quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Bernardo Trindade encerra a famosa livraria alfarrabista do nº 44 da rua do Alecrim, em Lisboa..

Terminou hoje, 13 de Janeiro de 2021, a sua missão no centro de Lisboa mais uma livraria alfarrabista, a Campos Trindade, batida pelos ventos contrários da história e mais concretamente o preço absurdamente elevado e inegociado da renda e o actual lockdown, ou seja, as restrições confinantes geradas pela política portuguesa face ao famigerado Covid, que tanto pequeno empreendimento ou comércio tem destruído, pois poderia estar aberta ainda até ao fim do mês...

Flores dispostas por entre o gradeamento da ampla janela-montra e amigos foram passando na celebração da despedida e entre eles estive eu (encontrando o Raúl Perez e a Teresa Gonçalves Lobo, e a Cláudia Lopes e a Ana Mateus) para manifestar ao Bernardo Trindade a solidariedade de coração que nos une como amigos e no amor aos livros e à sua sabedoria e beleza.

                

Fundada por Tarcísio Trindade (1931-2011) há mais de 40 anos, continuada pelo seu filho Bernardo, por ela passaram grandes bibliotecas e livros, grandes pessoas e coleccionadores, ou gente humilde e necessitada, ou estrangeiros encantados, o que daria para um filme de milhares de horas valiosas, ora de imagens de livros ora de conversas e discussões, alegrias e tristezas que a funda livraria, mas não larga, acolheu com amor durante anos e anos, com uma cadeira-sofá mesmo ao fundo, ao lado da secretária do Tarcísio ou do Bernardo, posta  ao dispor de algumas sumidades mais idosas que se sentavam e de algum modo "catedrizavam", discorriam e ensinavam, em vozes por vezes doces, encantadoras, arrebatantes... E ainda uma casa de banho podia apoiar os peregrinos dos livros, ao fundo de tudo...

Em momentos de chegada de bibliotecas acabadas de comprar, não era invulgar juntarem-se à porta alguns dos bibliófilos, ou talvez mais alfarrabistas, na ânsia de serem os primeiros a ver e a arrecadar as preciosidades pelas temáticas ou para as suas colecções, ou as que poderiam depois dobrar ou triplicar de preço, perante a bonomia ou generosidade da família Trindade, que ao longos dos anos preferiu manter os preços acessíveis, ganhando apenas, ou sobretudo, nos livros muito bons que por vezes compravam e logo vendiam... 
Quais terão sido os maiores compradores? Quantos dos livros adquiridos se consubtanciaram em novas obras? Quem sentiu mais gratidão, naquela biblioteca do mundo e fonte de Musas? Mistérios...
 
Tarcísio Trindade foi de uma época em que os livros quinhentistas e seiscentistas abundavam e a ele se deve a famosa descoberta do 1º livro impresso em português, e em Chaves, de 1489, o Tratado de Confissom, que veio a ser plenamente identificado e descrito por José Vitorino de Pina Martins. Mas muitas outras preciosidades lhe vieram parar às mãos, fazendo-as depois encaminharem-se para outras mãos, as de investigadores, bibliotecários e coleccionadores. Dotado de uma afabilidade e doçura muito grande, no coração, trato e na voz, era um bom conhecedor de livros e gravuras e foi poeta reconhecido no começo da sua carreira, vindo a ser depois um notável Presidente da Câmara e filantropo da sua terra natal, a Alcobaça do mosteiro de Cister e do amor perenizado de Pedro e Inês, temáticas que aliás Tarcísio e Bernardo Trindade souberam coleccionar museologicamente...

Seu filho Bernardo foi assumindo nos últimos anos, ao lado do pai (e por vezes com a mãe), e depois só, a missão de continuar a fundação circulativa dos alfarrábios e deu uma dinâmica ainda maior, com compra constante de bibliotecas e também venda rápida e barata a muitos colegas, amigos e clientes, realizando ainda alguns catálogos de grande qualidade, sendo também de grande doçura no trato das pessoas. Teve ainda vários amigos e amigas que o ajudaram atendendo afavelmente as pessoas. E as suas belas montras de obras curiosas, suaves e raras ficarão a brilhar no inconsciente pessoal e colectivo... 

