segunda-feira, 3 de junho de 2024

Viktor Órban, 1º ministro da Hungria: As eleições europeias. A política de guerra da União Europeia. Com vídeo da sua entrevista de 7.VI.

                             

 O experiente e corajoso primeiro-ministro húngaro Viktor Órban (31-V-1963), algo demonizado nos media ocidentais pelo seu nacionalismo independente, acabou de dar um contributo importante para a complexa questão "em quem devemos votar nas próximas eleições europeias", apontando a necessidade de se votar em cada país no partido ou nos partidos - e creio que em Portugal só o Partido Comunista se distancia das ambições da NATO norte-americana - que se opõem às políticas de confronto crescente com Rússia e que, se vencedoras, conduziriam certamente a uma escalada grave do conflito e a um muito maior número de mortos eslavos, europeus ou mesmo norte-americanos, algo que é contudo indiferente para a elite mundial que assistirá ao cataclismo nos seus bunkers.

 O que  este político húngaro e europeu, pois cada vez mais os dirigentes da União Europeia não são europeus mas seres desalmados e meros agentes - pagos quase ilimitadamente pelos dólares infinitos - dos norte-americanos e da plutocracia dos bancos, armamentos e farmacêuticas, disse, diante de uma grande multidão de húngaros numa manifestação pré-eleitoral e pela paz, a 2 de Maio, é simples:

«É em vão que se quer comprar a Hungria. Ela não está à  à venda.  É por não estar à venda que ela é tão valiosa. Não está à venda nem para Bruxelas, nem para Washington, nem para George Soros.    

George Soros e Klaus Schwab manipulando os seus avençados...
Senhoras e senhores, nunca tivemos [numa manifestação] uma multidão tão grande antes de uma eleição europeia. Se ao menos pudéssemos  dar um golpe nos nossos adversários, eles voariam para Bruxelas. Mas nós  não o faremos, porque já há suficientes políticos pró-guerra em Bruxelas. 

Meus amigos, a Europa está a preparar-se para a guerra, anunciando todos os dias que avançam em mais troços da estrada para o inferno. Cada vez que falamos de 100 biliões de euros para a Ucrânia, de colocar armas nucleares no centro da Europa, de recrutar os nossos filhos para um exército estrangeiro,  de uma missão da NATO na Ucrânia, de unidades militares europeias na Ucrânia, meus  amigos, parece que o comboio pró-guerra não tem freios e o maquinista enlouqueceu.
                                       
Nas eleições Europeias, não farem
os nada menos do que parar este comboio. Temos de acionar o freio de emergência pelo menos para que os que queiram possam sair e não sejam envolvidos na guerra.»
Em quem vai vot
ar? Nos partidos completamente alinhados ou mesmo vendidos com o imperialismo excepcionalista expansionista da NATO e dos USA? Esperemos que não...

Vídeo da sua entrevista:  https://www.youtube.com/watch?v=MqJj0O9g_BI

Acrescente-se que as eleições na Hungria deram no dia 9 de Junho uma vitória forte a Viktor Órban e que as suas declarações ficaram gravadas para posterioridade. Anote-se ainda a derrota estrondosa do traiçoeiro e hipócrita Macron bem como do sonsinho e avençado Olaf Scholz, bem como da tonta da Annalena Baerbock e os Verdes. 

 Acrescentemos já de Janeiro de 2025 as últimas declarações sensatas de Viktor Órban: «Budapeste, 31 de janeiro. /Tass/. A nova administração dos EUA e a liderança da UE têm abordagens diferentes para o conflito na Ucrânia: Washington agora favorece uma solução pacífica, enquanto Bruxelas quer continuar a guerra, disse o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban durante uma transmissão de rádio Kossuth.
“Os europeus dizem que as sanções devem ser mantidas e mesmo reforçadas para que os ucranianos possam ganhar a guerra contra a Rússia. Ontem, o Secretário de Estado dos EUA [Marco Rubio] disse numa grande entrevista que seria injusto enganar toda a gente dizendo que os ucranianos podem ganhar esta guerra. Agradeço-lhe por essa entrevista, porque mostrou que os americanos querem a paz, não as sanções, e os europeus querem as sanções, não a paz”, disse o primeiro-ministro.
A lógica europeia é completamente diferente da lógica americana: uma é a lógica da guerra e a outra é a lógica da paz”, sublinhou o primeiro-ministro. Orban reiterou que o governo húngaro continua a ser a favor de uma solução negociada para o conflito ucraniano e que conta com o presidente dos EUA, Donald Trump, nesse esforço.»

Veja-se Órban em:  https://www.youtube.com/watch?v=rWxPiQbVP1I

                                 

Já em Abril de 2025, Órban destacou-se pela negativa ao acolher na Hungria o criminoso de guerra e 1º ministro de Israel Benjamin Netanyahu, dando de certo modo aval ao genocídio em curso dos palestinanos pelo militares e colonos sionistas e anti-semitas (já que os árabes e judeus são povos semitas, e não só os judeus).
                                        
Em 3 de Novembro de 2025, noticia-se que o Primeiro-Ministro húngaro Viktor Orban acusou seu homólogo polonês Donald Tusk de ser “u
m dos políticos mais ardentes pró-guerra da Europa” e um “vassalo de Bruxelas.”
De acordo com Órban, Tusk está a perseguir os opositores políticos internamente e atacando a postura pacífica da Hungria para distrair de seus próprios "grandes problemas em casa", incluindo perdas eleitorais e um governo instável.
O confronto foi um dos muitos deste ano, desta vez desencadeado pela reunião de Orban em Budapeste com o ex-ministro da Justiça polonês Zbigniew Ziobro, sobre quem Tusk, seu rival ou opositor, sugeriu que deveria estar "ou sob custódia, ou em Budapeste."

Tosco Tusk, tão mau como roto Rütte...

domingo, 2 de junho de 2024

Ideias e máximas d' "Os Lusíadas" de Luís Camões. Comemorações dos 500 anos do seu nascimento. 2º contributo.

