domingo, 28 de março de 2021

Wenceslau de Morais e o amor dos animais : "Budismo e Amor", um capítulo dos "Serões no Japão"

                                                       

Como há poucos textos de Wenceslau de Moraes na web disponíveis, eis um dos que escreveu para a revista Serões e que em 1925 publicou na obra intitulada Serões no Japão, dedicando-o ao seu camarada da Armada e notável historiador Henrique Lopes Mendonça, um dos autores que aos 12, 13 anos me encantava. Pois neste texto Wenceslau debruça-se com simpatia e humor sobre algumas crenças populares do budismo e dos que muito gostam dos animais, tal como a de que é possível os espíritos passarem de animais para humanos, ou vice versa. Esta crença implica outra,  a da reencarnação ou metempsicose e Wenceslau  admiti-a, numa ascensão para a perfeição, enumerando os seis reinos ou planos. Todavia, o culto dos mortos queridos, forte nele, de tal modo que já houve quem considerasse essa a religião de Wenceslau de Morais, poderá ser abalado por tal crença na reencarnação pois quando projectamos para alguém o nosso amor e saudade e essa pessoa já está incarnada e a fazer uma nova vida na qual com connosco nada terá a haver,  com que personalidade é que se comunica ou dialoga? 

É certo que mesmo as mais fantasiosas teorias ou leituras de vidas passadas, em que caíram (e seguem hoje) tantos ocultistas, sempre dão alguns anos no tempo subtil do além, num intermezzo das reincarnações, o qual em geral dará para a pessoa em vida também morrer e portanto poder (eventualmente, caso a sua visão espiritual estiver bem desperta...) certificar-se para onde deverá dirigir a partir de então as suas energias, preces e flechas de amor. Ressalve-se no Budismo Mahayana, o que chegou mais à China, Japão, a crença absurda de que o espírito reencarna-se em poucos dias, no caso da tradição do  Vietname, enumerando-se mesmo as hipóteses: 3, 21, 49 ou 100 após a morte, e em certos casos podendo chegar até 7 anos.

A harmonização das memórias da vida deve ser complexa, e deve ser difícil uma síntese bem feita de várias vidas num só ser e personalidade, algo, porém, que os milhões de pessoas, que pensam que já viveram antes, experimentam descontraídamente. Na verdade sabemos pouco seja da pre-existência espiritual, seja além dessa, também das possíveis vidas passadas, para não falar da vida depois da morte, da qual os seis reinos do Budismo são uma mera hipótese, e à partida defeituosa ou preconceituosa....

Ora Wenceslau de Moraes vai ironizar ou brincar um pouco, pois tendo conhecido um russo que morava num templo budista em Kobe perto dele, e que valorizava tanto, tanto o amor do cão para os donos, que admitia ser esse o seu desejado estado paradisíaco ou nirvânico, vai imaginar que ele, tendo morrido quando regressou à Rússia, poderá estar reencarnado em algum cão nipónico que ele encontre na rua....

Como na sexta-feira ao dirigir-me para um trabalho temporal na zona do Chiado, um cão negro, bem encaracolado, tipo fox-terrier mas alto, levado pelo dono, ouvindo o meu cumprimento saltou com tanta alegria e só queria estar comigo, e falar-me e ouvir-me, mais festas, o que fizemos uns momentos, e ganindo e ladrando com emoção quando o dono e a mulher seguiram para um lado e eu para outro, ficou-me dentro da alma uma tal dor de amor, ou de separação, que me custou e me levou a pensar, de novo, que os cães são crianças, e quem sabe se alguns têm almas já muito ou quase humanas, ou pelo menos muito amor... 

Gravei um pequeno (espaço no disco insuficiente...) vídeo, uns minutos depois já nessa livraria, e agora passado dois dias resolvi partilhá-lo (no fim deste artigo)  com o   texto de Wenceslau, que li depois, e desejar que o amor tão puro, de facto, dos animais para connosco seja um exemplo e uma força para diminuir, travar, sublimar o desamor de alguns dos governantes e exércitos mais imperialistas, racistas, ou criminosos e terroristas.

Voltemos então a Wenceslau de Moraes e às suas vivências e reflexões fabulosas nipónicas, ainda tão pouco lidas e aprofundadas, e neste caso, não as shintoistas, as que me dizem, ou nos dizem aos amantes do Shinto, mais.... 

                             

    O Budismo e o amor

«Há um provérbio japonês, de pura essência budista, que diz assim: - «Rokudo wa, mé no máe» (seis caminhos se encontram diante dos teus olhos). – O laconismo requer, evidentemente, explicações, para leitores ocidentais: seis caminhos, seis normas de conduta estão em frente ao homem; da sua escolha, do caminho que ele prefere, isto é, das boas ou más acções que pratica nesta vida, depende o destino da sua vida futura. – Sabe-se como seja a teoria da reencarnação: o homem morre para reviver, para ir viver uma outra vida; sucedem-se as existências umas às outras, as quais não são mais do que simples existências de purificação; conduzindo naturalmente o espírito, após uma série de estados diferentes, ao reino celestial. Posto isto, vejamos como o Budismo classifica os seis caminhos que apontei: - Jigokudô, o caminho do reino do inferno; Gakidô, o caminho do reino dos tormentos da fome; Chikushôdô, o caminho do reino dos animais; Shuradô, o caminho do reino da luta e dos maus tratos; Ninghendô, o caminho do reino dos homens; Tenjôdô, o caminho do reino dos céus; estes seis reinos abrangem todos os possíveis estados de existência; além deles, só existe o Nirvana, a mansão da suprema paz, da absoluta abstracção.

 Como já disse, torna-se evidente que quaisquer dos cinco primeiros reinos apontados, mais ou menos penosos ao espírito, representam estações de penitência, poisos expiatórios desse espírito, purgatórios tendentes à sua purificação, até que possa atingir o verdadeiro mundo consolador: o reino celestial. Ficamos assim habilitados a encararmo-nos, nós mesmos e todos os seres humanos, existentes, como reencarnações de espíritos que já viveram noutros homens, mas que, pela sua conduta pouco digna, tiveram de permanecer no mesmo estado; ou então tais espíritos já sofreram martírios noutros reinos, ou viveram obscuras existências de animais, merecendo após o que podemos chamar – ser promovidos, - passando a viver a vida humana. Os nossos mortos, os nossos queridos mortos, quem nos pode dizer aonde se encontram?.. 

A piedade filial leva-nos a considerá-los no reino celestial, em prémio das virtudes que na terra praticaram. Quanto aos brutos que relanceamos – o elefante, o cão, o cavalo, a serpente, o insecto, o verme, a inteira série dos seres irracionais, - devemos concluir, por idêntico raciocínio, que são reencarnações de espíritos que subiram dos infernos ou que já foram dos homens, segundo os seus méritos ou segundo as suas culpas. O esforço humano deve porfiar quanto possível – e nisto consiste a moralidade do provérbio que citei – na prática do bem, furtando-se aos reinos dos tormentos, para alcançar sem demora o bem supremo… como numa comparação muito comezinha, o sargento que, pelos seus brios, trabalhe pelos galões de oficial, evitando com cuidado uma preterição, ou – o que é pior – uma baixa de posto…

