Dara Shikoh, um portador do santo Graal ecuménico.
O
príncipe mogol Dara Shikoh, filho primogénito do imperador Shah Jahan (1592-1666) e da sábia e bela persa Arjumand Banu, ou Mumtaz Mahl (27 Abril 1593 – 17 Junho 1631), nasce a 20 de Março, numa segunda-feira, em 1615, perto de Ajmer, na Índia, então sob o domínio do seu avô o imperador mogol Jahangir, que deixará Terra quando ele tinha 12 anos, tendo até então grande amizade com ele. Teve vários irmãos e irmãs, nestas destacando-se Jahanara Begum, uma mística, muito amiga de Dara Sikon e autora de uma biografia do mestre (na linhagem) de ambos, Abdul Qadir Al Gilani (1078-1166).
Na linha do seu
bisavô Akbar (1542-1605), Dara será um ardente advogado da unidade de Deus e das religiões e vias iniciáticas, e um místico
entusiástico, discípulo dos mestres sufis Miyan Mir (1550-1635, e que já impressionara muito seu avô Jehangir) e Mullah
Shah (na miniatura em baixo), ambos da Ordem Qadria ou Qadiriyya, fundada pelo já referido mestre persa Abdul Qadir Gilani, fraternidade a que pertenceu, tal como a sua irmã, e que davam bastante importância às práticas de oração mantrica, o zikr ou dhikr, a respiração (com associação na expiração a La Illaha, e na inspiração a Illalah), a concentração interior e a audição do silêncio ou som interno, muito cultivada pelos yogis e sufis...
Certamente
tendo como exemplo e impulsão até genética o que o seu bisavô Akbar realizara de diálogos desde 1567 na Idabat Khan, a Casa da Adoração, em Fatepur Shikri, com representantes das várias religiões e os missionários jesuítas vindos de Goa, Dara fê-lo com hindus, jainas
e cristãos, especialmente o padre flamengo Henrique Busée, sendo um ecuménico e sobretudo um pioneiro do comparativismo religioso frutífero internamente.
De facto foi muito pioneiro e profundo o diálogo místico e comparativo de sufismo e yoga realizado entre 1652 e 1653 com o Yogi Baba (ou Bawa) Lal Dayal Bairagi (na miniatura em baixo), e donde brotou um livrinho em 1653, o Mukalima-i-Dara Shikuh wa Baba Lal, de registo de sete encontros fabulosos que tiveram.
E na sua quarta obra Hasanat-ul-Arifin, Dara Shikoh, consagrada só a santos e mestres do Islão, citará um dito bem ecuménico de novo de Bawa Lal Dayal: «Bawa Lal Mandiya é um perfeito Arifs; não vi ninguém na comunidade hindu que seja igual a ele em majestade e firmeza. Ele disse-me: "Em cada comunidade há arifs e seres perfeitos através dos quais Deus partilha o conhecimento libertador ou salvífico",»e que portanto se deveriam respeitar todas asreligiões e comunidades.
Bawa Lal Dayal e o jovem Dara Shikoh. |
Teve também um relacionamento preservado em algumas cartas com um judeu persa Sarmad, que se convertera ao Islão, passando a ser Muhammad Saheed, e que se tornara também um mestre espiritual na Índia.