Camões, flor da sua idade, peito radiando ao mundo seu amor infinito. Pintura de José Malhoa, hoje no Museu Militar de Lisboa.

 Pensamentos, conceitos e mantras de Luís Camões, selecionados, entre muitos outros valiosos, dos versos d' Os Lusíadas.

Porque a grande experiência e engenho, sabedoria e amor de Luís de Camões geraram muitas afirmações merecedoras de serem perenemente lidas, meditadas e vividas, resolvemos partilhar algumas, com sublinhados para a pequena satsanga ou companhia da verdade que lê estes escritos.

Portada ou frontispício da 1ª edição dos Lusíadas, reutilizada para a edição de 1934.

«Da determinação que tens tomada
Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da coisa começada.
(I,40)
 
Deste Deus-Homem, alto e infinito,
Os livros que tu pedes não trazia,
Que bem posso escusar trazer escrito
Em papel o que na alma andar devia.
(I,66)
 
Porque sempre por via irá direita
Quem do oportuno tempo se aproveita.
(I,76)
 
Quem poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo, sabiamente,
Se lá de cima a Guarda Soberana
Não acudir à fraca força humana?
(II, 30) 
 
Mas pois saber humano, nem prudência,
Enganos tão fingidos não alcança;
Oh tu, Guarda Divina, tem cuidado,
De quem sem ti não pode ser guardado!
(II, 31)
 
Porque mui pouco vale esforço e arte
Contra infernais vontades enganosas;
Pouco vale coração, astúcia e siso,
Se lá dos Céus não vem celeste aviso.
(II, 59)
 
Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano
(III, 20) 
 
Heinrich Bünting, Itinerarium Sacrae Scripturae, 1581.


As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoram,
E por memória eterna, em fonte pura,
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que ainda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome amores.
(III-135)

Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.
(III, 138) 
 
Depois de procelosa tempestade,
Nocturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o sol a negra escuridade,
Removendo o temor ao pensamento.
(IV, 1)
 
E com rogo e palavras amorosas,
Que é um mando nos Reis que a mais obriga,
Me disse: As coisas árduas e lustrosas,
Se alcançam com trabalho, e com fadiga;
Faz as pessoas altas  e famosas,
A vida que se perde, e que periga,
Que, quanto ao medo infame não se rende,
Então, se menos dura, mais se estende.
(IV, 78)
 
Que a virtude louvada vive e cresce,
E o louvor altos casos persuade.
(IV, 81)
 
Os casos vi que os rudes marinheiros
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as coisas só pela aparência:
E os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho, e por ciência,
Veem do Mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos. 
(V, 17)
 
Porque quem não sabe arte, não na estima.
(V, 97)
 
Via estar todo o céu determinado
De fazer Lisboa nova Roma;
Não no pode estorvar, que destinado
Está doutro poder que tudo doma.
(VI,7)
Lisboa, por Francisco de Holanda, Da Fabrica que falece à cidade de Lisboa, 1571.
 
Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores:
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres dos seus antecessores.
(VI, 95) 
 
Em vendo o mensageiro, com jucundo
Rosto, como quem sabe a língua Hispana.
Lhe disse: Quem te trouxe a est'outro mundo,
tão longe da tua pátria Lusitana?
Abrindo, lhe responde, o mar profundo
Por onde nunca veio gente humana;
Vimos buscar do Indo a grão corrente,
Por onde a Lei divina se acrescente.
(VII, 25)
 
Enquanto é fraca a força desta gente,
Ordena como em tudo se resiste;
Porque quando o Sol sai, facilmente
Se pode nele pôr a aguda vista:
Porém, depois que sobe claro e ardente,
Se agudeza dos olhos o conquista,
Tão cega fica, quanto ficareis
Se raízes criar lhe não tolheis.
(VIII, 50)
 
Oh! quanto deve o Rei que bem governa,
De olhar que os conselheiros, ou privados,
De consciência e de virtude interna,
E de sincero amor sejam dotados!
(VIII, 54)
 
Mas, porque nenhum grande bem se alcança -,
Sem grandes opressões, e em todo o feito
Segue o temor os passos da esperança,
Que em suor vive sempre de seu peito,
(VIII, 66)
 
O coração sublime, o régio peito,
Nenhum caso possível tem por grande.
Bem parece que o nobre e grão conceito
Do Lusitano espírito demande
Maior crédito e fé de mais alteza
Que creia dele tanta fortaleza.
(VIII, 69)
 
Sabe que há muitos anos que os antigos
Reis nossos firmemente propuseram
De vencer os trabalhos, e perigos,
Que sempre às grandes coisas se opuseram.
(VIII, 70) 

 Tal há-de ser, quem quer com o dom de Marte
Imitar os ilustres, e igualá-los:
Voar com o pensamento a toda parte,
Adivinhar perigos e evitá-los:
Com militar engenho e subtil arte,
Entender os inimigos, e enganá-los,
Crer tudo, enfim; que nunca louvarei
O Capitão que diga: Não cuidei.
(VIII, 89)
 
O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Para contar a peregrina, e rara
Navegação, os vários céus, e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos, e acidentes,
Cada um, tem por gosto tão perfeito
Que o coração para ele é vaso estreito.
(IX,17) (Odisseia, IX, 34: "Nada é mais doce do que a pátria e os pais.")
 
Vê aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos, e riqueza,
Simulando justiça e integridade.
Da feia tirania e de aspereza,
Fazem direito e vã severidade:
Leis em favor do Rei se estabelecem;
As em favor do povo só perecem.
(IX, 28)
 
Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,
senão somente o que mal deseja.
Não quer que tanto tempo se releve
O castigo que duro e justo seja.
(IX, 29)
 
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Para o cume dum alto monte e divino,
No qual uma rica fábrica se erguia 
De cristal toda e de ouro puro e fina.
(IX, 87)
 
Porque dos feitos grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prémio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e subido.
(IX, 88)
 
Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo
Que é sem princípio e meta limitado.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo, e sua superfície  tão limada
É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
(X, 80) 
 
Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos, que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega, e a mente vil também,
Empíreo se nomeia; onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se estende e alacança,
De quem não há no mundo semelhança.
(X, 81)
 
Os que são bons, guiando favorecem,
Os maus, enquanto podem, nos empeçem.
(X, 83)
 
Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.
(X, 84)

Sabia bem que se com fé  formada
Mandar a um monte surdo, que se mova,
Que obedecerá logo à voz sagrada,
Que assim lho ensinou Cristo, e ele o prova.
(X, 112)

Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Coisas que juntas se acham raramente.
(X-154)
 
Saibamos, muito gratos à sua grande alma, meditar, aprofundar e vivenciar algumas destas flechas de amor e sabedoria lançadas no céu da tradição cultural e espiritual lusitana há tantos anos por Luís de Camões e que ainda hoje vivem no mundo das ideias ou espiritual pois podem ajudar a diminuir as trevas da ignorância e opressão e fortalecer o lume claro do entendimento, a chama do amor e a determinação vitoriosa da vontade, aberta à Divindade e à sua Santa Guarda.

sábado, 1 de junho de 2024

Ensinamentos do engenho do amor de Luís de Camões. Comemorações dos 500 anos do seu nascimento. 1º texto.

                                      

 A vasta obra de Luís de Camões (1524-1580) contém tanta sabedoria e amor, tantas ideias e sentimentos-forças que, enquanto houver ou for lida a língua portuguesa, ela será sempre  fonte inexaurível de luz e amor, não só pelo  génio poético como pela sensibilidade e vida, filosofia e labor. E em tantos níveis que, apesar de já terem sido escritos milhares senão milhões de livros e artigos sobre a sua vida e obra, será sempre valiosa trazê-la à luz pública da contemporaneidade, mormente neste ano de 2024 quando celebramos os 500 anos do seu aniversário.

O épico, o lírico, o dramaturgo, o artista, aventureiro, o geógrafo, o etnógrafo, o amante, o humanista, o religioso, o filósofo e o crítico social são alguns dos espelhos em que ele se pode refractar, mas neste  modesto trabalho, a partir da sua alma e obra  multidimensional, geraremos algumas centelhas luminosas e amorosas que nos vivifiquem, elevem e aperfeiçoem.

Como poeta do Amor, vivido e entendido na totalidade do seu ser, Camões foi entre nós supremo vate, só Bocage (1765-1805) dele podendo aproximar-se, e encontramos então na sua obra, e nomeadamente nas redondilhas, muitas flechas que manifestam a misteriosa força que move as estrelas e une e complementa os seres tão poderosamente, como ele tantas vezes sentiu e  poetizou com genialidade vivida e imaginada, utópica e perene,  como manifesta com a sua criação da ilha do Amor, dos Amores ou Namorada, e o seu alto monte, donde Vasco da Gama contempla, com a Musa ou Deusa, a providência no mundo, a harmonia das esferas e a fonte Divina.

Nos vales e rios, mares e montes do Amor andou muitas vezes, entusiasmando-se com a formosura e delicadeza das mulheres ou damas por quem sentia mais afinidade, correspondida ou não, mas   sempre esteve na montanha do Amor, pois a sua vida anímica foi uma peregrinação constante às diversas alturas criativas do Amor e à sua fonte Divina, arquétipo atractivo e elevativo de todo o coração mais ardente e profundo.

A sua familiaridade com a filosofia grega-romana antiga platónica, e com Petrarca, de quem traduziu os famosos Triomphi, permitiu-lhe ver a multidimensionalidade do Amor e como os nossos estados anímicos formam e deformam o nosso ser psicosomático nas aventuras e desventuras da sua vivência, meditação e poetização. Risos, gemidos e ais escaparam do seu peito e boca, por vezes quase se perdendo na alma por quem suspirava, outras vezes as lágrimas e desilusões abrindo regos para as correntes das graças divinas ou das musas descerem sobre a aura e o inspirarem.

Do mundo subtil dos olhos sempre viu e bebeu tanto que se pode dizer que cegou, tal era a sua sensibilidade à riqueza da alma e do Amor que os olhos contêm ou emanam. Fogo ou lume do céu, chispas que ferem e prendem, flechas ígneas, eis o Amor, cego ou clarividente, radiando do peito e dos olhos.

Guerreiro, nauta, peregrino, poeta, amante, Luís de Camões viu a alma como um castelo, tal como a sua contemporânea S. Teresa de Ávila (1515-1582) a concebera misticamente em mansões, e por tal estruturação da forma, ele podia ver do alto e resistir aos ataques, ferimentos e desânimos, alcançando firme, sob o sereno céu azulado interior, tal como S. Teresa, seja a sua missão de poeta seja a intuição da essência divina primordial ou a individual de quem  amava e se lembrava.

Este ver a alma como castelo ou torre, este contemplar do céu, da amada e da divindade, implica o olhar interior bem focado e determinado, para se irem dissipando as sombras dos pensamentos e receios, através da subtil de força de aspiração à união e à comunhão, e que são efeitos elevados (e no Oriente e seus yogis, por onde ele peregrinou 17 anos, bem trabalhados) derivados do acesso ao Amor e à Verdade que consubstancializam a Anima mundi, ou o Logos.

Na realidade, tal como os olhos reflectem os estados de alma, os sentimentos e pensamentos e, no fundo, o Amor que uma pessoa tem, ou que por uma pessoa passa, e que se manifesta por  claridade, luz, ar ou mesmo fogo que emanam, assim a capacidade de concentração  interior unitiva depende do amor que se tem ou se consegue desenvolver, abrindo-se canais para os mundos anímicos dos outros e para o espiritual e divino. 

Por isso música, cantos, mantras e jaculatórias tentam intensificar a correnteza do amor unificador nas almas místicas, tal como as enamoradas, sobretudo se entre si formosas e piedosas,  podem sentir na lembrança, esperança ou repetição do nome da amado ou amado grande felicidade, numa participação, por voo ou por telepatia,  na reciprocidade de alma, entrando-se num estado unitivo, exprimido de certo modo no dito popular "para onde for te levo, e me levas".

