista e espiritual, assumindo que Fernando Pessoa fala como um profeta e apela à iniciação de Portugal e da Europa, a qual se faria pela busca ardente da imortalidade, assente na desintegração da individualidade, numa linha de Super-homem de Nietzche, e que dois poemas exprimem mais: «Desde a busca da alma borboleta de Para Além Doutro Oceano, até à proclamação final no Ultimatum do advento do Super-homem, se processará uma ascese individual, nacional e universal, como atingimento duma personalidade, seguida do seu ultrapassamento, ou negação, como estado vivido de suprema sabedoria»;  algo que na realidade pouquíssimos portugueses terão conseguido ao longo dos tempos, mas que Dalila na época algo mistagogicamente imaginou em Fernando Pessoa e nos poetas do Orpheu, apesar de terem «no consenso dos seus contemporâneos e conterrâneos, merecido a definição de cocainómanos, morfinómanos, loucos varridos», pois «esta aventura do Orpheu e supremamente de Pessoa surgindo-nos agora como uma das formas mais altas que tomou a aventura espiritual europeia do nosso século, e justamente entre nós.» 

Exagerou, e enganou-se também na nova Europa (quem poderia prever então a funesta União Europeia dos globalistas trans-infrahumanistas que destruiria nações e géneros, almas e tradições?) que nasceria graças ao contributo português, mesmo que unido ao Brasil, ou seja: «E assim nesta esperança profética, se seguirá a reapossesão da alma europeia. Esta sendo realizada pela alma atlântica. Por isso tudo se fará, a partir das margens marítimas de Portugal, virando as costas à Europa.

E será esse dom da civilização lusitana, de que Orpheu por si solitário e continuador da Renascença Portuguesa (de Teixeira Pascoaes, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão, com a sua revista Águia), se vê incumbido. Civilização que, por ela, será agora, não mais unicamente nacional, como nos saudosistas [algum exagero, pois leia-se o tão valioso O Homem Universal, de Pascoaes], mas universal, detendo e simultaneamente ultrapassando, uma personalidade nacional. Porque nascida das suas raízes primeiras, mas vivificada pela seiva duma cultura cosmopolita.» Uma miragem já que  o cosmopolita tornou-se globalista, e já não tanto de cultura como mais de informação e manipulação.

«Querida e estimada Eu (Self)
Já encontrou a melhor
designação para a conceptualização de tão subtil e elevada realidade,  ou acha que a palavra Espírito serve bem?
Acabo de chegar hoje ao Gilde [S. Torcato, Guimarães] e se de manhã, ao passar pelo Porto, pensara em visitá-la [mas não pude], recebi-a agora ao encontrar e ler o seu pequeno folheto Orpheu Portugal.
Orfeu tornou-se o deus dos sonhos, [pois por eles acedemos aos mundos subtis]. Desde os tempos medievais [com o desenvolvimento do intelecto escolástico], perdemos repetidamente o que nos estava a sorrir. Agora que já está quase tudo perdido poderemos encontrar a pérola sem preço?
A sua expressão "Portugal Brasil
" [No Orpheu, no Ultimatum e em certos escritos de prosa de Pessoa, haverá por certo, um dos mais altos pontos de apelo à missão incumbida a Portugal e Brasil, na criação duma nova civilização atlântica»] faz-me lembrar uma ponte para a liberdade. Um movimento que existe até por acaso com este nome, inspirados por quem eles chamam [mistagogicamente] os mestres ascensionados. Saberemos desenvolver tal com justiça, ecologia e plenitude do ser humano?
Estou escrevendo e pensando qu
e talvez já não lhe chegue a carta às mãos. Desde o cansaço, à doença, à má alimentação, à falta de tempo [que me envolvem e me dificultarão a ida ao correio.]
São meios que o inimigo secreto ou forças adversárias utilizam para nos afastar da claridade luminosa, do Amor/Justiça que a tudo inclui e transcende, bem visto no panteísmo lusitano das forças da natureza, das porcas de Murça e das pedras de bazar. E agora o português está num bazar de consumo, ponte entre a natureza e a técnica, entre a entreajuda e os partidos, entre a destruição e a harmonização.
Estamos todos a viajar. Diariamente zarpamos rumo à Índia, [espiritual e simbólica...]
Ex Oriente Lux, e assim os antigos dem
andavam essa luz e morriam mesmo virados ora para o Leste ora o Oeste. Saberão os intelectuais, os artistas, os mais despertos, silenciarem as suas mentes, descerem às suas profundezas e deixarem-se penetrar pelos ritmos cósmicos e as correntes espirituais?
Cosmopolitismo, tal como realça, também já não nos falta. Agora sim, invocar tudo [o que nos possa impulsionar ou harmonizar], que o nada é para quem quer seguir o Deus dará...
Alguns artigos da Fi
ama [Hasse Pais] Brandão, outros da Yvette [K. Centeno] fazem-nos crer que o espiritualismo começa a sair das limitações da religião católica ou das seitas. Será tempo de se começar a pensar como concretizar mais os arquétipos deste todo e como poderemos contribuir directamente no processo iniciático.
À volta para Lisboa,
se passar a horas, visitá-la-ei, talvez na sexta-feira do 25 de Abril, se não partir quinta à noite. Diga para aqui, para o Gilde (42875) se houver algo em contrário. 25 de Abril que vem das antigas festas pagãs das flores e que simboliza também a abertura ao povo do átrio do templo.
Aqui tudo vibra intensamente, só os nossos corpos é que são mais ou menos perfeitos como canais da Harmonia Cósmica, e como caixas de ressonância do espírito em nós.
Saudações respeitosas e
calorosas na Fraternidade, Pedro. »

