segunda-feira, 8 de março de 2021

Uma invocação da deusa grega da saúde, Hygia: "O Templo de Hygia ou a saúde publica influída pelos governos", de Pedro Nolasco da Cunha. Da sua actualidade...

 Hygia ou Higeia é o nome de uma deusa grega pouco conhecida mas que até mereceria hoje ser mais cultuada, pois era e de certos modos é um nome de invocação dos poderes iluminativos e curativos da consciência e da providência Divina,  que estão acima e dentro de nós e aos quais podemos aceder pela oração, a fé, a meditação, a contemplação, o esforço e, sobretudo, se apoiados na sabedoria da ordem da natureza e da higiene correspondente.

Hygia, Hygea ou Hygeia era a deusa da saúde, de certo modo a contraparte feminina do deus Esculápio, e tanto ligada com a prevenção como com as mezinhas, os medicamentos da natureza, as ervas medicinais e poções, vindo a tornar-se no Ocidente a patrona da farmácia, representada em geral com um vaso ou graal e a serpente da energia vital.

 Não podemos pois estranhar que ela ao longo dos séculos se mantivesse reverenciada, invocada e cultuada, com belas estátuas clássicas e, mesmo após a extinção da religiosidade greco-romana,  ei-la, por exemplo, representada no mosteiro beneditino de Melk, Áustria, numa bela escultura em madeira do começo do séc. XVIII, presidindo ou abençoando na biblioteca, que é em si na realidade uma casa de saúde onde se exerce a biblioterapia.

Sobreviveu Hygia também em alguns nomes, tal como Higierna, que por acaso foi o da minha mãe, ou em Higino, que era o pai da minha avó materna, um artista (ver Higino da Costa Paulino, no blogue), ou até, mantricamente, nas Lígias, e para estas almas invoco as bênçãos da Deusa e da Divindade, da qual ela é uma sua face feminina.

Sobreviveu também na palavra hoje tão falada, ou por vezes manipulada, de higiene. A higiene pública, a higiene individual: como nos devemos cuidar em termos gerais e naturais para estarmos em saúde e logo em paz, e logo sermos seres harmonizando-se e harmonizadores,  capazes de nos relacionarmos correctamente e de nos religarmos salutarmente, espiritualmente e divinamente.

Quantos milhares de teorias e de propostas de higiene existem, quantas são as que praticamos, quais as que devemos ainda aprender e experimentar, eis questões que nos desafiam, e mais do que nunca nestes tempos em que o nosso sistema imunitário tem de estar bem fluido e forte para resistir aos vírus e a tanta onda artificial, emocional e mental perturbadora, manipuladora, aterrorizadora...

Não vamos agora  apresentar receitas de ervas e mezinhas da farmacopeia tradicional, que em certos casos nasceram sob a égide da Hygia, embora haja indicações valiosas da nossa sabedoria popular galaico-portuguesa nesse sentido, e trabalhadas ainda nos nossos dias com bons resultados. Vamos sim  recuar uns anos a um elo da Tradição espiritual portuguesa, para receber forças do passado, para agirmos bem no presente e gerarmos e colhermos um futuro melhor.

De Vicente Pedro Nolasco  da Cunha (Caldas da Rainha, 1777-Lisboa, 1844), formado em Ciências na Universidade de Coimbra, um liberal amigo de Bocage, que andou emigrado pela Europa e foi o principal redactor e fundador em Londres, em 1811, do jornal literário e político O Investigador português em Inglaterra, vamos apresentar ou transcrever  uma obra sua dada amorosamente à luz, porém anonimamente em Lisboa, em 1837, consagrada a Hygia, a deusa da saúde, e intitulada O Templo de Hygia, ou a saúde publica influida pelos governos, um título muito actual pois todos temos visto a importância das decisões dos governos na saúde dos  seus cidadãos, sobretudo nestes tempos de crises e de medidas de tão díspares intencionalidades. O exemplar é um in-8º de 26 págs., e tem a nota de posse de Faustino de Paiva Sá Nogueira, e foi envolto num papel rosa...

                                        

Publico-o no dia 8 de Março de 2021, no dia da Mulher, pois Hygia é ainda um arquétipo activo para a mulher da natureza, a conhecedora das ervas e mezinhas, a bruxa, feiticeira, meiga ou curadora, ou ainda a pitonisa e a sibila, mas também para a mãe de família, a enfermeira, a médica, a trabalhadora, a lutadora e amante, em suma, a Mulher. 

Com as suas aspirações e ensinamentos, com mantras ou orações, mostrando um conhecimento científico, um discernimento do bem e do mal, e  uma inspiração anímica da harmonia do microcosmo com o macrocosmos segundo os ensinamentos ou a fala de Hygia, a obra é como um  livrinho revelado: 

                                  

                                       

 «Nos quícios d'ouro as bronzeas portas rangem.    

