terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Cartas de Antero de Quental a Germano Meireles, e o estoicismo, a paciência, a fé, a voz íntima e a Providência.

 Numa carta enviada de Lisboa, em 24 de Fevereiro de 1875, a Germano Vieira Meireles (1842 a 3-XII-1877),  numa tentativa de tocar no amigo íntimo e condiscípulo em Coimbra, então advogado e jornalista em Penafiel, onde com 22 anos de idade co-fundara (com o pai do comum amigo, Joaquim de Araújo), o famoso jornal O Século XIX em que tantos grandes poetas colaboraram, Antero de Quental partilha a sua visão do problema da dor, da paciência, da fé e da voz da consciência.

                                              
Já uns meses antes, a 24 de Outubro de 1874, realçara a grande ciência da paciência em outra carta a Germano Vieira Meireles, congratulando-se por ele estar a passar melhor desde que deixara a Foz do Douro: «sempre previ isso, porque a humidade é nos hostil a nós outros nervosos. Cá estou eu agora, com o detestável tempo que aqui tem durado há quinze dias, num estado de irritação nervosa insuportável. (...) A paciência (agora é que o tenha chegado a conhecer) é a chave da vida moral, a última palavra da ciência da vida. Quem chegar a alcançá-la, sem ao mesmo tempo cair na inércia e na estupidez, omne solvit punctum!». 

Oiçamos então Antero de Quental, em Fevereiro 1875, com uma fotografia desse ano, onde de facto parece mais determinado e forte que Germano Vieira Meireles.            

«Caro Germano
Saúdo o amigo! Que fazes e, sobretudo, como vais? Estará ai o Alberto, que, segundo me escreveu, faz a tenção de ir brevemente ao Porto? Se está, saúda-o por mim. Eu cá estou. Sempre na mesma: mas à doença impassível oponho uma paciência que cada vez mais luta com ela com mais vantagem. Por isso estou contente. Abençoada doença, se fizer de mim o homem impassível dos Estóicos, o Santo de Marco Aurélio. Não digo isto brincando, e para mim o livro das Máximas de Epicteto é um dos livros mais sérios que têm sido escritos. Porque não o lês? Mas talvez fora isso, infelizmente, inútil, porque não tens a Fé. A Fé não é só património do Cristão, há também a Fé da Filosofia idealista que pelo menos é tão boa. Mas tu és positivista, meu pobre Germano. Pobre Filosofia essa, e fraco apoio! Quem me dera que tu pudesses crer! Esta orgulhosa razão é preciso humilhá-la num acto de sentimento íntimo: é preciso também chorar, e amar aquilo mesmo que nos faz chorar. Então ouve-se em nós uma voz que não é a da razão, menos forte ou sonora, mas mais pura e sobretudo mais consoladora. Isto tenho feito e faço, e só desejo que o faças tu também. Pensa nisto. Se achares esta homilia muito lírica, considera que escrevo isto às seis da manhã, começando a amanhecer, e tendo eu perdido a noite – perdida para o sono, mas aproveitada para muitos pensamentos.
Adeus, querido amigo. Dá notícias ao teu do coração,
Antero.»

Realcemos apenas, primeiro, como Antero de Quental aceita as provações e dores que a sua misteriosa doença lhe provocam, pois está a sentir a sua vontade de perseverar confiante, ou seja, a dita paciência a crescer em si, desvalorizando as dores, o que significa no fundo ter Fé, a qual não é só cristã, mas do idealista, de quem acredita e ama o bem e a verdade e, aceitando ou querendo tal luta, sente e desenvolve energias para as suas demandas e batalhas.                                                                             Segundo, o apelo ao silêncio e à audição da voz interna do Espírito, algo que Antero de Quental trabalhou sob várias designações e recomendou muito em cartas a amigos, destacando-se entre eles Fernando Leal, como já tratei num artigo. E o que teria ele dito em diálogos, olhares, silêncios? 

