segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

"O Rosto e a Obra", 11ª parte da entrevista (melhorada) a Pedro Teixeira da Mota por António Paiva. O caminho de Santiago...

 Eis-nos na décima primeira parte (das 12) da entrevista, primeiro em diálogo presencial e depois ampliada livremente para entrar no livro O Rosto e a Obra, Autores portugueses da Espiritualidade, 12 entrevistas, pelo António Paiva, dado à luz pela Espiral Editora.

António Paiva – Mas Pedro, voltando aos excessos, não será também possível que na ferida resida o segredo da cura? De que na exaltação da dor eu me abra para a cura?

Pedro Teixeira da Mota – Sim, em certos casos, mas em outros não. Frequentemente as pessoas acabam por enfraquecer-se e ficar muito na ferida quando deviam curá-la, vencê-la, ultrapassá-la e mesmo realizarem mais a sua dimensão espiritual que está para além da dor, algo certamente difícil mas que todos os que já suportaram dores muito fortes de algum modo vivenciaram, em especial durante as meditações que nesses momentos conseguiram fazer, e nas quais a dor se esfuma, diminui ou é melhor suportada. A dor e o sofrimento existem para serem compreendidos nas suas causas e vencidos, transmutados nos seus vários níveis.

António Paiva – Vamos pegar nisso e colocar a peregrinação, não só a interior mas também a exterior, que leva à movimentação do corpo, como um caso em que há uma prova imposta ao corpo, com estados de sofrimento físico, de exaustão. E o que pode resultar dessa ferida e dessa exaustão. Tu que já fizestes algumas peregrinações que dizes? 
 
 Pedro Teixeira da Mota – Sim. Já fiz várias peregrinações em alguns países, montes e montanhas, algumas delas difíceis ou desafiantes, nomeadamente no Marão ou no Gerês transmontano, tal como quando começa a chover ou tomba uma neblina densa e uma pessoa cai ou rasga-se nas silvas e arbustos, ou fica ensopada, ou perde-se e apesar de tudo tem de manter a sua calma algo estóica e a sua invocação das melhores correntes telúricas e espirituais sobre si. Outras vezes é apenas a dificuldade de algumas partes do caminho que aguça o nosso sentido espiritual e de ser que está a ligar o céu e a terra, e como eu digo nessas alturas montanhosas: caminhar com mil olhos nos pés...

António Paiva – A Serra do Teixeira de Pascoaes, o Marão!

Pedro Teixeira da Mota  – Sim, a serra do Teixeira de Pascoaes, o Marão que eu através da Dalila Pereira da Costa conheci bem, pelo lado da encosta de Fontes, da zona que vem do para mim mítico rio Douro, pois vivido na infância, nas Caldas do Moledo, em todo o seu esplendor de um curso poderoso, ora cinzento, ora azul e verde, ora dourado e bordejando as suas margens com frescura, brisas, peixes, barcos, sons...
A Dalila foi uma escritora e poetisa com grande sensibilidade mística e, ainda que com um balizamento católico por vezes condicionador, muito aberta ao paganismo, que ela estudou procurando discernir as suas conexões e continuidades no Catolicismo, valorizando sobretudo o Princípio Feminino Divino, cósmico e telúrico, tanto presente no xamanismo, como nos greco-romanos, celtas e lusitanos, como no culto mariano, e dando disso bons testemunhos em vários dos seus livros, tal o Da Serpente à Imaculada, e excelentemente no seu último, As margens sacralizadas do Douro através de vários cultos.
Pouco depois de ter vindo da Índia, onde estivera um ano, vivendo perto de Guimarães, fui visitá-la por indicação do Agostinho da Silva e nasceu uma amizade duradoura, com muitos encontros e diálogos na sua casa na Av. 5 de Outubro, no Porto. E como ela tinha algumas propriedades no Douro, ofereceu-me a possibilidade de ficar em pequenas casinhas sem electricidade nem água, a não ser da fonte próxima. Aí ficava uns 15 dias ou mais, sempre em Agosto, quando fazia anos e por ser a época de férias em que não ensinava Yoga no restaurante Suribachi, no Porto, o que me permitiu fazer várias subidas peregrinantes à Serra, registando em pequenos cadernos de bolso o que ia sentindo ou realizando, e assim de algum modo, reflectindo a vibração ambiental e as analogias interiores, os sons e orações da peregrinação num texto que as acolhia, fixava e perenizava. Espero um dia publicar algumas páginas de tais diários.
Mas lancei-me também em outras peregrinações, seja na Europa, tal a do monde Athos, seja sobretudo na Índia onde fui de ashram em ashram e indo até às nascentes do rio Ganges, em Kedarnath nos Himalaias, com dificuldades, embora tivesse chegado lá perto de autocarro.
Também quando deixando por uma semana Madras por Arunachala, a fim de conhecer e meditar no ashram de Ramana Maharishi, subi descalço, sob um calor forte,  essa montanha tão sacralizada de Arunachala, onde ele fizera as suas meditações e vivera em grutas. Foi uma ascese purificadora que pode ter contribuído para os bons resultados obtidos quando meditei na gruta dele.
Subi também ao Monte Fuji no Japão, no que foi talvez a experiência mais dura de sempre, com cerca de uma hora mesmo nas últimas de forças, mas consegui erguer-me do pouso onde parara encharcado de suor e gelado e começar a caminhar, como que ordenado pelo meu eu espiritual, e chegar ao seu cimo de 3.777. Depois de fazer as minhas orações no santuário e de meditar lancei na cratera vulcânica alguns cristais do Gerês, como este que aqui tenho, para irradiar a energia de Portugal e pô-la a comungar com os Kami, que são as entidades espirituais, seja espíritos que viveram na terra, seja divindades dos mundos elevados e que têm ali a sua montanha mais sagrada e que quem contempla ou medita pode com alguma graça sentir e ver. 
 
