Eis-nos na décima primeira parte (das 12) da entrevista, primeiro em diálogo presencial e depois ampliada livremente para entrar no livro O Rosto e a Obra, Autores portugueses da Espiritualidade, 12 entrevistas, pelo António Paiva, dado à luz pela Espiral Editora.
António Paiva – Mas Pedro, voltando aos excessos, não será também possível que na ferida resida o segredo da cura? De que na exaltação da dor eu me abra para a cura?António Paiva – Vamos pegar nisso e colocar a peregrinação, não só a interior mas também a exterior, que leva à movimentação do corpo, como um caso em que há uma prova imposta ao corpo, com estados de sofrimento físico, de exaustão. E o que pode resultar dessa ferida e dessa exaustão. Tu que já fizestes algumas peregrinações que dizes?
António Paiva – A Serra do Teixeira de Pascoaes, o Marão!
Pedro Teixeira da Mota – Sim, a serra do Teixeira de Pascoaes, o Marão que eu através da Dalila Pereira da Costa conheci bem, pelo lado da encosta de Fontes, da zona que vem do para mim mítico rio Douro, pois vivido na infância, nas Caldas do Moledo, em todo o seu esplendor de um curso poderoso, ora cinzento, ora azul e verde, ora dourado e bordejando as suas margens com frescura, brisas, peixes, barcos, sons...
A Dalila foi uma escritora e poetisa com grande sensibilidade mística e, ainda que com um balizamento católico por vezes condicionador, muito aberta ao paganismo, que ela estudou procurando discernir as suas conexões e continuidades no Catolicismo, valorizando sobretudo o Princípio Feminino Divino, cósmico e telúrico, tanto presente no xamanismo, como nos greco-romanos, celtas e lusitanos, como no culto mariano, e dando disso bons testemunhos em vários dos seus livros, tal o Da Serpente à Imaculada, e excelentemente no seu último, As margens sacralizadas do Douro através de vários cultos.
Pouco depois de ter vindo da Índia, onde estivera um ano, vivendo perto de Guimarães, fui visitá-la por indicação do Agostinho da Silva e nasceu uma amizade duradoura, com muitos encontros e diálogos na sua casa na Av. 5 de Outubro, no Porto. E como ela tinha algumas propriedades no Douro, ofereceu-me a possibilidade de ficar em pequenas casinhas sem electricidade nem água, a não ser da fonte próxima. Aí ficava uns 15 dias ou mais, sempre em Agosto, quando fazia anos e por ser a época de férias em que não ensinava Yoga no restaurante Suribachi, no Porto, o que me permitiu fazer várias subidas peregrinantes à Serra, registando em pequenos cadernos de bolso o que ia sentindo ou realizando, e assim de algum modo, reflectindo a vibração ambiental e as analogias interiores, os sons e orações da peregrinação num texto que as acolhia, fixava e perenizava. Espero um dia publicar algumas páginas de tais diários.
Mas lancei-me também em outras peregrinações, seja na Europa, tal a do monde Athos, seja sobretudo na Índia onde fui de ashram em ashram e indo até às nascentes do rio Ganges, em Kedarnath nos Himalaias, com dificuldades, embora tivesse chegado lá perto de autocarro.
Também quando deixando por uma semana Madras por Arunachala, a fim de conhecer e meditar no ashram de Ramana Maharishi, subi descalço, sob um calor forte, essa montanha tão sacralizada de Arunachala, onde ele fizera as suas meditações e vivera em grutas. Foi uma ascese purificadora que pode ter contribuído para os bons resultados obtidos quando meditei na gruta dele.
Subi também ao Monte Fuji no Japão, no que foi talvez a experiência mais dura de sempre, com cerca de uma hora mesmo nas últimas de forças, mas consegui erguer-me do pouso onde parara encharcado de suor e gelado e começar a caminhar, como que ordenado pelo meu eu espiritual, e chegar ao seu cimo de 3.777. Depois de fazer as minhas orações no santuário e de meditar lancei na cratera vulcânica alguns cristais do Gerês, como este que aqui tenho, para irradiar a energia de Portugal e pô-la a comungar com os Kami, que são as entidades espirituais, seja espíritos que viveram na terra, seja divindades dos mundos elevados e que têm ali a sua montanha mais sagrada e que quem contempla ou medita pode com alguma graça sentir e ver.
