quarta-feira, 24 de março de 2021

João F. Gonçalves Cardoso, um orientalista pioneiro em Portugal. Ensinamentos espirituais.

João Feliciano Gonçalves Cardoso nasceu em 12-I-1846, em Candolim, Bardez, Índia Portuguesa. Estudou em Calangute e depois no curso da Escola Matemática e Militar de Goa. Com quem conviveu e se publicou na imprensa local, não sabemos. Em Bombaim estudou com um dos pioneiros do orientalismo inglês, o missionário e co-fundador da Universidade de Bombaim John Wilson (1804-1875), e fortaleceu com o sânscrito o seu conhecimento de latim, português, francês e inglês, o que lhe permitirá vir a ser  um pioneiro, discreto, da filologia comparada orientalista. Chegará por barco à Península em 1871, publicando Da Barra da Aguada ao Estreito de Gibraltar, no semanário Jornal de Viagens, do Porto, mas será em Coimbra que estabilizará como professor de inglês no Seminário, sendo funcionário dos Correios e examinador de provas universitárias. Como professor de línguas esteve ainda em Viseu, 1883, e Cabo Verde. Como eram as suas aulas, o que sentiram e aprenderam os seus alunos, o que partilhava ou emanava da sua Índia natal, não sabemos...
Na sua obra escrita, para além da narração da sua viagem, destacam-se os Estudos Philologicos, na Imprensa da Universidade de Coimbra, 1876, onde, embora citando ainda as fontes bíblicas mostra a sua familiaridade com Max Müller, Halheld, William Jones, Lord Mombold, Wilkins, etc., e dá belos exemplos da influência do sânscrito nas línguas europeias: «Nos vocábulos portugueses coroamento, coroar, coroação, encontramos a raiz primitiva do sânscrito que é Kard (poder, força, felicidade, coroa). Encontramo-la também no arménio kurum, no gaulês coron, no alemão krone, no inglês crown, no sueco krona, no irlandês coroin, no latino, espanhol, francês, e em diversos dialectos da Índia.» 
Finis coronat opus, o fim coroa a obra, é uma frase bela que podemos relembrar, associado ao coroar, ao fazer brilhar o centro de forças subtis da alma, em sânscrito os chakras, nomeadamente o da coroa ou cimo da cabeça. E isto tanto numa palestra, como num escrito, como em qualquer trabalho, ou obra, acrescentando luz à luz, como se diz também, ou dando o toque final, finalizando a coroação.
Explicará ainda o culto dos Cinco Elementos, bem importante de nos relembrarmos pelos seus efeitos no nosso equilíbrio psico-somático e no  alargamento consciencial de microcosmo humano ao macrocosmo: «Nos tempos da época da inspiração e da adoração espontânea, em que a religião era pura sem subtilezas metafisicas, nem complicações sacerdotais, sociais ou políticas, em que faziam esta pura invocação: Dyaus pitar Prithivi matar adhruk/ Agne bhratar vasavah mrilata nah, os primitivos arianos, descobrindo a presença de alguma coisa sobrenatural e inalterável, guiavam-se por ela».
Ao transcrever esta oração contida nas brahamanas, ou parte ritualística dos Vedas, João Gonçalves Cardoso mostra que era um brâmane e que provavelmente a recitaria, tal como a famosa Gayatri, pois tal oração relaciona-se afectivamente com esses Deuses ou, como explica,  elementos da Natureza onde se sente a Presença Divina, quem sabe oferecendo-nos a possibilidade de ainda hoje a repetirmos, e que se pode traduzir assim, numa linha algo trinitária: «Deus (Dyaus)  Pai celestial, Terra (Prithivi) Mãe inocente, irmão Fogo (Agni), Energias  Divinas,  abençoai-nos!»
Dá também alguns exemplos valiosos da espiritualidade inicial indiana plasmada na língua (aludindo implicitamente à importância da respiração como aproximação consciencial à subtileza da alma e do espírito), vendo a sua influência nas múltiplas línguas: «A palavra anima, derivada da raiz sânscrita an (respirar) significava originariamente sopro ou respiração; em grego era anémos, vento. Da mesma maneira o saxónico sawl, o inglês soul (alma) é aparentado com o gótico saivs (mês), saxónico sae, alemão see, holandês zee, inglês sea, vindo da raiz  si ou siv (agitar, mover), donde temos o grego seio (agitar). O latino spiritus (espírito) vem de spirare (respirar). O saxónico gast (espírito), o inglês ghost e o alemão gheist vêm da raiz gust (sopro do vento), donde temos a palavra portuguesa gaz, gazoso e seus derivados. »
Os seus dois estudos históricos publicados: Breve Estudo sobre as instituições sociaes, politicas, philosophica e religiosas da Índia aryana, 1874 e  a História da India, período mussulmano até à extinção do imperio mogol. Com uma introdução contendo a historia, geographia, cosmographia da antiga Índia, 1875, são livros valiosos e raros. E, falecendo aos 49 anos, com a mesma idade que Antero de Quental (embora  tivesse nascido quatro anos  depois de Santo Antero, e que não deverá ter conhecido, pois Antero a partir de 1867 já não se encontra em Coimbra), deixou alguns escritos por publicar, tal o intitulado, e bem interessante seria sabermos quem ele referenciaria de cronistas e viajantes, Mémoire sur les premiers indianistes de l'Europe, et le rôle que le Portugal chez eux, que hoje está na biblioteca virtual dos manuscritos que não chegaram a ser dados à luz e que em geral se dissolveram na poalha ou poeira dos suportes materiais não acolhidos, não perenizados.  
 Com um amigo de Antero de Quental pode ter contactado, Guilherme  Vasconcelos d'Abreu (1842-1907), pois este veio a ser um dos nossos primeiros orientalistas, e sabendo nós por cartas que Antero recebera emprestados alguns livros de Vasconcelos de Abreu, poderemos  interrogar-nos sobre os livros que terá  João Gonçalves Cardoso trazido ou feito vir da Índia, tanto mais que a dado momento da seu Breve Estudo sobre as Instituições Sociaes... mencionará um deles, a propósito do famoso Mahabharata. E como a nota é interessante vamos transcrevê-la: «Mahá-Bhárata é um imenso poema épico escrito originalmente em um sânscrito que se aproximava do vedico. Vyaça passa por seu autor e segundo ele é testemunha ocular das proezas cantadas no poema.