E o tempo se abre consagrado ao Numem 

Custódio da Saúde - Eis já patente

O venerando, excelso Santuário,

Que dos seus mais recônditos arcanos

Nenhum veda a meus olhos. - Corro às aras,

A Deusa me apresento; e com profundo, 

E nobre acatamento assim suplico:

Celeste  Hygia, da Saúde Guarda,

Que não só a mantens, mas que a restauras,

Escuta os votos meus, teu sacro influxo

A mim, e ao meu país benigna outorga. 


     - Sacerdote das Musas, pois que Vate

És também meu Ministro; me responde

A voz do Santuário - Eu te concedo

O que tu pedes justo - Ouve, e publica

Segredos, que a Verdade aqui revela

Aos sinceros mortais, que ouvi-la prezam.

Mas primeiro que tudo advertir deves

Que tempo, e esforço perdes, se pretendes

Moléstias corrigir que têm por causa

Vão saber, sistemática ignorância.

Erros o vão saber somente gera,

Que o lume da Razão jamais dissipa.

Contumaz a Ignorância, e capricho

Todo o socorro enjeita das Ciências.

Os Homens são perversos, porque ignoram

Seus grandes interesses, que a Verdade

Só lhes pode mostrar, pois não desune

O bem particular da geral dita.

Sabe isto o mundo; e de segui-lo foge.

Já disse antigo Vate em grande metro

- Louva-se a probidade, e ela arrefece. -

Porque assim - Vou dizer-te - Atende um pouco.

O mal físico existe - A dor o mostra.

Existe o mal moral - Crimes o atestam.

O mal tem pois duas nascentes certas.

A origem do primeiro examinemos,

E os meios de extingui-lo, ou mitigá-lo.

As causas do segundo investigando

O remédio melhor lhe apresentemos.

Mortal, antes de tudo, olha onde habitas.

Da terra albergue teu, mede as distâncias,

Suas diversas índoles observa.

Nos trópicos calor, frio nos pólos

A tempérie do ar, e as zonas formam.

Que da orgânica vida o curso regem,

Altas montanhas, e profundos vales,

Lentos regatos, caudalosos rios

Campestres plainos, densos arvoredos, 

Eléctrica fluxão, que a chuva, o raio

Dos ares desenvolve, os meteoros.

Dos pólos a magnética torrente,

Vizinhanças do mar, distâncias dele

Tudo influi em teu corpo, e seu tecido

E a sua vária condição produzem».

Acerca da galvanoplastia pré-natal:

«Cumpre portanto não turbar o estado

Da vida incipiente com movimentos

Estranhos, com paixões veementes de alma.

Por isso outrora os Magos do Oriente

As grávidas mulheres entretinham

Com música, e passeios pelo campo,

Com gratas sensações, que as distraiam

De vivas dores, reflexões acerbas...»

Apelo de Hygia à amamentação:

«Tágides belas, Lisbonenses damas,

Eu me dirijo a vós, não por taxar-vos

De falta de ternura - Se de Hygia

Faltais ao melhor culto, aos Céus mais grato

Ao doce emprego de criar um filho,

Culpa vossa não é, culpa é dos vossos

Avós, que a vossa têmpera amoleceram

De um cego luxo pelo falso encanto.-»

E face à dificuldade, apela à solidariedade:

«Se não vos move a simpatia humana

De Hygia o culto vos persuada ao menos.»

Dos malefícios e benefícios das águas e ares: 

«Doutra parte prazeres nos fornece,

Conduzindo as suavíssimas fragrâncias

Das balsâmicas plantas florescentes

Que os sentidos alentam, que os refrescam

Aromas tão somente, que o princípio

Tem acidificante. Exemplo - O Cravo

das flores rei; sua rainha a Rosa.

E do norte o Alecrim; mas não dos cheiros

Em que vem disfarçado o Gás nocivo

Produtor de histerismo, e cefalgia

Qual Jasmim, Mangerona, ou Bergamota,

Alfazema, ou pastilhas odorantes.

Damas Francesas, desterrai perfumes

Que tão caros vendei à insânia alheia;

Do Tejo as Ninfas têm do pátrio rio

Os cristais, que banhar seus membros devem.

De vossos arrebiques não carecem

Para a cultura das nativas graças»

Em seguida avança Hygia, pela voz de Pedro  Nolasco da Cunha, um cavaleiro do Amor e da sabedoria, a ensinar a arte de bem viver, examinando e enaltecendo a música,  a palavra  verdadeira, a democracia e o governo justo das cidades etc., mas, como já vai longo o texto, ficará para uma segunda parte...


 Oremos de novo, ou por fim, à Divindade nesta sua face:

"Celeste  Hygia, da Saúde Guarda,

Que não só a manténs, mas que a restauras,

Escuta os votos meus, teu sacro influxo

                        A mim, e ao meu país benigna outorga."

1 comentário:

José Simões-Ferreira disse...

Bravo, Pedro, Higeias destas, se descobrires mais alguma, força, que o pessoal agradece. 1837... quase dois séculos...