Noutra carta a Germano, de 16 de Setembro de 1876 Antero volta, talvez algo paternalmente, ou em compaixão, à carga sobre a Fé, que ele correlaciona com a Providência, depois de justificar as poucas cartas que escreve: «a debilidade nervosa, paralisia, ou o que quer que é, invadiu-me os braços, e isto, complicado com o que já havia, obriga-me à imobilidade. De sorte que perco a esperança de poder ir aí ainda este ano (...) Paciência. A tua última carta era bem triste, meu pobre amigo. Quem me dera ver-te numa disposição plácida. A imaginação faz mal muitas vezes: é preciso amortecê-la, porque é ela que nos estimula os nossos pensamentos de revolta e nos desespera. Também entristece muito o espectáculo do mundo, como ele vai. O que convém é considerar que nada sucede no mundo, ainda o mal, sem uma razão suficiente, e que todas estas razões suficientes, encontrando-se numa região aonde não atinge o nosso entendimento, formam a ordem moral do Universo, ou, como outros dizem, a Providência. Mas tu não crês nisto, infelizmente! e perdoa-me se te impacientam estas sentimentalidades (...) »

Talvez em verdade Antero tenha sido algo sentimentalmente optimista, crendo que o mal tem sempre uma razão suficiente e que ela não só faz parte ou forma a ordem moral do Universo, como se pode incluir na Providência ou como Providência. Eu, por exemplo, não entendo assim: há o mal de clara oposição à ordem Moral do Universo e contra a Providência, divina ou cósmica. Há seres e entidades maléficas que estão contra a ordem moral do Universo, contra o Amor, o Bem, e obrigam tal Ordem ou Dharma a muitas acções e reacções que tentam compensar ou diminuir esse mal, esses seres maléficos, numa batalha que se opera tanto no universo físico visível, o tal "espectáculo do mundo entristecedor" [tanto na época como agora no séc. XXI], como também nos mundos invisíveis e subtis, todos afectados pelo mal, o egoísmo, o ódio. É só nos mundos espirituais que podemos verdadeiramente sentir plenamente a Ordem e Harmonia espiritual e divina. 

Haverá ainda algumas cartas trocadas entre os dois amigos, duas delas com Antero ainda doutrinando, amainando, pacificando Germano, tal a de Maio de 1877, apoiando-se até na "darwinística" bestialidade do ser humano: «E tu como vais? Imagino que mal, pelo menos de espírito, pois essa ferida é incurável. Meu pobre Germano! Irritas-te muito com os homens e suas misérias, para poderes conseguir a Paz. A comédia humana é ao mesmo tempo uma comédia divina, por isso não nos deve merecer indignação. Os Homens são ainda assim o melhor que podem ser, atenta a sua natureza bestial. O Darwinismo é uma grande fonte de consolação filosófica». 

 Também na penúltima carta, escrita das famosas termas francesas da Bellevue, onde Antero tratava os seus nervos com hidroterapia a conselho de Charcot, de 26-VIII-187, cerca de três meses antes de Germano morrer subitamente de um aneurisma aos 35 anos (e vindo Antero a acolher e educar as duas filhas, Beatriz e Albertina) encontramos de novo os ensinamentos de despreocupação, paciência e higiene psico-somática: «Dizes que passas agora melhor, mas sempre receoso dos funestos ataques nevrálgicos [Provavelmente já um anúncio de morte pressentido por Germano..]. Mas não convirá pôr de banda esses receios? O estado moral, a imaginação têm mais influência do que se cuida nos fenómenos corporais. Recear o mal pode às vezes ser chamar por ele, especialmente nos temperamentos nervosos. (...) A hidroterapia por ora não tem feito maravilhas. Os mestres dizem-me que se precisa bastante tempo e não posso senão dar-lhes razão; por isso espero paciente, senão esperançado. (...)»

 Acolhamos estes ensinamentos como testamento de uma amizade que por razões de distâncias se enfraquecera mas que tivera píncaros elevados na fraternidade idealista e revolucionária estudantil coimbrã,  que levaram mesmo Antero a dedicar-lhe em 1865 as Odes Modernas, com grande fraternidade, idealismo e amor, como podemos ver, ler e sentir:

                               
Escrevi ainda um artigo, com uma gravação, sobre as tão idealistas, revolucionárias e belas Odes Modernas, a que pode ter acesso em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2018/04/antero-de-quental-as-odes-modernas-e.html
Paz, paciência e, com vigilância e luta contra o mal, mais abertura intuitiva à Providência divina, harmonizadora, curativa, libertadora... Luz, Amor e força para Germano Vieira Meireles e Antero de Quental....

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