Do grande amor à sua mulher Nadira Banu Begum, filha do sultão Parvez Mizra (2º filho de Akbar, a quem não sucederá) e ainda sua prima, com quem casou para sempre e unicamente em 1-II-1633 (com descendência), ficou um testemunho preservado na dedicatória do álbum de caligrafias (em que ele era bom executante) e de miniaturas pintadas por artistas persas, mogóis e da Ásia Central escolhidos por ele: «Este álbum foi dado como presente à sua mais íntima e querida amiga a Senhora Nadira Begum pelo príncipe Muhammad Dara Shikoh, filho do Imperador e Victorioso Shah Jahan no ano de 1646». Após algumas peripécias o álbum acabou por ser levado pelos ingleses (como milhares de outras obras de arte e livros) e encontra-se hoje na British Library, em Londres. Contém 68 pinturas de jovens, sufis e eremitas, pássaros e flores, com a preciosidade da caligrafia e assinatura de Dara Shikoh que, tendo sido coberta com ouro, acabou com o tempo por vir ao de cima:
O médico italiano que esteve algumas vezes em Goa, Niccolao Manuci (1638-1717), deixou na sua Storia do Moghor, ao ser médico particular de Shah Jahan e de Dara Shikoh, bastantes dados sobre a época e as grandes almas que eram Shah Jahan e Dara Shikoh, e que liam muito tanto os poetas persas antigos e contemporâneos como os indianos, já que sabiam hindi, conhecendo-se alguns dos nomes dos indianos que mais privaram com eles, tais como Sundara Das, Acharya Kavindra e Chintamani. Dara Shikoh deixou-nos ainda o seu próprio Diwan, antologia de quartetos e ghazals, que andou bastante tempo perdido, e que ainda hoje inspira almas no Caminho, como foi o meu caso em dois poemas que estão neste blogue...
Numa nota autobiográfica sobre o seu avanço no caminho interior, confessa-nos: «Este Dara Shikoh pertence à classe
de devotos que são atraídos naturalmente para Deus, sem a realização de
quaisquer austeridades. Ele veio a conhecer os mistérios da Divindade,
através da graça dos santos e amigos de Deus. Beneficiou da sociedade
desses Mestres, e investigou a verdade dos seus ensinamentos».
Escreveu
algumas obras notáveis de espiritualidade, duas de vidas de santos
sufis, outra de aforismos deles e que já referimos, depois ainda a Bússola da Verdade, de ensinamentos iniciáticos e, finalmente, o Majma' ul-Bahrain, Acerca da Junção dos dois Oceanos, uma das primeiras obras de religiões comparadas, no caso sufismo islâmico e yoga vedanta indiano, que traduzi do inglês e comentei em vídeos no Youtube.
Fez traduzir em persa da espiritualidade indiana o Yogavasisha, a Bhagavad Gita, o Prabodha Chandrodhaya, A Lua Nascente do Conhecimento, de Krishna Misra, por Banvali Das, o Ramayana por Ibn Har Karan e ordenou e coordenou em 1657 a primeira tradução de cinquenta das 108 Upanishads, denominada Sirr-i-Akbar
(O Grande Segredo) para persa, vindo depois a ser traduzida na Índia por
Anquetil-Duperront (1731-1805), para o latim, sendo impressa finalmente em Paris em 1801, tradução que permitiu ao Ocidente conhecer esses textos
tão profundos da espiritualidade indiana, sendo então admirados
e comentados entusiasticamente por Schopenhauer, Schlegel e outros.
A tradução do Yoga Vasistha, um dos ensinamentos mais fortes de Yoga Advaita Vedanta, que ficou denominada em persa Jug Bashist, foi realizada porque Dara Shikoh uma noite sonhou com o rishi (poeta vidente) Vasistha e o avatar Ram Chandra (os dois dialogantes do poema), com Vasistha a pedir a Sri Ram Chandra que abraçasse Dara Shikoh, o que ele fez, pedindo depois Vasistha que Sri Rama desse algum prasad, ou doces abençoados, o que ele ofereceu, comendo-os ou comungando-os Dara. Tratou-se duma clara iniciação yoguica indiana recebida por Dara Shikoh, que sentiu então que deveria traduzir a principal obra do grande e lendário Vasistha.
Na luta pela
sucessão ao trono mogol de Shah Jahan, quando este adoeceu em 1657, e desencadeada pelos irmãos Shah Sahuja e Murad, Dara manteve-se calmo, embora fosse ele o legítimo herdeiro, tal como seu pai queria, mas após algumas escaramuças e movimentações viria a ser derrotado em 30-V-1658, na batalha importante de Samargad, perto de Agra, pelo irmão Aurangzeb, auxiliado por Murad, os quais conquistando Agra, a riquíssima capital, depuseram o pai, tomando o poder Aurangzeb, em 8-VI-1658. Shaj Jahan recuperará a saúde e viverá preso num pequeno palácio com vista para o sublime Taj Mahal até deixar a Terra a 22 de Janeiro de 1666.