Segundo nos transmite o próprio poema, foi modificado por Çanti que o recebeu por outra pessoa do autor, e que 24.000 versos além dos 100.00 são a obra do poeta original. Quem quiser pode consultar o Oriental Magazine vol. III, pág. 133. Todos os que têm lido o original, à excepção de Colebrooke que censura na parte da poesia sagrada, entusiasticamente testemunham a favor do poema, aplaudindo a sua simplicidade na composição, sublimidade, graça e pathos nas passagens particulares. Quem não leu o original não pode decerto formar a sua ideia. Não lemos o original a não ser um seu episódio - Bhagavad Gita, editado por J. Cockburn Thomson [em 1855, bem prefaciado e anotado] que possuímos na nossa estante.».... 
Quanto ao destino dos valiosos livros das misteriosas estantes de uma pioneira biblioteca orientalista em Coimbra, na rua do Correio, nº 108, e onde pontificava, como lemos, uma boa edição do Bhagavad Gita, um dos mais belos e sábios textos da espiritualidade mundial e do qual entre nós saiu à luz há pouco tempo, de uma tradução já relativamente antiga, 1956, goesa, realizada pelo médico Rajarama Pundolica Sanai Quelecar, uma reimpressão  dada à luz nas Publicações Maitreya, a partir de um exemplar emprestado por mim,  pela Maria Ferreira da Silva, que a prefaciou e que ainda contou com a supervisão da professora  Margarida Corrêa de Lacerda, ninguém pode hoje adivinhar, embora eventualmente a Biblioteca de Coimbra possa ter recebido alguns, ou eventuais notas de posse que ele tenha consagrado em algumas obras da sua biblioteca possam aparecer...
Pena foi que não houvesse ainda na sua época, uma cadeira de estudos Orientais, que se desenvolveria pouco depois no Curso Superior de Letras em Lisboa (criado por D. Pedro V já em 1859), a partir do decreto de 18.XI.1878, que fundou a cadeira de Língua e Literatura Sânscrita, Védica e Clássica. Adolfo Coelho seria o seu professor, todavia quando finalmente surge a Faculdade de Letras de Lisboa, pela reforma de 1901, o professor de Língua e Literatura Sânscrita é o Monsenhor Sebastião Dalgado (1855-1922), que será o mestre de Mariano Saldanha (1878-1975), o qual será o mestre de Margarida Corrêa de Lacerda, que ensinou por fim ao professor e historiador Luís Filipe Tomás, entre outros alunos, na Junqueira, onde o psiquiatra transpessoal Mário Simões, o Rui Simões e eu, ainda aprendemos os rudimentos.
Em verdade o Breve estudo sobre as instituições sociaes, politicas, philosophica e religiosas da Índia aryana, publicado na Imprensa Commercial e Industrial de Coimbra, em 1874, num livrinho de capa amarela de 80 páginas, é ainda hoje obra que se lê bem, pois apoiada em muitas obras valiosas de orientalistas, oferece-nos um bom panorama da história da Índia na sua religião, literatura, filosofia e castas, num  resumo sintético, e do qual extrairemos agora alguns passos mais significativos, começando pelo início da sua dissertação, onde menciona os elementos e os deuses associado a eles:
«Achamos que os rishis [os inspirados autores dos Vedas] sentiram a presença dum Deus Omnipotente, criador do do céu e da terra, nos principais elementos da natureza, e por isso os divinizaram. Adoraram o firmamento (Indra), o fogo (Agni), a água (Varuna), o vento (Vayu), o sol (Athya), a lua (Chandra), a luz (Surya), a terra (Pritivi); porque se sente nesses mesmos elementos uma força poderosa, e aí a existência de Deus...»
Depois de referir a essência dos Vedas, a crença na metempsicose, os seis darshanas (de drs, ver) pontos de vista ou sistemas filosóficos, parece aceitar uma predestinação que tanto hindus como islâmicos ensinam, e descreve depois os deuses principais, e em especial as diversas manifestações de Vishnu, as chamados dez avatares, dando até uma versão da última, do Kalki, que haveria de vir num cavalo branco, invulgar. 
 A sua apresentação de Vishnu é simples mas valiosa:«A segunda pessoa da Trindade é Vishnu, alma universal de tudo quanto existe, e tem diversos nomes correspondentes às qualidades que se lhes atribuem. É Deus bom, protege os homens, consola os aflitos e redime os pecadores. Como Deus do Oceano é denominado Narayana, que se representa deitado na superfície das águas; como deus do Sol e dos astros é Indra. Entre os vegetais representa-se por uma planta Toluci [tulsi, manjericão], nas ciências por Sama Veda, nas invocações por AUM»...
Narayana, ainda hoje muito cultuado e no seu mantra, Aum namo Narayana namah, cantado, e que foi bem desenhado pelo transmontano António Lopes Mendes, outro "orientalista" pioneiro, quem sabe se amigo de Gonçalves Cardoso pois o seu A India Portuguesa, de 1886, foi o resultado de uma missão do Estado Português na qual desenhou dezenas de monumentos, paisagens e pessoas, logo que se viu desembarcado na Índia em Agosto de 1866.
Entrando depois nas leis de Manu, José Gonçalves Cardoso relativiza, e bem, a sua origem de inspiração divina, e virando-se para os tempos antigos e suas religiões confessa que «por toda a parte encontraremos essas instituições fortificadas pela autoridade sobrenatural»,  referindo «na Pérsia que Ormuzd as ditara a Zedoust; os getas acreditaram que as suas leis foram inspiradas por Hestia a Zalmoxis ; os hebreus, que Moisés as recebeu de Iao; os árabes o recebem por Gabriel ao seu profeta, que promulga em nome de Besm ellah elroham elrahin [Em nome do Senhor Clemente e Misericordioso]. Todos pretendem a força e poder sobrenatural e todos inspirados falam em nome de Deus».
De destacar a referência ao shaman ou mestre Zalmoxis e aos Getas, um povo do Danúbio, possível antepassado dos Godos e de que se encontram  referências nos escritores antigos gregos ou mesmo já no iniciado Jâmblico (280-333), que nos diz: "por ter instruído os Getas nestes assuntos e ter escrito para eles leis, Zalmoxis foi considerado por eles o maior dos deuses. Já segundo Diodoro Sículo, os Getas cultuavam Zalmoxis e a deusa Hestia," Esta terá sido a possível fonte de Gonçalves Cardoso.
Refere depois as castas, os seus defeitos e qualidades, sati (cremação da viúva) e soti (festa no 6º dia do nascimento), e as ashramas ou estágios da vida de um brâmane, cujos deveres principais «consistem na leitura dos Vedas, no seu ensino, em oferecer sacrifícios e assistir aos outros para semelhantes serviços, dar esmolas e receber ofertas.» 