 A peregrinação tem esse desafio de sabermos utilizar a exaltação e a ascese com conta, peso e medida. Todavia, por vezes temos de chegar mesmo aos limites, pois se vamos só pelo mediano podemos não conseguir chegar à meta ou nem desenvolver forças suficientes para nos inspirarmos. Ora nesta subida sozinho ao sagrado Fuji, e praticamente sem nada nem qualquer preparação, após a exaltação inicial em que ajudei pessoas e avancei demasiado rápido, estive mesmo a dado passo na mó da morte, encharcado, enregelado e sem forças, mas recolhendo-me, observando-me, aceitando a morte, meditando e seguindo a direcção superior em mim, consegui vencer as dificuldades corporais e chegar ao cimo quase ao nascer do sol. E depois nas meditações e contemplações ter os sinais abençoadores dos Kami.

António Paiva - Sei que fizeste o Caminho de Santiago, o que nos podes dizer de tal experiência?

Pedro Teixeira da Mota – Sim, realizei a peregrinação do Caminho de Santiago, sem dúvida sentindo-a bastante iniciática. Vim da fronteira da França-Espanha, de Roncesvales até Compostela, cerca de 750 kms em 28 dias, e passei por muitas situações, locais, vivências bem enriquecedoras, seja com pessoas, igrejas, natureza, meditações, esforços, intuições e escritas. Certamente há quem sofra mais, menos, ou nada, tudo varia de acordo com a Fortuna e a Providência divina, e pelo karma das pessoas e ainda o modo como a nossa vontade e intencionalidade reagimos às circunstâncias e dificuldades.
Se por exemplo uma pessoa caminhar demasiado num dia, pode provocar um certo tipo de lesão muscular forte. No dia seguinte ao levantar-nos temos a opção de ficar a tratar dela ou então continuarmos o Caminho. Se a pessoa tem a noção de ascese, de um certo estoicismo, lança-se ao caminho e consegue superar a dor. É nesse sentido em que a própria dor se torna, como tu referiste, factor de evolução. Comigo isso sucedeu, quanto caminhei mais de 30 kms seguidos num dia e, em parte, alguns sobre alcatrão. Mas a dor foi superada e transmutou-se a tensão e desgaste, seja pelo repouso nocturno, seja pela oração, seja pelo caminhar consciente e em oração frequente no dia seguinte.
Este teste do caminho e da nossa capacidade de transmutar é importante. Se uma pessoa consegue sentir a dor e aceitá-la e entrar nela conscientemente, ela pode dissolver-se nos seus aspectos que nos contraem e nos atemorizam. Perante o aspecto, aparentemente e na realidade, limitativo da dor, ao se invocar e introduzir as forças subtis dos mundos espirituais ficamos mais fortes e desenvolvemos o corpo psico-espiritual, o nosso corpo de luz. 
Podemos dizer que na peregrinação do Caminho de Santiago estamos a talhar ou a esculpir, como se diz na Tradição Espiritual Portuguesa, a nossa alma durante semanas numa relação única com a Natureza e com nós próprios, a sós, em silêncio, com os sons da natureza e das aves, e os pés na terra e a cabeça no céu. Sentimos porém que apesar de sós, mesmo que dialogando com um ou outro peregrino mais afim, há uma entrada numa egrégora energética que não só é telúrica, de cada terra que pisamos e percorremos, mas também proveniente tanto dos milhares ou milhões de pessoas que foram trilhando o Caminho, “El Camino”, como dos imensos pontos sagrados com que nos vamos cruzando ou inter-relacionando, sejam pedras, árvores, rios, pontes, templos, padrões, aves. Foi uma intuição muito sentida...
A peregrinação, despindo-nos de muitas artificialidades e reduzindo-nos ao homo viator, horas e horas, desperta tanto a nossa sensibilidade unitiva com a Natureza, como verticalmente com o mundo espiritual, sobretudo se durante e depois da caminhada fazemos oração, meditação ou mesmo participamos em missas que padres ou conventos especiais oferecem aos peregrinos, por vezes em cerimónias, cantos, diálogos ou contactos sublimes de doçura e fraternidade mística. 
A nossa identidade espiritual, com o decorrer dos quilómetros da caminhada e os esforços e asceses que vamos fazendo, vem mais ao de cima, ganha forças sobre a nossa personalidade e vida e como que cavalga o nosso corpo, fazendo-nos vivenciar uma felicidade subtil resultante de caminharmos livres, comungantes da natureza e investidos de estados ou forças espirituais afins das divinas. 
 