                                

A livraria antiquária Campos Trindade foi durante anos a fio a mais concorrida de Lisboa, e diariamente quem gostava de livros e vinha ao Chiado, quem tomava o comboio para a linha do Estoril ou quem passava para a outra banda, entrava a espreitar e refrescar-se com alguma obra que o atraísse, com preços para todas as bolsas...

Quanta gente de valor da cultura e do amor aos livros aqui passou e conviveu? Muita e lembro-me por exemplo de Pina Martins, António Valdemar, Barrilaro Ruas, Martim Albuquerque, Jorge Preto, Orlando Vitorino, os Bigotte Chorão, Dias Farinha, Aires do Nascimento, Pinharanda Gomes, Almeida Dias, António Barahona, Artur Anselmo, Cadafaz de Matos, Silvina Pereira, Miguel Faria, Santos Carvalho, Teresa Gonçalves Lobo, Raul Perez, Adel Sidarus, Luísa Frazão, José Simões-Ferreira, Ernesto Rau, Jorge Filipe de Almeida, José Barreto, Daniel Pires, José Bouza Serrano, Carlos Pessoa, Hugo Miguel Crespo, Júlio Magalhães, Isabel Maiorca, Carlos Bobone, Duarte Branquinho, Luís Filipe Tomás, Jorge Pereira de Sampaio, António Pedro Vicente, Ramada Curto, Duarte Braga, Rui Lopo, Nuno Rício, Clerence, Fernando Simões, Jorge Pires, etc. etc., além, claro, dos vários livreiros alfarrabistas, alguns dos quais também já afastados do centro, ou tendo partido para os mundos subtis...

Ficam perenes as memórias pessoais e gratas de cada um, nomeadamente um ou outro livro cuja aquisição nos tornou mais felizes, seja por ser obra que procurávamos há muito, ou o preço ser simpático, ou pela descoberta do que desconhecíamos, ou por podermos oferecer, e ainda pela encadernação, beleza, interesse ou valor. Perdurará também na fraternidade ou corpo místico dos amantes dos livros as pessoas amigas que lá levámos, tentando que se iniciassem e comprassem alguma obra, ou a quem mesmo oferecíamos...

               Os últimos livros comprados no nº 44 da r. do Alecrim.
 Também sobreviverão os catálogos de grande qualidade que o Bernardo fez, algumas fotografias, entrevistas e notícias e, claro, o amor no coração para Tarcísio, a mulher, o Bernardo, para além da comunhão na fraternidade dos amantes dos livros, que é perene e apenas muda de lugares ou de planos, sem se quebrar a subtil ligação entre os elos...

Bernardo, após esta morte certamente dolorosa, com os últimos anos bem difíceis dada a subida imensa de renda e depois a covinagem, vai encetar a sua peregrinação cisterciense (tal como seu pai realizara com o abade e escritor cisterciense Maur Cocheril, ajudando-o para o seu livro) e saberá descobrir qual a melhor maneira de continuar com o seu amor e conhecimento dos livros, e em interacção luminosa com tantos amigos e clientes, tanto mais que o seu site continua a funcionar...

Assim, continuemos a cultivar e a trabalhar o amor dos livros e da sua sabedoria, beleza e encanto, para harmonia e melhoria da Humanidade.. 

"Morrer é ser iniciado", disseram-nos os gregos e depois, recolhido tal dito na Antologia Grega Palatina, repetiram-no entre nós Antero de Quental, Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa. Hoje somos nós, com o Bernardo Trindade, mesmo que algo tristes, a tocar os sinos da morte e ressurreição, no Amor do Livro e da Divindade que passa por eles e que de certo modo nos constitui, fortalece, apura e espiritualiza ou imortaliza...

11 comentários:

Unknown disse...

... é triste...

Pedro J. Mendonça disse...

É muito triste...

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Certamente, uma tragédia para o Bernardo, para muitos dos seus amigos e clientes e para Lisboa e o Chiado cultural. Mas na comunhão dos amantes dos livros sabemos que "morrer é ser iniciado" e aguardemos com confiança a metamorfose criativa do Bernardo e da Livraria Campos Trindade...