Para finalizarmos (ou coroarmos...) este pequeno texto sobre João Gonçalves Cardoso (de quem reproduzimos a letra presente numa dedicatória do livrinho que nos impulsionou) primeiro, lembraremos  que, casando com Isabel Pereira da Costa (e seria algo à querida amiga, e notável escritora portuense, Dalila Pereira da Costa?), a sua descendência de três filhos, Vítor, Edgar, ambos militares, e Meta, chegou aos nossos dias, destacando-se o engenheiro de pontes e professor Edgar Cardoso (1913-2000) e a gentil e abnegada Catarina Furtado, filha do jornalista Joaquim Furtado e de sua mulher Helena Cardoso; e segundo, concluiremos com uma explicação espiritual do seu Breve resumo, quem sabe inspiradora de leituras, pois as Upanishadas são dos melhores textos da espiritualidade indiana, tendo recentemente sido publicada entre nós a tradução de uma delas por António Barahona, de grande qualidade, e nas mesmas edições Maitryea e por sugestão minha: «Upanishad segundo a definição dos autores nacionais é o que destrói a ignorância e assim se livra da obscuridade. Destes tratados resultou o sistema filosófico Vedanta, que é considerado por todos os hindus ortodoxos como o Brahmadjnana (puro conhecimento espiritual).» 