As  metamorfoses do coração pelas suas irradiações, nas suas relações potenciais com quem se ama, são bastante subtis e delicadas, tal como  podemos observar plasmadas na filigranas da nossa joalharia em forma do coração ou de arrecadas, e tanto  emanam levemente em redor como partem como asas e flechas para o coração de quem as merece, recebe ou vê, subtilmente...

Já a união do coração com os olhos, o pôr o coração nos olhos, que Luís de Camões bem valorizou, não é  fácil de se alcançar quando não se está  apaixonado ou em amor espiritual, ou quando não se está a vibrar intensamente com algo, pois só nessa unidade grande das potências da alma e do corpo, o fogo do Amor irradia poderosamente do peito e evola-se ardentemente pelos olhos e aura, ou então mareja-os de lágrimas, seja  de saudade ou de felicidade.

O ensinamento da tradição dos Fiéis do Amor, a que pertenceram Dante Alighieri, Luís de Camões e outros, fundamenta-se na constância da semeadura e lavoura do Amor, ou seja, da irradiação do fogo do Coração  independentemente dos frutos que venham, pois o dever é o da acção justa e não o da colheita, pois o Amor ordena não  acomodar-nos em posses e resultados, mas  avivarmos o espírito e criarmos e fazermos o bem, em unidade e multipolaridade...

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Do Diário de Lisboa de 1925, carta inédita de Antero de Quental sobre a sua instabilidade psico-somática, e como vivia os momentos de menor força de vontade.

 No Diário de Lisboa, de 7 de Abril de 1925, numa homenagem a Antero de Quental, deu-se à luz a transcrição de uma carta até então inédita enviada pelo vate ao seu amigo e publicista Oliveira Martins, de 17 Dezembro  [de 1872] e não de 1873 como o jornalista identificara, conforme Ana Maria Almeida Martins veio a esclarecer na sua edição de Antero de Quental. Cartas. Houve ainda outros  erros na transcrição da carta para o jornal e que corrigimos (a negro), aproveitando para transcrever outras linhas pelo valor das ideias e imagens expressas, algumas delas que sublinhamos. Anote-se que a valiosa revista Bipolar, da Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares (ADEB) no seu nº 51, por ocasião do seu 25º aniversário, em 2015, partilhou igualmente esta carta incorrendo também em alguns erros ou gralhas.

                   «17 de Dezembro

Caro amigo.

Deve ter estranhado não ter recebido ainda os números do Popular com os meus folhetins a respeito do seu livro. Encarecidamente lhe peço me desculpe. Sei que é uma obrigação que tenho a cumprir, não só por termos ficado nisso, mas sobretudo, independentemente da nossa amizade, pela minha posição de publicista-socialista a respeito de um qualquer livro que se intitule Teoria do Socialismo. Mas, se eu tenho o sentimento imperioso dos meus deveres, o que não tenho infelizmente (por ora; espero vir a tê-la) é a escolha do momento em que os cumpra: não é quando eu quero, mas quando não sei quê quer. É deplorável isto, mas tenho notado ultimamente que não é opondo-me de frente ao meu desgraçado temperamento que hei-de vencer, mas sim ladeando-o, transigindo razoavelmente com ele e como que por meio de mútuos compromissos entre a natureza e a razão: só assim me transformarei com o tempo, até fazer do meu quero subjectivo  inerte, uma vontade objectiva real.»

Como vemos ou lemos Antero tece considerações valiosas sobre o drama psico-somático de sofrer momentos de grande falta de vontade, por vezes duradouros, e como os ia ladeando, diminuindo e preenchendo com actividades que evitavam eles tornarem-se mais entranhados e enfraquecedores, nomeadamente pensando e estudando, tentando que a parte racional se animasse nele e agisse até no seu somatismo e tónus energético e sentimental.
Na parágrafo final da carta há um outro pequeno erro na transcrição jornalística  e vamos passá-lo todo, até com o anterior, pelo seu valor de compreensão do inconsciente e pela visão das folhas brancas como tristes à espera que ele se inspire  ou seja inspirado e as encha do seu Logos ou Palavra, o Sermo, como lhe chamava Erasmo:

«Aqui está, amigo, a razão porque tenho há bons 20 dias em cima da mesa o seu livro, e ao pé algumas folhas de papel branco, que esperam melancólicas o momento em que me volte a inspiração e a vontade, e que todos os dias me lembram o cumprimento dos meus deveres, sem que eu lhes possa responder senão com um desalentado amanhã, talvez! Desculpe-me pois: deixemos passar esta crise, e volveremos depois ao trabalho com mais ânimo e força. Não me esquecem as minhas obrigações; o que porém não está na minha mão é marcar o dia e a hora em que as cumpra. Paciência!
Depois disto, escusado será dizer-lhe que o meu
Programa [dos Trabalhos para a Geração Nova, que não chegou a concluir] dorme há mais de mês com o sono pesado dum animal que hiberna. Mas nesse sono não haverá sonho, alguma forma de vida latente, e uma concentração de força que se armazena para rebentar depois com energia? Sinto, com efeito, que o meu espírito, apesar do sonambulismo actual, vai sempre ruminando e dispondo insensivelmente certas ideias, alargando certos pontos de vista, obscuramente é verdade, e quase sem consciência (passivamente e como que hanté) mas com uma surda continuidade que não pode ser de todo infecunda – que até seja talvez uma fase necessária da evolução do pensamento.
            Adeus,
                  seu do Coração,
                                     Anthero »

Destaque-se nesta parte final uma certa gnose optimista do inconsciente, do sono, do sonho e da fermentação que ocorre por si mesmo, e ainda de que o seu espírito possa ir trabalhando as ideias e melhorando os pontos de vista do seu ensaio, uma questão ainda hoje, pesem os trabalhos das psicologias das profundezas, ainda pouco clarificada objectivamente.

Muita luz e amor divinos na alma espiritual de Antero de Quental!

O que é o Espírito? Ensaio escrito no caderno diário, quando tinha 32 anos e ensinava meditação e yoga no restaurante e centro alternativo Suribachi.

Texto escrito no caderno diário quando tinha 32 anos e ensinava Agni Raj Yoga no Porto, no restaurante e centro dietético e alternativo Suribachi, ainda hoje activo, com escassos acrescentos.

«O que é o Espírito?

Há milhares e milhares de anos que o Homem se encontra na Terra. Vestígios históricos com 7.000, ou ósseos, com 500.000 anos. Houve Atlântidas e Lemúrias? Provavelmente. E o ser humano evoluiu? Certamente. Fala-se porém nas mitologias e religiões duma Queda, dum Pecado original. Será esta a descida do Homem Espiritual ao mundo da carne, ao plano físico terrestre? E o que distingue o Espírito do Homem? Será o Homem o Espírito e o homem-corpo apenas uma imagem animal chamada a espiritualizar-se?

Homem condenado a ser Espírito ou a ser [um com] Deus?
E dos caracteres que tem o Espírito não será ainda a liberdade o principal?
O Espírito em cada um de nós, como é? [Centelha, partícula ou onda?] Como podemos tomar contacto com ele? Como podemos despertá-lo noutras pessoas? Qual a razão de ser de nós, a partir do Espírito? Ou será antes o Espírito que é o sujeito de cada um de nós, e é ele que toma contacto connosco quando for a altura própria? Por isso se falava da inspiração divina, da descida do Espírito Santo, [não se sabendo quando nem donde vinha]?

Há um culto interno secreto no peito de comunhão com o Espírito Divino. [Nele se iniciam alguns...]
O Espírito é eu. O Espírito é Divino. Logo eu tento também remover as limitações corporais e psíquicas, para deixar o esplendor e acção justa do Espírito Divino se manifestar,

Doze anos a trabalhar na procura do Espírito e da Verdade. Na ligação maior com Deus. Com o Fogo Divino, Yoga, teosofismo, Alice Bailey, Macrobiótica, Ani Yoga, Cristianismo esotérico e gnóstico, Antroposofia e tantas outras escolas, ashrams e mestres, na certeza em todos que a liberdade e a aspiração a Deus e a comunhão sábia e amorosa são as grandes linhas do Espírito.
Espírito que transborda do corpo, ou que o enche repentinamente em certos momentos.
O Espírito que está tenuamente ligado a nós. Porque temos uma personalidade atenta mais a corpo, às emoções, aos instintos e aos pensamentos do que à realidade viva dinâmica profunda libertadora do Espírito.

O Espírito é assim diferente da consciência. E é quem está por detrás dela e que não deixa o Eu ser uma entidade caótica, desgovernada ou multidilacerada.
O Espírito é a generalidade ou universalidade do bem, do belo, do verdadeiro irradiando, rompendo limites, criando novos estados de ser e de consciência em nós e nos outros.[O Espírito é uma correnteza dinâmica ainda que muito subtil.]
O Espírito é a fonte que liga o homem com Deus. E os homens e mulheres entre si.
Homens e mulheres portadores do Espírito! Como nos entusiasma esta realidade ígnea dos silenciosos adoradores e irradiadores da Presença Divina, a qual vai crescendo neles até brilhar no Eu espiritual.

Os yogis e yoginis, os que se esforçam e meditam, são os que começam esta aventura de romper as rotinas, inconsciências, fantasias e determinismos e principiam a reconhecer-se como Homens e Mulheres Espíritos.
Que maravilhosa época a de hoje, em que crescem os centros e as pessoas interessadas das mais diversas maneiras e sensibilidades nesta aventura tremenda do despertar consciencial face aos perigos, desânimos e conflitos que nos rodeiam [e tentam envolver e alienar da procura e realização espiritual e divina...]

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Um valioso poema da activista Alice Moderno, de 1893, e publicado em 1916, na revista "Escola Móvel", sobre a Humanidade livre e luminosa.

    Um belo poema da Alice Moderno (1867-1946), de 1893, publicado em 1916, na revista Escola Móvel. À beleza e idealidade, ao facto de ter namorado alguns anos um ilustre companheiro e discípulo de Antero de Quental, o infausto Joaquim de Araújo (sobre quem já publiquei alguns artigos no blogue, nomeadamente o seu fabuloso poema à morte de Antero como iniciação), junta-se o quase desconhecimento do poema desta notável açoriana numa das muitas revistas em que colaborou ou dirigiu, para além de inicialmente o ter enviada para o o jovem poeta André Louro pelo seu amor a ela, fez-me autonomizar o poema neste artigo do blogue.

 
 

«A Humanidade é o Ahasvero errante,
Vitima estranha de um destino escuro;
Na interminável senda do futuro,
Não repousa, não pára um só instante.

 O seu ideal é cada vez mais puro,
A luz que fita é sempre mais brilhante;
E segue, e segue, activo caminhante,
Na senda interminável do futuro!

Começou a imperar a força bruta:
Venceu-a à luz do dia, em franca luta,
O pensamento humano—esse arrebol!

 E hoje, apenas, em voo alevantado,
Orgulhosos herdeiros do passado,
Nos curvamos ao Génio—eterno Sol!»

  Ponta Delgada, 1893. Alice Moderno.

Imagem do Ahasvero nas cartas de Épinal. É possível que o arcano do Louco, ou Mat, do Tarot, seja uma manifestação da mesma lenda da ignorância e irresponsabilidade dos que negam a luz e o amor.

 Realcemos apenas o considerar a Humanidade uma espécie de Judeu Errante, Ahasvero, uma tradição cristã de remota origem, quanto a um judeu que nos instantes dos passos da cruz de Jesus lhe teria dito para se despachar em vez de o ajudar, recebendo como karma, destino ou paga ficar condenado a permanecer na Terra errante e desassossegado, havendo várias versões desta trágica insensibilidade egoísta ou falta de amor de um ser por um mestre, messias ou ungido sacrificial. 

Contudo, evolutivamente, ad astra per aspera, Alice Moderno, como extraordinária trabalhadora, escritora, poetisa, professora, e como pioneira activista da educação, dos direitos da mulher, dos trabalhadores e da República, vê, intui, a Humanidade avançar para estágios de cada vez mais luz e despertar do seu génio solar ou espiritual, fazendo assim que as trevas da ignorância, insensibilidade e egoísmo, se vão dissipando e dando lugar à progressiva e esforçada luz da psique criativa e fraterna...

Uma sibilina imagem, que Alice Moderno certamente apreciaria, da Humanidade mais liberta, das sombras e opressões da velha ordem mundial, e mais plenificada.        Muita luz e amor na sua alma de pioneira feminista, dos direitos dos animais e dos humanos, numa sociedade mais justa, fraterna, amorosa e multipolar.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Instrução que o Marquês de Valença, D. Francisco de Portugal, dá ao seu filho D. Miguel, impressa em 1746 e plena de Sabedoria actual, perene..

     Impressa três anos antes do seu autor (1679-1749) deixar a Terra, a Instrução que o 2º Marquez de Valença  Francisco de Paula de Portugal e Castro, 8.º conde de Vimioso; deu ao seu filho...  é obra que transparece o seu carácter e vida, e está animada pelo seu amor à sabedoria e à virtude,  com uma boa escolha de exemplos antigos sobre os vícios e as virtudes, com conselhos na forma de ditos que se assimilam facilmente, mas não se destina a gerar  grandes sentimentos ou entusiasmos, mas antes transmitir uma súmula sábia da sua vasta leitura e experiência. Lemo-la já na sua 2ª edição, um in-12º de 93 páginas, de Lisboa, de 1756, Instrução que o Marquez de Valença  D. Francisco de Portugal, do Conselho de Sua Majestade,  dá a seu filho segundo D. Miguel Lúcio de Portugal e Castro, Cónego da Santa Igreja de Lisboa, e se consultarmos a Biblioteca Lusitana de Diogo Barbosa de Machado apercebemo-nos melhor  como D. Francisco de Portugal sentiu a obrigação de redigir um testamento anímico, que aliás já escrevera  para o seu primogénito,  pois era da nobreza culta palaciana dando ao estudo diariamente seis horas, dominando várias línguas e o manejo do cavalo, sendo ainda um hábil e sábio orador na Academia Real da História Portuguesa (1720-1776) ou mesmo no Paço Real, pronunciando por obrigação dezenas de orações e elogios e manifestando plenamente ser um benemérito e estoico cortesão e pensador. 

Também encontramos informações sobre ele no investigador portuense José Adriano de Freitas Carvalho, que recentemente lhe dedicou um estudo valioso bio-bibliográfico, algo compacto, que está em rede, contextualizando-o até com o movimento de reforma e conversão interior denominado então Jacobeia, e que incidiria também nesta Instrução e na outra para o seu primogénito.

O frontispício da 2ª edição da obra.
 A obra valoriza acima de tudo o amor a Deus (transcendente e imanente) e em segundo o amor ao próximo, exemplificado sobretudo na partilha dos bens e na esmola («se tiveres muito, dá com largueza; se pouco, procura dá-lo de boa vontade») e segue uma linha de aproximação das virtudes e vícios («a soberba é vício tão poderoso que arruinou os Anjos: vede que estrago fará nos homens!», exemplificando-os com figuras e textos da Bíblia e de autores cristãos, a que junta ainda muitos casos exemplares e citações de gregos e romanos. E se sabemos que durante dezenas de anos se especializou na leitura dos grandes autores latinos, tais como Cícero, Séneca e Plínio, devido ao seu interesse na filologia, retórica e ética, já não temos a certeza se terá compulsado algum dos manuais de sabedoria e de provérbios da época, tais os Adágios de Erasmo (1466-1536), ou a Officina de Joannes Ravisius Textor (1492/3-1522).

Claro que a sabedoria normal do Cristianismo corre com abundância na obra, e até se pode estranhar serem tão poucas as citações de Jesus e  as duas de S. Paulo, ou mesmo dos padres da Igreja, pois só uma ou duas vezes surgem S. Jerónimo e Agostinho. Será que destinando-se a um filho religioso, familiar com tais veios tentou alargar a sua visão aos sábios anteriores da Grécia e Roma? Com interesse nacional são as citações de ditos ou feitos dos reis portugueses, ou o que deixa de transparecer em relação aos reis portugueses e à casa de Bragança.

Os conselhos de ética e moral  reflectem os valores de honestidade, honra, sobriedade, justiça, discrição, prudência e piedade.  E estão divididos em duas partes, a primeira geral, para todos os seres, até à página 62, e concluída assim:«Meu filho matam-se os pais, por muitos modos. Não só se matam com o punhal e o veneno, como também se matam com os desgostos, e com as injúrias. Tirar a vida natural o filho ao pai é grande desatino, mas tirar um filho a um pai honrado a vida da fama é maior impiedade. A vida natural acaba em breves anos, a vida da fama acabará com o mesmo mundo. Imitai pois a obediência, o respeito, a submissão, o amor, a ternura, a fidelidade que se deve aos pais, trazendo sempre diante dos olhos, impresso na memória, estampado no coração, gravado nas palavras, esculpido nas obra a inaudita veneração, e incomparável afecto dos nossos suavíssimos príncipes para seus augustos pais [Reis], mas de tais pais tais filhos se esperavam, porque as águias não geram pombas».

Na segunda parte, mais pequena e endereçada especificamente ao filho enquanto sacerdote, escrita de igual modo numa forma quase de aforismos ou ditos sábios,  destacaremos o "não só evitar escândalos, mas dar bons exemplos", "os justos caiem sete vezes ao dia mas logo se levantam", «um sacerdote não só há-de ser virtuoso, mas parece-lo. Esquece-me o nome da virgem Vestal, que foi castigada, porque os seus exteriores não concordavam com a modéstia que professava», o ser-se dedicado à religião ou «ao templo, não consiste só no hábito Clerical, se não nos hábitos das virtudes» e aqui D. Francisco de Portugal ecoa o o famoso e pouco apreciado dito de Erasmo monachus non est virtus, isto é, ser-se monge, ou usar as suas indumentárias, não significa que se é virtuoso, esta dependendo de uma douta piedade vivida e perseverada.