Unknown disse...

Lamento! A cultura precisa dos alfarrabistas!

Pedro Teixeira da Mota. disse...

É verdade. AS livrarias alfarrabistas desempenham uma missão valiosa de valorização, preservação e estudo, divulgação e comercialização de obras já invulgares ou raras, para além de serem oásis de cultura e de diálogo em cidades cada vez mais longe das suas raízes naturais e conviviais.

Teixeira Vaz disse...

Noticia muito triste...
Gostaria de ser informado sobre a tão desejada metamorfose.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Bem verdade, uma tragédia cultural para a sabedoria dos livros no Chiado, em Lisboa e no mundo, tal era a procura e aceitação que envolvia a livraria e os seus dois valiosos livreiros e ajudantes. O Bernardo Trindade tem o seu site no qual informará que metamorfose realizará, para além de ir disponibilizando livros on line: www.livrariacampostrindade.com...

Anónimo disse...

Lamentavelmente encerra mais um Porto de Abrigo Universal, onde todo e cada um dos que nasceram com a alma voltada para a Arte, leia-se a Literatura como uma admirável conexão intrínseca às 7 Artes Liberais, seja de que parte do mundo for, encontra um pouco da sua casa espiritual onde quer que ache uma Livraria-Alfarrabista. Digamos que, dentro de cada um destes Espaços, conseguimos refutar, contradizendo a própria Mecânica Celeste que a Astrofísica premedita, no elo simbiótico do Espaço e do Tempo, pois uma vez no seu interior, o próprio Tempo move-se de forma diferente, enauwbto que lá fora, estagna por completo. Falando somente ao nível do que nós, meros Humanos para aí voltados podemos tocar com os nossos próprios sentidos, cada notícia como esta, que encerra em si História, Cultura, Património e o caminho para um Pensamento verdadeiramente Livre e Iluminista na real acepção desta palavra, é recebida como mais um tijolo retirado do próprio ADN que nos construiu e mantém enquanto Seres Sensíveis e Sapientes, independentemente se conhecemos ou não, pessoalmente esse espaço que, na verdade, simboliza um Universo próprio.
Desta forma, lamento como se conhecesse desde sempre essa Livraria que nunca conheci fisicamente, bem como lamento, ao saber com esse seu suspiro final, mais uma perda que estrangula os Homens e Muheres de Bem, aqueles que procuram a racionalização da Cultura, sabendo que, apenas com esta, podemos ser pouco melhores que animais selvagens, construindo um Mundo justo e digno através dos alicerces do Conhecimento. Segurando-me no rasto de Huxley, sejamos despertos e mal-vindos a este Excretável Mundo Novo!

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Estas coisas fazem-me escrever como se estivesse simbolicamente a auto-exorcizar um demónio de forma a conseguir "aceitá-las"!

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Certo e valioso o seu testemunho e desabafo. Graças. Sem dúvida, uma diminuição forte nas muralhas lisboetas da Cultura, embora o Bernardo vá continuar de um modo ou outro, embora não fisicamente em local tão central e histórico... Seguindo mestre Aldous Huxley, saibamos construir ou manter a nossa "Ilha" e em rede com outras resistirmos, desmascararmos e vencermos os opressivos e paranóicos seres e mundos novos que pretendem dirigir-nos e impor-nos...

Unknown disse...

E uma dor de alma cada vez que uma livraria ou um alfarrabista fecha. É um renegar o passado
E desapacer de cheiros, o cheiro dos livros. Há qualquer coisa que morre em nós. E que não volta mais, só às vezes a nossa imaginação os consegue recuperar. Que saudades....

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Pois vai depender muito de cada pessoa a forma como se reage, interessando até mais, e no caso como vai o livreiro, o Bernardo Trindade, interagir com a sua nova posição e liberdade... Tendo desfrutado bem e prolongadamente da livraria, dos donos, dos amigos e diálogos,e dos livros que vi ou adquiri, só posso dar graças por tal nesta transitoriedade grande da vida, e assim avançarei sem saudades e dando graças...