        Quando entramos na Galiza e seus bosques sentimo-nos mesmo em casa...
Sentimo-nos verdadeiramente num vasto campo em que tudo está ligado entre si subtilmente e nesse campo geomórfico e psicomórfico (ou seja, em que as formas e seres são modelados pelas energias naturais e as psíquicas) em que estamos e nos expandimos, podemos vivenciar experiências espirituais significativas, fortes.
Tal como a de sentirmos que estamos a dar os nossos passos num caminho que liga a terra e o céu ao som de um espécie de tambor gerado pelos passos das centenas ou milhares de pessoas que estão fazer naquele mesmo momento o Caminho, e que tem em si e sobre si os milhões de almas que fizeram ou contribuíram para o Caminho e com quem de alguns modos comungamos, por vezes sentindo a presença ou os sinais das entidades invisíveis ou celestiais que nos podem visitar ou abençoar, outras vezes simplesmente nos maravilharmos com um rio, uma árvore, uma paisagem, um abrigo ou capela erguida por um construtor ou devoto... 

António Paiva – Há então sinais que por vezes se tornam visíveis numa parte do caminho.

Pedro Teixeira da Mota – Exactamente, sobretudo para quem medita mais demoradamente, pois a maior parte das pessoas não meditam e realizam pouco a peregrinação como uma entrega e demanda espiritual. Eu era sempre das primeiras pessoas a levantar nas camaratas ou dormitórios, onde estavam por vezes cerca de cinquenta pessoas. Só ou com mais uma ou duas pessoas éramos os primeiros a sair, ainda à luz das estrelas, mas quando chegava a altura do nascer do Sol eu detinha-me para meditar e não via mais ninguém nessa orientação. Depois, uma ou duas pessoas com quem conversei começaram também a meditar e por vezes fizemo-lo em conjunto. 
Constatei também que certas igrejas românicas, fabulosas na sua arquitectura, simbolismo, ambiente e localização, e logo com uma energia bem forte, não atraíam as pessoas, que passavam ao lado sem aproveitarem para comungar com as energias telúricas do local, dos construtores e das mensagens deixadas nos capitéis e siglas, seja ainda dos santos, mestres e anjos invocados nelas e, por fim, da Divindade. 
Portanto, a interacção com os pontos de poder do Caminho, se é bem realizada e mais demoradamente, pode ocasionar experiências fortes, intuições e abertura do olho espiritual. A peregrinação serve verdadeiramente para uma pessoa ligar-se mais com o mundo celestial, irradiar melhores energias para antepassados, ou por quem rezar, e muitas vezes conseguir a intenção à qual pode ter dedicado a peregrinação.

António Paiva - Intenção ou dedicatória de uma peregrinação, tal como quando se faz um voto e se o vai cumprir nas nossas peregrinações domésticas?

Pedro Teixeira da Mota- Sim, vem de ex-voto, de voto, de dedicação, acto de graças para se cumprir a promessa feita, se um pedido fosse satisfeito, ou por intenção de alguém que falecera. Só que, quando falo das dedicatórias nas peregrinações, entendo o realizá-las com uma intenção: faço esta peregrinação com o voto que as energias luminosas que eu porei em acção, nomeadamente através de rezas e asceses, serão pelo meu antepassado que já está no além. Ou dedico os meus esforços para obter mais certeza se a Divindade tem para mim ou não uma certa forma ou face determinada. Ou se existem ou não os anjos, em especial os da guarda. Ou se me devo unir a certa pessoa ou não, etc.
Cada um de nós ao iniciar uma peregrinação pode escolher um pedido, uma bênção do alto e se trilharmos o caminho luminosamente a resposta vem, talvez no ponto mais difícil e mais alto do Caminho, ou quando meditamos mais tempo, e recebemos então os sinais ou esclarecimentos e alegramo-nos e fortalecemo-nos espiritualmente.
 

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