domingo, 24 de janeiro de 2021

"O Rosto e a Obra", 10ª parte da entrevista (melhorada) a Pedro Teixeira da Mota por António Paiva.

Eis-nos na décima parte (das talvez 14) da entrevista, primeiro em diálogo presencial e depois ampliada livremente para entrar no livro O Rosto e a Obra, Autores portugueses da Espiritualidade, 12 entrevistas, pelo António Paiva, dado à luz pela Espiral Editora.
                                                     
António Paiva - Apontas para o mundo espiritual e o Ser divino de um modo diferente do que as religiões ou mesmo grupos nos falam. Explica-te um pouco melhor.

Pedro Teixeira da Mota - A partir de experiências e intuições, e em sintonia com a Tradição perene, podemos intuir, sentir, realizar e afirmar que a Divindade é a fonte primordial de tudo e logo da vibração, da Palavra, do Amor e, de certo modo, a principal emissora e sustentadora do Amor no Cosmos, na natureza, nos espíritos e seres humanos, embora tal corrente energética passe depois a estar condicionada pela auto-afirmação e egoísmo de cada ser, o que gera mais conflitos e lutas do que aberturas ao Amor....
Ora no ser humano, sendo a componente afectiva essencial, a palavra será um dos meios onde mais podemos infundir e desenvolver o Amor e assim podemos gerar e transmitir sons e palavras em si luminosas ou sagradas, invocadoras de determinadas qualidades divinas, deidades ou da Divindade. E desta adoração e invocação interior, e realizada audível ou em silêncio, ficamos mais alinhados e recebemos forças para melhor equacionarmos e lidarmos com as tarefas diárias e as suas dificuldades.
Assim o que vamos desenvolvendo já não é uma mera crença num Deus das Escrituras, ou que está sentado no Céu, ou que é ciumento e violento, ou que quer isto e aquilo, mas sim uma vivência anímica e espiritual interna, de sentir, de aspirar e estar ligado ao Deus vivo íntimo, o que se concretiza ainda como graças de visão subtil, de sentimentos, de audição, de inspiração, de presença, ou seja, de Luz, Paz e Amor.
Também as qualidades psíquicas harmoniosas em que nos concentramos ou meditamos nos fazem sintonizar o espírito e o ser Divino e assim uma pessoa pode sentir mais necessidade, atracção ou afinidade com a paz, e usar então o mantra om shanti, shanti, shanti, paz, paz, invocando, cultuando e intensificando a paz em si e à sua volta e, deste modo, acalmando a mente, cérebro, respiração e corpo e podendo então receber, sentir ou comungar com vibrações ou níveis mais elevados, seja de paz, seja do espírito ou do Divino.
Em verdade, estamos todos a trabalhar com o som, a irradiar sons e e a ligar-nos com os mundos subtis e os planos mais elevados através das vibrações e sons, com seus efeitos em nós e no campo unificado de energia consciência e informação que permeia o Cosmos e que foi sentido ou intuído também nesse sentido mais profundo e elevado como a Música das Esferas, exterior e interior, nomeadamente por Pitágoras e os pitagóricos. O que damos ou emanamos, receberemos. Deveríamos pois ser todos mais mantricos e musicais...
Há que reconhecer o grande poder da palavra, do som e da música e como ele cada vez está mais visivelmente em acção na sociedade, ainda que de formas frequentemente desfiguradas e enganadoras, tais como os políticos e pregadores aldrabões, convincentes pantomineiros, como vemos em tantas igrejas e seitas religiosas, ou mesmo em gurus sedutores pelas vozes e doçuras, e que acabam não por impulsionar as pessoas no caminho verdadeiro e divino mas no da ilusão e queda, como os pitagóricos já representaram no seu famoso Y
 
AP – E o poder da poesia? Fala-se tanto que Portugal é um país de poetas e não tanto um país de prosadores. O que pensas de tal?