Criticando a vida profana seja dissoluta seja delicada, realçará a sobriedade e dirá que a comida é para sustentar o corpo e não para o regalar, e que está-se em erro se é «uma livraria mais preciosa pelas encadernações, e estantes, que pela escolha dos livros. E os livros mais para entreter o tempo, que para regular as paixões».

Nestes tempos de tanta quantificação, de tanto viral, de tanta manipulação, alienação, vulgarização e massificação valerá a pena cogitarmos bem o que nos transmite: «Não vos governeis pelo que vedes fazer a muitos, antes pelo que fazem os poucos, que costumam ser os melhores. Os poucos na língua Latina valem o mesmo que escolhidos. Há mais ferro do que ouro, há mais cristais que diamantes», e umas linhas mais à frente continua a escrever para os dias de hoje: «É mui diferente o que agrada aos olhos do que agrada à razão, o que aprova o vulgo do que aprovam os sábios. Aparelhai-vos para ouvir trocar os nomes às coisas, e não vos atemorize esta troca: assim começou o mundo, assim há-de acabar a sua carreira. Ouvireis chamar hipócrita à virtude, miséria à moderação, insensibilidade ao sofrimento, grosseria à temperança, altivez ao respeito e rigor à gravidade. As virtudes em toda a parte são estimadas dos bons, e em todo o tempo odiosas aos maus.»

Relembrará o símbolo pitagórico "nada em excesso",  a que chamara «a sentença de Sócrates celebrada por todos os Filósofos»,  a necessidade de se aconselhar sempre antes de se tomarem decisões ou acções importantes e o valor da perseverança, pois «não basta começar bem, se não continuares, e acabares melhor», concluindo a sua obra assim: «Perseverai pois nas virtudes, que Deus vos deu para lhe seres grato, e agradecido, e para lhe mereceres a liberalidade de outras maiores, para responderes às muitas, que exercitaram os vossos antepassados, para servires a vossa pátria, para agradares aos nossos Príncipes, para consolares a vossos pais vendo bem lograda a sua doutrina, premiados os seus trabalhos, cumpridos os seus desejos na perpetuidade da vossa boa fama.»

 Seguem-se após o "Fim", as oito páginas de três licenças de Censura: a do Santo Ofício, a do Paço e a do Ordinário, destacando-se um dos censores por chamar à obra  "enchiridica", uma palavra  raramente empregada entre nós e que provém do latim enchiridion, que significa tanto manual como punhal e que foi utilizada celebremente por Erasmo, quando escreveu o Enchiridion milites Christiani, o Manual do Cavaleiro (ou do soldado) cristão e que teve um sucesso na época enorme, chegando a ser traduzido e publicado em Espanha e em Portugal, quando as forças mais ortodoxas e reacionárias da Igreja, em especial dos dominicanos e de Zuniga,  atacavam e tentavam proibir a leitura das suas obras. Será que esse censor, Manuel dos Campos, jesuíta e membro da Academia Real, que assina o seu parecer datado de 4-VII-1745, na casa professa de S. Roque, teria simpatias erasmianas?

Erasmo num pequeno altar devocional ou invocativo lisboeta, quando eu escrevia sobre ele no seu Modo de Orar a Deus.

Oiçamos a sua aprovação,  transcrita após as licenças do qualificador do Santo Ofício (ou Inquisição) Frei Bernardo do Desterro e, pelo Desembargador do Paço, o Padre Joseph Barbosa, Académico de número da Casa Real e cronista da Sereníssima Casa de Bragança: 

«É pois esta Instrução uma Ética abreviada, e um como novo livro dos Provérbios (se não canónico, de suma autoridade) em que se acham todos os ditames morais, e políticos, que se podem desejar em um Cavalheiro Eclesiástico: e sendo tanta a importância da obra, concorrem nela tantas circunstâncias para a fazer familiar, e enchiridica, como são a elegância do estilo, a pureza da língua, a escolha dos exemplos, a energia das reflexões, o toque oculto das mais recebidas autoridades, e sobre tudo a brevidade, e clareza, que totalmente alivia os mais senhores de seguir outro método, ou buscar outra arte de educação, mais que fazer decorar esta tão adequada para o intento», e anote-se que melhor do que "decorar" seria ter escrito "compreender, assimilar e vivenciar"...

Poderemos interrogar-nos se D. Francisco de Portugal dera ao filho ao longo da vida alguns destes conselhos, ou lhe falara  do seu projecto  e se este correspondeu frutiferamente a tais instruções.  Mas parece que sim, pois no fim são inseridos seis sonetos do seu filho Miguel, com uma interessante e erudita apresentação anónima (iniciais ER.M.), que pode ser de alguém ligado ou representando o Colégio de Jesus  de Meninos Órfãos, de Lisboa, que recebera os direitos do livro, o jovem sendo ao lado do pai bem elogiado e até através da tradição pagã:  «Em quanto não recordamos a lição desta eruditissima e elevadíssima obra, nunca cabalmente louvada, vejamos o talento do segundo génito de Sua Excelência na Instrução, que lhe pertence; observaremos que é filho da Águia, porque fitando no sol Apolíneo se sublimou, e exorna com esplendor singular de Artes e Ciências, e valido do mesmo Apolo, lisonjeando [ou cultuando e invocando as inspirações subtis] as Musas, bebe na [fonte, tão celebrizada pelos poetas inspirados] Castália, cujas cristalinas [ou subtis e espirituais vibrações e] águas lhe incitam tão preclaras poesias, que sabe aplicar aos mais soberanos assuntos, repetindo o seu excelso e inacessível voo até se remontar na imortal fama».