Pedro Teixeira da Mota – Sim, realizei a peregrinação do Caminho de Santiago, sem dúvida sentindo-a bastante iniciática. Vim da fronteira da França-Espanha, de Roncesvales até Compostela, cerca de 750 kms em 28 dias, e passei por muitas situações, locais, vivências bem enriquecedoras, seja com pessoas, igrejas, natureza, meditações, esforços, intuições e escritas. Certamente há quem sofra mais, menos, ou nada, tudo varia de acordo com a Fortuna e a Providência divina, e pelo karma das pessoas e ainda o modo como a nossa vontade e intencionalidade reagimos às circunstâncias e dificuldades.
Este teste do caminho e da nossa capacidade de transmutar é importante. Se uma pessoa consegue sentir a dor e aceitá-la e entrar nela conscientemente, ela pode dissolver-se nos seus aspectos que nos contraem e nos atemorizam. Perante o aspecto, aparentemente e na realidade, limitativo da dor, ao se invocar e introduzir as forças subtis dos mundos espirituais ficamos mais fortes e desenvolvemos o corpo psico-espiritual, o nosso corpo de luz.
Tal como a de sentirmos que estamos a dar os nossos passos num caminho que liga a terra e o céu ao som de um espécie de tambor gerado pelos passos das centenas ou milhares de pessoas que estão fazer naquele mesmo momento o Caminho, e que tem em si e sobre si os milhões de almas que fizeram ou contribuíram para o Caminho e com quem de alguns modos comungamos, por vezes sentindo a presença ou os sinais das entidades invisíveis ou celestiais que nos podem visitar ou abençoar, outras vezes simplesmente nos maravilharmos com um rio, uma árvore, uma paisagem, um abrigo ou capela erguida por um construtor ou devoto...
António Paiva – Há então sinais que por vezes se tornam visíveis numa parte do caminho.
Pedro Teixeira da Mota – Exactamente, sobretudo para quem medita mais demoradamente, pois a maior parte das pessoas não meditam e realizam pouco a peregrinação como uma entrega e demanda espiritual. Eu era sempre das primeiras pessoas a levantar nas camaratas ou dormitórios, onde estavam por vezes cerca de cinquenta pessoas. Só ou com mais uma ou duas pessoas éramos os primeiros a sair, ainda à luz das estrelas, mas quando chegava a altura do nascer do Sol eu detinha-me para meditar e não via mais ninguém nessa orientação. Depois, uma ou duas pessoas com quem conversei começaram também a meditar e por vezes fizemo-lo em conjunto.
António Paiva - Intenção ou dedicatória de uma peregrinação, tal como quando se faz um voto e se o vai cumprir nas nossas peregrinações domésticas?
Pedro Teixeira da Mota- Sim, vem de ex-voto, de voto, de dedicação, acto de graças para se cumprir a promessa feita, se um pedido fosse satisfeito, ou por intenção de alguém que falecera. Só que, quando falo das dedicatórias nas peregrinações, entendo o realizá-las com uma intenção: faço esta peregrinação com o voto que as energias luminosas que eu porei em acção, nomeadamente através de rezas e asceses, serão pelo meu antepassado que já está no além. Ou dedico os meus esforços para obter mais certeza se a Divindade tem para mim ou não uma certa forma ou face determinada. Ou se existem ou não os anjos, em especial os da guarda. Ou se me devo unir a certa pessoa ou não, etc.
Cada um de nós ao iniciar uma peregrinação pode escolher um pedido, uma bênção do alto e se trilharmos o caminho luminosamente a resposta vem, talvez no ponto mais difícil e mais alto do Caminho, ou quando meditamos mais tempo, e recebemos então os sinais ou esclarecimentos e alegramo-nos e fortalecemo-nos espiritualmente.
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