Pedro Teixeira da Mota – Sim, temos uma tradição poética muito boa e bem antiga, quase que dos primórdios da nacionalidade, com os romanceiros e com as cantigas de amigo e de amor. E depois sucessivos vates, ora líricos, épicos, naturalistas, religiosos e filosóficos deixaram-nos um valioso cancioneiro poético, de tal modo que foi mesmo considerado por Augusto de Santa Rita, em 1916, na revista modernista Exílio, na qual Fernando Pessoa colaborou duplamente, como uma tradição espiritual de rouxinóis, sua toada ou rimas poéticas ensinadas às mães que por sua vez a transmitiam às crianças, quando as cantam ou leem  sobre o berço.
Na realidade a poesia é investida de um poder grande quando é dita a crianças, com suas almas e cérebros bem receptivos, ou quando é acolhida por almas sensíveis, atentas e profundas, em especial quando o que se escreve ou exprime corresponde verdadeiramente a uma realização sentida, anímica ou espiritual.
Todavia há pessoas que podem alinhavar com mais ou menos arte, harmonia ou perfeição formal uma série de palavras, imagens, ideias, aparentemente fortes, belas ou elevadas, mas tal não corresponder a realizações interiores, sentidas e vividas não havendo assim uma verdadeira criação derivada de uma realização interior ou espiritual, o que nem sempre se discerne...
Também se dá o contrário, quando poetas com uma certa realização interior vão cultivar alguns estados depressivos e de niilismo, ou mesmo em estilos faustianos, como por exemplo Antero de Quental, que foi um ser de grande genialidade, líder da sua geração universitária, poeta de alta sensibilidade e inteligência, compondo magníficos poemas, só que vários dos sonetos algo negativos e próximos da morte, do vazio, da desilusão da vida, algo que na realidade na época (e de certo modo sempre) se podia cultivar, sentir, atravessar. 
A correspondência epistolar mantida por ele com muitos amigos, constitui talvez o melhor núcleo que nos ficou ao nível da transmissão do verbo ou palavra, do combate pela justiça e pelo conhecimento, e da amizade, empatia, amor, lucidez e sabedoria, mas também de ironia, tristeza, indignação e desânimo, testemunhando na sua grande alma o que era o ambiente psíquico de Portugal na segunda metade do séc. XIX bem como o poder da poesia e dos ideais assumidos por essa geração moderna coimbrã liderada por ele. Assim, os seus Sonetos continuam a ser justificadamente lidos e estudados, até nos programas do Ensino Secundário, alguns até porque são realmente além de belos e difíceis de compreender, bons nos seus efeitos anímicos. Antero de Quental tem sido um dos espíritos que de certo modo me visitou e eu visito e saúdo com regularidade, levando-me a gerar assim dezenas de textos e vídeos sobre ele no youtube e no blogue.
Como sabemos, terminou a sua peregrinação terrena suicidando-se, para isso contribuindo vários factores e ficando em abertos questões tais, como se foi uma desistência por doença, cansaço e desânimo ou se no acto estava lúcido, determinado e corajoso...
De qualquer modo é natural que quem corta o fio da vida antes de tempo precise de certas energias, para as quais as nossas orações, aspirações e energias elevantes poderão ser coadjuvantes.
Outro caso de poesia com grande e até mais poder mágico e elevante na nossa tradição cultural e espiritual, e igualmente com bastantes laivos de tristeza ou deprimente, foi a de Fernando Pessoa. São às centenas os seus poemas tristes, negativos, de vazio e indiferença. Mas também brilha, além da revolução pagã, franciscana e até com algo de zen de Alberto Caeiro, a notável Mensagem, o poema do Clarim e várias poesias esotéricas e iniciáticas, várias publicadas pela primeira vez por mim em 1989 no livro Poesia Profética, Mágica e Espiritual, e nelas as palavras, rimas e ritmicidades, imagens e forças podem ser mesmo mágicas, despertantes e actuantes na nossa alma, erguendo-se quase que em rituais iluminantes e transformantes, se bem lidas ou sentidas.

AP - E o que te parece o Livro do Desassossego, considerado por alguns como o mais triste do século XX?