Acrescento final: hoje 30 de Julho de 2023, ao responder  aos comentários, dei-me conta que o seu  Breve Estudo sobre as instituições sociaes, politicas, philosophica e religiosas da Índia aryana, de 1874, belamente dedicado a sua mãe Maria Cristina Gonçalves, encontra-se já digitalizado no Archive Internet, onde pode portanto ser consultado, ou mesmo reimprimido.  

E dele extraio mais um ensinamento valioso, tanto mais que menciona um seu compatriota misterioso: No Rig-Veda a sua doutrina principal é a unidade de Deus. Frequente e repetidamente o texto diz: «Há na verdade uma divindade, que é o Supremo Espírito, o Senhor Omnipotente, cuja obra é o Universo» A interpretação do texto, corroborada por um nossso sábio compatriota bráhmane, e citada por um orientalista da primeira geração [William Jones. Works, vol. VI, pág. 418] assim reza: «Perfeita verdade [Satya] perfeita felicidade [Ananda], sem igual, imortal, absoluta unidade que a língua humana não pode descrever nem o espírito compreender, dominadora por toda a parte, transcendente em tudo, iluminado por sua infinita inteligência, infinito em tempo e espaço; não tem pés, mas move-se ligeiramente; não tem mãos mas agarra todo o mundo; não tem olhos, mas observa tudo; não tem ouvidos, mas ouve tudo; sem um guia inteligente entende tudo; sem causa é a primeira de todas as causas. Ele governa tudo, é omni-potente, creador [Brahma], conservador [Vishnu] e transformador [Shiva] de todas as cousas: tal é o Único Grande [Parabrahman].»

Saibamos purificar a nossa consciência com a demanda harmoniosa, conhecimento (jnana) e comunhão do espírito e da Divindade (Brahman), libertando-nos das múltiplas obscuridades, manipulações e opressões. E muita luz e amor na alma de João Feliciano Gonçalves Cardoso e dos seus familiares e descendentes...

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde, João Feliciano Gonçalves Cardoso era meu trisavô.Onde possa encontrar “Estudos Philologicos”?
Cumprimentos
José Prazeres

Anónimo disse...

Fantástico. Brilhante . Divino

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças pelo interesse, José Prazeres. O exemplar pode ser consultado e provavelmente fotografado pelo menos no Porto, Biblioteca da Faculdade de Letras, ou em Lisboa, na Biblioteca Nacional. Eu possuo também um exemplar, também consultável. E pode haver noutras bibliotecas ou subitamente surgir numa alfarrabista. Saudações luminosas!

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças pela apreciação tão forte do artigo, que me obrigou a relê-lo, corrigir duas gralhas e ampliar e melhorar algumas partes. Votos de luminosas inspirações e realizações, na senda de João Feliciano Gonçalves Cardoso.