O que realçar desta carta escrita já há tanto tempo para a querida amiga Dalila? O debate entre a melhor designação para o espírito em nós, o nosso verdadeiro eu: o jivataman indiano, o Self, em inglês, ou o Soi, francês, o Si, o Eu, com letra grande, já que nós não temos com tanta facilidade de uso a diferenciação do Eu normal da personalidade e o Eu espiritual, o Si, preferindo eu até mais a designação de Espírito, do qual o nosso eu é um reflexo instável e alargado pela alma e o corpo que envolvem o espírito e frequentemente o ignoram. Mas se queremos acabar com o eu ou por outro lado recusar e negar o espírito, como certas linhas espirituais fazem, já nos desviamos e perdemos.
Como recuperar a
identificação ao espírito, ao verdadeiro eu, que é de origem divina, eis a questão, eis o caminho, a sadhana, como se diz na Índia, terra lúcida bastante referida na carta pois a Dalila apreciava bastante a sabedoria espiritual que eu a partir da minha estadia de um ano na Índia, com vários mestres, dialogava com ela (ainda que com oposições fortes do seu amigo Paulo Samuel], embora procurasse sempre ressuscitar ou aprofundar os melhores veios da tradição espiritual ocidental, seja pagã, e a Dalila era-o muito atavicamente, sibilinicamente, seja cristã.
Realçarei ainda o desejo ou aspiração a que pessoas consigam interiorizar-se, silenciar-se e abrirem-se às melhores correntes espirituais e divinas...
Embora deva ter na
minha vasta biblioteca o opúsculo Orpheu, não está contudo junto aos livros da Dalila, pelo que um comentário mais fiel à carta e ao livrinho fica prometido para quando o reencontrar, se não é que o emprestei e perdi como tantas vezes sucede. [Em 2023 consegui comprar um exemplar e pude assim melhorar e introduzir os comentários e transcrições iniciais que encontra no princípio deste artigo e sua carta.]

Fiquemo-nos para terminar nestes tempos de tanta artificialidade com um estado de harmonia com a natureza campestre, sentido em Gilde, S. Torcato, e expressado na carta de então: «Aqui tudo vibra intensamente, só os nossos corpos é que são mais ou menos perfeitos como canais da Harmonia Cósmica, e como caixas de ressonância do espírito em nós.»

Invoquemos mais o espírito no silêncio e mergulho interior, e estejamos mais conscientes e harmonizadores do que estamos pensando, sentindo ou fazendo   e comunguemos agora em comunhão vertical e interior com a alma luminosa da Dalila, tão amante das flores e árvores, do rio Douro e da serra do Marão, do Porto e de Portugal, dos mestres, dos Anjos e da Divindade...
Que eles nos inspirem e abençoem nas nossas acções e orações-meditações...
Imagem final de outra fotografia inédita do
seu hortus conclusus ou jardim encantado portuense, tão compenetrado do seu amor e cuidado. Que os perfumes dourados nos religuem a todos nós com o mundo espiritual e a Divindade!

1 comentário:

Pedro Teixeira da Mota. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.