Aurangzeb era um ambicioso e criminoso, ortodoxo fanático e mais que cruel, e desde 1752 acusava de infidelidade ao Islão Dara Shikoh devido ao seu interesse no hinduísmo e nos textos de outras religiões, que de facto ele estudava e valorizava. Após mais algumas batalhas, Dara, o seu filho Sipihr Shikoh e duas filhas e os seus fiéis, já em fuga, foram atraiçoados por um chefe afegão Junaid Khan Barozai (Jiwad Khan), que os entregou ao exército de Aurangzeb em 10 de Junho de 1659. Depois de ser humilhado desfilando com grilhetas em Agra, com Jiwad Khan a ser apupado e apedrejado já que povo muito amava Dara, foi assassinado por quatro dos seus esbirros e mutilada a sua cabeça em seguida pelo próprio Aurangzeb, na noite de 30 de Agosto, terminando assim a sua peregrinação como um mártir...
Das páginas mais tristes da história humana. O fanático e logo diabólico Aurangzeb acabará por alienar as simpatias que os imperadores
Akbar, Jahanguir e Shah Jahan tinham conseguido entre os indianos,
proibindo ainda nesse ano de 1659 de se construírem novos templos hindus ou de se repararem ao antigos, e em 1665 entrando mesmo numa violenta destruição de centenas de templos hindus, esmagando com mão de ferro a resistência legítima dos indianos, seja em Mathura, Udaipur, Golkonda, etc, provocando lutas que se prolongaram por anos e anos.
Perseguiu ainda os shia, ou shiitas, nomeadamente nos sultanatos do Decão, por todos estes meios destruindo totalmente o sonho de uma unidade inter-religiosa e abrindo as portas à
futura dominação inglesa. Será só em Fevereiro de 707, com 90 anos, que o fanático e sanguinário Aurangzeb morreu, consta que pelo menos consciente dos milhões de mortes que causara, com o seu extremismo islâmico... Deve estar ainda a sofrer no Purgatório, ou se já fora dele sempre a ter de pedir desculpas a quem o encontra, e consta que mesmo santos mal conseguem orar por tal desgraçado...
Voltemos ao luminoso Dara Shikoh, sob a imagem de ele a dialogar e a meditar em 1635 com os seus dois mestres Miyan Mir e Moula Shad, e oiçamos um extracto do seu livro Acerca da Junção dos Dois Oceanos, que traduzi e li, estando no Youtube:
«Todo aquele que adormece, e vagueia pelo mundo de Malakut (o
mundo subtil ou imaginal), quer esteja consciente dos seus ambientes, ou
inconsciente, faz isso porque a sua alma assume um corpo muito refinado,
que é a exacta contra-parte do corpo físico, com olhos, ouvidos, língua
e todos os órgãos de sentidos e órgãos funcionais internos, sem contudo
ter os órgãos físicos externos de carne e sangue.
Quem quer que tenha o seu coração refinado, e despertou, vê neste mundo subtil ou imagina, Malakut,
formas refinadas e belas, ouve música maravilhosa e come deliciosos
alimentos. Mas aquele cujo coração está carregado de grosseria e não
está desperto, vê formas horrorosas e ouve sons desagradáveis, durante
os seus devaneios no sonho.
Portanto,
ó amigo! Se praticares com diligência e perseverança, os métodos de
meditação descritos mais à frente, a ferrugem do teu coração será
removida, e o espelho da tua alma tornar-se-à brilhante, e verás
reflectido nele as formas dos profetas, santos e anjos».
Aummmm..... Nour....
Saibamos persistir nas nossas orações, contemplações e meditações, para no silêncio ouvirmos as intuições sagrados, para vermos o que do mundo espiritual quiserem revelar-nos no nosso olho espiritual e para entrarmos mais no amor e no coração....
Escrito no começo do ano e início da Primavera, Nowruz de 2021, ano de 1400 na era Persa ou Iraniana.... E relido e melhorado em 2023, para o Nowruz do ano 1402, o equinócio a acontecer às 21.24, do mesmo dia 20...
Tenha e cultive uma Primavera cheia de Ananda, felicidade, na invocação e comunhão espiritual e divina e na melhor Luz e Amor que possa merecer e emanar...
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