  Após este belo voo às fontes da inspiração seguem-se seis sonetos de D. Miguel Lúcio de Portugal e Castro e, para acolhermos o seu lado poético e algumas metáforas valiosas fotografamos o soneto  platonicamente dedicado à um retrato da Sereníssima Rainha de Hungria, depois de vários sucessos gloriosos na guerra, e à sua formosura imortal, e um outro a S. João Baptista e ao rei D. João V. Anote-se antes porém que Barbosa Machado no IV volume da sua Biblioteca Lusitana, de 1759, biografa Miguel Lúcio, `nascido a 13-XII-1722, indicando o seu grau de Mestre em Artes, em 1742 na Universidade de Évora, e seu doutoramento em Direito Pontifício em Coimbra, em 1746, e registando como dados à luz um elogio fúnebre de D. João V, recitado na Academia dos Ocultos, uma oração panegírica à coroação de D. José, e umas coplas à Marquesa de Távora ao acompanhar o marido na viajem para a Índia, onde ele serviria como Vice-Rei.


Podemos considerar que a obra não aprofunda especulativa ou hermeneuticamente muito mistérios  religiosos, filosóficos ou espirituais, e que é mais um condensado de sabedoria moral e ética, assente numa boa compreensão psicológica dos seres e das suas psiques, em tempos e meios sociais diversos mas na unidade do género humano. Mas, tal como para muitos sábios humanistas, de Marsilio Fino a Erasmo,  a religião era sinónimo de sapiência, ela bem merece ser lida  e meditada, tanto mais que nos nossos dias, no meio da  desinformação e desnorte dominantes, muitos conceitos e comportamentos errados ou nocivos ao corpo e alma são vistos como acertados ou tornam-se mesmo as narrativas oficiais e as mentalidades vigentes, pelo que as considerações suas ou os ditos de antigos, plenos de sabedoria moral ou ética,  valem bastante ao ajudar à harmonização da personalidade, à religação espiritual e divina e a uma melhor vida na terra e nos mundos subtis do além. Oiçamos então alguns sábios e ditos:

Do sábio Lactâncio (240-320), que se convertera da filosofia pagã à cristã:«Em que difere o justo e o sábio dos maus e ignorantes, senão em que aqueles tem uma invencível paciência, que falta aos estultos, e em que sabem governar-se, e moderar a sua ira, e estes não podem refreá-la, porque carecem de virtude. O certo é, que os vingativos imitam os animais, e as feras, que se as provocam, ofendem com as armas que lhe deu a natureza».

«Horácio bem desenganou os negligentes, dizendo, que nada se deu aos mortais sem grande trabalho da vida»  

«Diz no Plínio no seu Panegírico, que Trajano nunca despedia as pessoas, com quem conversava; que elas, e não ele eram as que punham o termo à sua prática. Mais fez António Pio para ostentar a sua urbanidade, quando vendo a casa de um seu vassalo ornada de excelentes colunas, lhe perguntou onde as achara. A resposta foi: Quando fordes às casas alheias, sede surdo e mudo. E não conta, que este Imperador o castigasse por tal ousadia.» p. 19.

«Em quanto Alexandre [da Macedónia] foi sóbrio, foi herói, tanto que foi delicioso, e cuidou nos regalos da Ásia, logo fez acções indignas de um homem particular, e alheias de um Príncipe soberano. Quem mais sóbrios  moderados, que Cúrio, Fabrício e Catão, que colhiam com as suas mãos as hortaliças, e as comiam em pratos de barro e não de ouro? Augusto César senhor do mundo só admitia na sua mesa iguarias vulgares. Diz Ovídio falando dos tempo, em que reinava a parcimónia, e não a gula: "Ainda o peixe nadava sem engano, e os mariscos estavam seguros nas suas conchas". A Escritura nos recomenda, que não queiramos ser apetitosos de todas as iguarias, porque nas muitas está a enfermidade, e continua; pelo excesso de comer muitos morrerão, mas quem é parco dilatará a vida». p. 32

A diferença entre a liberalidade justa e a prodigalidade é bem afirmada por D. Francisco de Portugal, e certamente continua a ser de grande actualidade e necessidade face ao esbanjamento absurdo do dinheiro público: «A prodigalidade quase merece o mesmo ódio, que a miséria, e avareza, por impedir o heróico exercício da liberalidade. É vício, que o não parece, e por esta causa mais difícil de remediar, como são todos os que têm aparência de virtude. Destrói a caridade bem ordenada, pois por enriquecer os outros se empobrece cada um a si mesmo. Como é vício proveitoso para muitos, há poucos, que o condenem, e fica o vicioso sem emenda, e às vezes com a vaidade da mesma culpa. Nem se compadece com um ânimo liberal dar de tal sorte o preciso, que se venha a pedir o necessário, sendo favorável aos estranhos para ser cruel com os domésticos.»

E como foi sobretudo um grande estudioso, finalizemos esta homenagem a tradição moral e espiritual portuguesa na pessoa de D. Francisco de Portugal,  transcrevendo alguns parágrafos da sua súmula sábia acerca do estudo:

«Os grandes filósofos andaram pelo mundo consultando os maiores sábios do seu tempo. Parece-me, que diz Séneca, que a causa porque os homens se não adiantam no saber, é, porque logo se persuadem, que tem sabido. O certo é, que o que se ignora, é muito mais, que o que sabe. Daqui nasceu, que os sábios antigamente se intitulavam só Filósofos, que vêm a ser amantes da Sabedoria, para mostrarem, que a amavam, e não que a possuíam.»...

Saibamos pois ser Filósofos, conceito e palavra nascido publicamente com Pitágoras, Aamigos da Sabedoria, isto é, procurando viver em harmonia e despertando mais a alma espiritual e a sua comunhão com santo Graal do Bem, do Amor, da Justiça, da Tradição Espiritual Portuguesa e Perene, dos Mestres e Anjos, do Céu e do Cosmos e da Divindade.

O santo Graal, no frontispício dos Adágios de Erasmo e sobre a empresa Festina Lenta, Apressa-te lentamente, do sábio impressor veneziano Aldo Manutio.