Ora conheci no Japão, há alguns anos, um homem, um russo, - um louco?.. – que, pelo Amor, se consagrou ao estudo do Budismo no intuito de falseá-lo e de fugir do Buda. Chegara ele à conclusão de que o homem ama a mulher por orgulho, por cobiça, por egoísmo; ou melhor, não ama, mas deseja. Concluíra ao mesmo tempo que a emotividade do cão realiza o sentimento do Amor na sua expressão mais sublime, amando o dono ou a dona para servi-lo ou para servi-la, para lhe obedecer, para se lhe dar todo, para defender o ídolo, para salvá-lo dos perigos, não pedindo nada em troca, não esperando benefícios, indiferente à beleza do ídolo, à sua idade e ao seu sexo… ao sexo, não inteiramente; pois afirmava que, quando se haja estudado com interesse a psicologia dos animais, será reconhecível em alguns deles, nas relações de simpatia do bruto pelo dono, o prestígio sexual, na sua expansibilidade mais pura, mais casta, mais subtil. Um cão em repouso aos pés duma mulher, fixando nos olhos dela a sua terníssima pupila é – dizia o russo, o quadro da verdadeira apoteose do Amor. Pois, para amar assim uma mulher, o russo aprofundava as doutrinas do Budismo, cuidando de descobrir como, em frente das seis estradas que decidem da vida futura de nós todos, poderia ele fugir do Buda, fugir de Deus, para optar, de acordo com as acções eu praticasse, pelo Chikushodô, o caminho do reino dos animais, e ser um deles, e ser um cão… Estranho!.. O mais estranho porém de tudo isto é que o ídolo, a mulher, segundo me constou, não existia; seria quando muito, pelo que julguei adivinhar, uma mulher ideal, como símbolo das múltiplas reminiscências de todas as mulheres que o russo já amara; tendo de uma os pés marmóreos, de outra as mãos finíssimas, de outra as tranças negras, de outra os lábios húmidos, de outra o olhar sereno…

                                       

Este curioso forasteiro alojara-se numa casinha japonesa, anexa ao templo de Maya-San, perto de Kobe, pagando aos bonzos o aluguer; registe-se de passagem que este templo, votando a Maya Bunin, a mãe do Buda, encanta pelo aspecto pitoresco do lugar. Os bonzos de Maya-san tratavam o russo com carinho, com os desvelos paternais que se devem a um doente – um doente moral. – Quando porém rebentou a guerra russo-japonesa, cuidaram de convencê-lo, por prudência, a que se ausentasse do Japão. Diz-me um informador que o russo seguiu para a Sibéria, onde, porém, morreu doido. A dar crédito a outros boatos, um coronel de cossacos, que o encontrara, descobrindo-lhe na bagagem grande soma de livros japoneses, budistas, mas suspeitos para quem não os entendia, tomou-o por um espião, mandando-o logo fuzilar pelos seus soldados.

Pelo que me respeita, ficou-me do caso uma impressão grotesca: - ao encontrar na rua um cão qualquer, lembro-me se estará nele o espírito do russo que conheci em Maya – San; vindo-me de quando em quando tentações de levar a mão ao meu chapéu e de bradar-lhe um «adeus ó coisa!» - Quem sabe!.. No entretanto, uma outra hipótese mais plausível, também budista, se apresenta: numa existência anterior, o espírito do russo encarnara-se num cão; de facto, se explica o seu desejo, activo, em readquirir aquela forma; tal como num exemplo trivial, o antigo aprendiz de sapateiro, depois feito barão, deputado, inspector de instrução pública, etc., experimente às vezes ganas de voltar à tripeça e ao tirapé. E essa mulher ideal, que ao russo tão ternos sentimentos inspirava, não seria mais do que uma sombra, do que uma visão do passado… a sua dona!..

Imaginemos que o espírito do russo, sobejamente purificado nos reinos transitórios, está no céu…»

P. S. Tendo ocorrido o encontro com o  Terrier na sexta-feira, regressando à catalogação pela mesma rua na segunda-feira, pensei "querem ver que o cão, ainda vai reaparecer", e dentro de segundos ei-lo à minha frente. Grande festa, mas mais curta e a dona puxou-o e afastou-o. O marido é que me explicou que eram da Suécia, e o cão é da variedade Crain Blue Terrier. Este encontro parece que acalmou a intensa vibração de amor sentido e cortado, e logo doloroso mas ardente, da 1ª vez que nos encontráramos. Amainou...

                   

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