Pedro Teixeira da Mota - Sim, o Livro do Desassossego, uma espécie de diário genial de um empregado de escritório com grande capacidade de sentir, analisar, analogizar e filosofar uma teoria de indiferença perante o quotidiano existencial do ser humano comum citadino europeu do início do séc. XX, está cheio de páginas cinzentas, de desânimo, tristeza e indiferença, mas volta e meia as suas vivências interiores são atravessadas por alguma estrela cadente, alguma luz da mónada, como ele próprio diz, que se derrama então pelo seu dia de sombra e pelas páginas transfigurando-as.
Fernando Pessoa estava até consciente de como tal tipo de sensibilidade e de visão passada à escrita era depressiva e negativizante, mas sabia que exprimia estados anímicos das pessoas das quais elas gostavam e portanto ele próprio de certo modo sacrificava-se nisso. Tanto nele como em Antero de Quental há a assunção das dores, frustrações e niilismos que assaltavam tantas almas que não se deixavam limitar pelas aparências, pelo Catolicismo ou pelo Materialismo e que não encontravam ainda suficientemente a Luz e o Amor, tanto no seu interior como nas suas relações, no exterior, na sociedade.

António Paiva - Então parece-te que eles usaram o seu verbo e palavra, talvez não dos melhores modos, mas no que eles conseguiram no meio das limitações sociais e ambientais da época?

Pedro Teixeira da Mota - Sim, e isso é mesmo afirmado por Antero, quando diz já perto do fim da sua vida, depois de ter renunciado a escrever mais poesia, que os versos que ele gostaria de fazer, harmoniosos espiritualmente, seriam outros que os viriam a redigir pois ele já não sentia nem a inspiração, musa ou forças para tal.

                                                   
Podemos considerar Fernando Pessoa o elo seguinte, o seu continuador nesta linha espiritual, e ele próprio o reconheceu por mais de uma vez por escrito (e traduzindo bastantes sonetos de Antero para inglês), sofrendo limitadoramente as condições algo pobres de vida e as forças religiosas e políticas ambientais. No último ano da sua vida, depois da instauração das directrizes de censura de Salazar, afirmou que não escreveria mais. Não se suicidou mas o seu consumo de álcool tinha um pouco disso, talvez a sua técnica de excesso compensatória, e assim bateram as asas dois grandes seres com 49 e 47 anos apenas... Uma pena!

António Paiva - Que ensinamentos em relação à palavra poderemos então nós recolher de tais exemplos, quase sacrificiais?

Pedro Teixeira da Mota - Talvez valorizar mais o uso da palavra correctamente, responsavelmente, magicamente, seja para nos harmonizarmos e realizarmos espiritualmente, seja para ajudar e estimular os outros, curando e harmonizando, não nos deixando ficar demasiado no negativo e no triste, nem demasiado nas críticas, ainda que justas e necessárias, nem também em mistificações e sectarismos como acontece em tantos grupos esotéricos ou ocultistas, em geral sofrendo uma certa lavagem ao cérebro inibidora do que é dissidente ou contrário.
Esta consciência da sacralidade da palavra, certamente difícil de ser mantida numa sociedade em que predomina a superficialidade, a inutilidade, a distracção, a mentira e a manipulação em tanto do que se ouve e escreve, é fundamental de ser constantemente recuperada e para isso servindo tanto o nosso repúdio das banhas da cobra esotéricas, políticas ou consumistas como também os nossos recolhimentos e meditações, silêncios e palavras proferidas sempre com plenitude ou, mais simplesmente, repetirmos mantras e orações quando sentirmos que é oportuno, bom.
Será pois a sós, em orações e meditações ou em diálogos com um ou dois ou, como se diz, reunidos no nome ou palavra da Verdade e do Amor, que poderemos melhor preservar o valor operativo da palavra. E assim chegarmos a tocar, abrir, estimular até a pessoa com quem dialogamos, harmonizando-a e clarificando-a em certa zona psíquica ou centro de forças, com as qualidades e níveis a que estejam ligados.
Mas este direcionamento sonoro ou psíquico intencional ou mesmo do olhar para os chakras é rarissimamente praticado e mais escassamente ainda se consegue observar e contemplar plenamente, em geral porque para tal acontecer seria necessário que se encontrem tais dois seres e que, estando em amor dialogante, sejam mesmo investidos de energias espirituais ou de Amor divino bem fortes.
Dentro desta magia da palavra, e do seu Talent de bien faire, como queria o Infante D. Henrique e mais tarde Fernando Pessoa, deveríamos ainda apurar a transmissão dos sons justos, não só para os humanos, mestres e anjos que permitem a comunicação com aves e animais, pois estes recebem, sentem e entendem à sua maneira, nomeadamente pela qualidade do som e intencionalidade com que lhes falamos. Tudo isto são subtilezas que devemos ir trabalhando...

Sem comentários: