domingo, 27 de outubro de 2019

Antero de Quental traduz e melhora um poema de Victor Hugo e corrige o profetismo dele e de Junqueiro. Face ao mistério da morte, medita no silêncio. "Museu Ilustrado", 1878.

A Sociedade Athena, portuense, apresentou em 1878,  um Album Literário,  Museu Illustrado, com as colaborações de numerosos escritores derramadas nas 400 páginas,  patenteando o nome, uma fotografia e um  poema de Victor Hugo, este que fora traduzido por Antero de Quental há dezassete anos,  quando o publicara em Janeiro de 1861 no 2º vol. do  Preludios-Litterários: Jornal Académico.
Como hoje em dia é publicação rara de se encontrar e passou-me pelas mãos na livraria olisiponense alfarrabista, à rua do Alecrim, do amigo Bernardo Trindade (infelizmente em 2021  substituída, perante o clamor indignado dos céus e dos amantes de cultura, numa loja de tatuagens ou tatoos...), eis  as imagens da publicação, colaboradores e poema, mais algumas reflexões.                      
 
Dirigida por David de Castro, propriedade de Arnaldo Rocha, incluiu colaboração de Alberto Pimental, Alberto Teles, Angelina Vidal, Camilo, Fernando Leal, Fialho, Gomes Leal, Gonçalves Crespo, João de Deus, João Penha, Joaquim de Araújo, Leite de Vasconcelos, Luís de Magalhães, Magalhães Lima, Amorim Viana, Santos Valente, etc., sendo apresentadas as fotografias de tal ilustre plêiade, com Antero de Quental a surgir na numerada com o nº 20.
                                          
Vejamos e leiamos então a versão anteriana do poema de Victor Hugo, publicado por este em 1840 com o título Écrit sur le tombeau d'un enfant au bord de la mer, uma das referências do jovem Antero de Quental, como ainda em 1877, reflectindo o espectro das suas leituras, confessa a Oliveira Martins, ao realçar "a afirmação, a paixão e a imaginação" que fazem «os grandes escritores, que não são propriamente escritores, mas poetas, videntes e grandes homens no fundo - Rabelais, Lutero, Carlyle, Michelet, Hugo»,  mas de quem depois  se distanciará, como se vê numa carta (e neste blogue já estudámos outra) bem curiosa ao jovem Carlos Cirilo Machado, de Junho de 1886, que se atrevera a criticar o já consagrado Guerra Junqueiro: «Meu caro. Apesar de Você bater tão desalmadamente num que eu sempre amei muito, mas não lhe posso encobrir que na maioria dos casos bate certo./ A Velhice  do Padre Eterno foi um grande erro e custou-me imenso  ver que o Junqueiro persistiu em o cometer. O Junqueiro é um admirável idílico e além disso  em certos assuntos um poderoso satírico. Mas a Velhice é o sintoma duma deplorável mania de profeta, que ameaça perdê-lo como perdeu o Hugo.» Explicará ainda as atenuantes de ambos terem a poesia mais de que diletantismo:«a intenção era boa, o caminho que seguiram é que foi errado.» E ainda numa carta a Göran Björkman, três anos e depois a uns meses de partir da Terra, depois de considerar João de Deus o melhor poeta português, seguindo-se Tomás Ribeiro, nomeia Junqueiro, e traduzimos do francês «o seu volume Morte de D. João é muito desigual, mas contudo valioso, e, no meu sentir, superior à sua outra obra Velhice do Padre Eterno, onde ele imita demasiado Victor Hugo, no que Victor Hugo tem de pior»
 
 Alexandre Herculano e Victor Hugo pontificando numa biblioteca do séc. XIX na Beira transmontana
 
 A recente publicação por Luís Fagundes Duarte de uma edição crítica da poesia de Antero de Quental permite-nos até compararmos a tradução anteriana com o original de Victor Hugo,  já que o transcreve, e realçaremos apenas brevemente o seguinte, reproduzindo a versão de Antero, onde a poderá ler:
                                           
 No 2º verso do 1º quinteto, onde Victor Hugo escrevera «Église ou l'esprit voit Dieu ailleurs», Antero melhorou bastante: «Sagrado templo em que a alma contempla Deus», deixando-nos com boas direcções de visão: a do local da campa que pela sua harmonia da natureza envolvente permite seja ao morto nos primeiros tempos da sua transição, seja aos que por lá passam, caso do pastor, seja ainda aos leitores do poema, elevarem-se, contemplarem, intuírem Deus. De realçar ainda a passagem de l'esprit para alma...
No 2º quinteto, Antero de Quental introduz a meio uma versão de mais alta espiritualidade do que Victor Hugo, neste  "Bois, qui faites songer le passant serieux ("Bosque, que fazes sonhar o que passa sério"», enquanto Antero amplia de novo numa linha espiritual valiosa, criando mesmo um ambiente oriental: "Selva, que a meditar convida o sábio".
  Há uma diferença bem forte entre o sonhar ou divagar de Hugo, para o aprofundamento causal que Antero faz de tal ambiente: a natureza convida a meditar as pessoas, ou seres com sabedoria, ou que aspiram a ela. Provavelmente  a vivência infantil e juvenil da ilha da Terceira dos Açores e a religiosidade familiar contribuíram para esta sensibilidade bem espiritual, valorizadora da meditação e da possibilidade de aprofundarmos com ela a sabedoria mais necessária, a que triunfa das aparências da morte..
No 4º e último quinteto realçaremos  ter-se Antero,   nos dois versos finais, sujeitado à vulgar visão da morte católica e hugiana (dormir a criança, e chorar a mãe), mas antes, onde Victor Hugo escrevera apenas «Ne faites pas de bruit autour de cette tombe», Antero de Quental consegue transformar tal pedido numa injunção sagrada, quase iniciática: «Folhas, ninhos... silêncio em volta à campa». Ou seja, propicie-se um ambiente meditativo, conducente a uma experiência espiritual que mostre ou faça sentir interiormente ser a morte apenas a alma abandonar o corpo físico e o plano terrestre visível.
O cavaleiro andante do silêncio, da noite, da morte, da abnegação, do desprendimento, da ética e da voz da consciência que viria a ser Antero de Quental já se pressentia nesta tradução juvenil, tanto mais que o seu génio brilhou mais puro e menos influenciado nessa época...
A fotografia, com pouca definição ao ser ampliada e não de um arquivo policial, de Antero. Muita luz e amor nele!

Sem comentários: